quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

    O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).


 

          Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoriamente, o texto grego do Apocalipse, focando os solecismos, crítica textual, sintaxe, vocabulário (léxico) e uma exegese numa parte do discurso. Faremos isto, em cinco movimentos distintos. Tal apreciação tem sua complexidade declarada, pois como colocou David L. Mathewson: “entre os numerosos desafios interpretativos [...] a natureza da linguagem do Apocalipse continua a suscitar considerável fascínio e perplexidade tanto por parte dos gramáticos como dos comentaristas” (MATHEWSON. Verbal Aspect in the Book of Revelation, The Function of Greek Verb Tenses in John’s Apocalypse, p.1). De outro lado, Osborne é categórico: “todos concordam quando se afirma que o grego de Apocalipse é o mais difícil do NT” (OSBORNE. Apocalipse, p.27). Estas falas corroboram com a devida compreensão da análise em voga. Começaremos pelo solecismo visto em alguns enquadramentos.

O “solecismo” (Σολοικισμός) e/ou “barbarismo” (βαρβαρισμός) presentes no Apocalipse têm algumas considerações definidoras e contextuais. Nestas dinâmicas, Laurențiu Florentin Moț explica que nem sempre o primeiro foi usado como termo gramatical, pois “Zenão (334-262 a.C), fundador do estoicismo, deu uma definição ampliada que ia além da fala, abrangendo roupas, alimentação e caminhada”. Entretanto, posteriormente em usos gramaticais (do geral ao específico). Luciano usou a palavra e seus cognatos de uma forma geral para significar todos os aspectos linguísticos ligados aos erros. Sua definição descreve solecismos como τὸν ἁμαρτάνοντα ἐν τοῖς λόγοις (“o que falha nas palavras”). De outro lado, o “barbarismo” (βαρβαρισμός), o qual tem uma trajetória semântica interessante. Antes das guerras persas (492–490, 480–479 a.C.) significava não-grego, quer linguística ou culturalmente. Depois das guerras persas, referia-se a qualquer coisa que parece inculto (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, pp.46,47). Estas primeiras informações são metodologicamente importantes para a percepção contextual, mas ainda assim, podemos questionar: como entender este fenômeno linguístico no Apocalipse?

Tal problemática pode ser vista de forma cronológica, pois, já na primeira metade do século III, Dionísio de Alexandria (264-265 d.C.) observou que o “uso da língua grega por João não é preciso, mas empregava expressões bárbaras, em alguns lugares cometendo solecismos absolutos” de algumas formas (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.100). Aune, de certa forma, agrava isto: “o grego do Apocalipse não é apenas difícil e estranho, mas também contém muitos recursos lexicais e sintáticos que nenhum falante nativo do grego teria escrito” (AUNE. Word Biblical Commentary, p.388). Ele continua, apresentando algumas razões para estes solecismos: (1) Apocalipse é uma tradução de uma obra originalmente escrita em língua semítica, hebraico ou aramaico; (2) o autor escreveu em grego, mas pensado em hebraico ou aramaico; (3) O hebraico bíblico serviu de modelo para a língua do Apocalipse; (4) o autor era secundariamente bilíngue e provavelmente foi capaz de falar como bem como escrever grego; os semitismos que sem dúvida existem no Apocalipse, funcionavam como  resultado desta interferência bilíngue (AUNE. Word Biblical Commentary, p.388). É ainda relevante observar algo não afirmado com veemência exposto por Beale:há um número significativo destas irregularidades ocorre em no meio das alusões do AT. Várias expressões parecem irregulares, porque João está transportando as formas gramaticais exatas das alusões, muitas vezes das várias versões do AT grego e às vezes do hebraico. Ele não muda a forma gramatical do AT para se adequar ao contexto imediato. O contexto sintático presente no Apocalipse, então, era a expressão do AT. Isso cria “dissonância sintática”. Com a mesma frequência, a gramática precisa da passagem do AT não é mantida, mas semitismos estilísticos ou septuagintalismos são incorporados, a fim de criar a dissonância” (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.101). Portanto, talvez, a avaliação mais comum das aparentes incongruências do Apocalipse, possam postular algum nível de influência semítica sobre a gramática de João. Embora, as especulações de que o Apocalipse seja uma tradução de uma fonte original hebraica ou aramaica careçam de plausibilidade, os solecismos gramaticais no são frequentemente atribuídos a alguns graus de influências da gramática do hebraico bíblico, talvez deliberadamente para dar-lhe um sabor do Antigo Testamento ou profético (MATHEWSON. Verbal Aspect in the Book of Revelation, The Function of Greek Verb Tenses in John’s Apocalypse, p.2).

 Quanto as irregularidades podemos falar pelo menos em cinco. Neste caso, na primeira e maior seção existem peculiaridades sentenciais compostas de divergências de caso, gênero e número A segunda classe consiste em incongruências verbais envolvendo tempo, modo e voz. A terceira classe representa as irregularidades preposicionais. Todos estes são solecismos de substituição. A próxima categoria a seguir é o das omissões. O capítulo termina com a quinta categoria que compreende acréscimos ou redundâncias (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, p.107). Corrobora ainda a ideia conecta ao argumento anterior, pois, é importante distinguir vários tipos de hebraísmos e aramaísmos: “(1) semântico Semitismos, (2) Semitismos lexicais, (3) Semitismos fraseológicos, (4) semitismos sintáticos e (5) semitismos estilísticos (expressões e construções possíveis em grego, mas cujo uso excepcionalmente frequente é mais característico do hebraico ou aramaico” (AUNE. Word Biblical Commentary, p.389). Tal perspectiva precisa ser enfatizada, porquanto, outras instâncias às vezes incluídas na discussão dos solecismos não aparecem como oposições diretas do direito comum das regras gramaticais, mas são melhor categorizadas como variações peculiares de estilo - por exemplo, pronomes resumidos (por exemplo, 3:8; 7:9), resolução de um particípio em um verbo finito em uma cláusula seguinte (por exemplo, 1:5-6; 2:20), mistura de tempos verbais e modos sem razão explícita (por exemplo, 21:24-27), e expressões estilísticas que parecem expressar hebraísmos ou aramaísmos (por exemplo, 4:9-10). Algumas das claras solecismos são difíceis de explicar em qualquer teoria (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.102).

Foquemos em algumas ilustrações que se enquadram nos cinco níveis:

Discordâncias de Caso (DEBRUNNER, BLASS. A Greek Grammar of The New Testament and Other Early Christian Literature, pp.135,136)

         [A] Uma frase aposicional (ou particípio circunstancial) é frequentemente encontrado no nominativo em vez de um caso oblíquo:

        τῆς καινῆς Ἰερουσαλὴμ ἡ καταβαίνουσα ἐκ τοῦ οὐρανοῦ  (3:12)

        [B] O masculino é frequentemente substituído pelo feminino ou neutro

         αἱ δύο λυχνίαι [...] ἑστῶτε  (11:4)

         [C] Nominativo para genitivo. Existem duas referências, que envolvem cinco substantivos nominativos usados no lugar de tantos substantivos genitivos. Todos os nominativos aposicionais deveriam ter sido traduzidos no genitivo, de acordo com ησο Χριστο..

         ἀπὸ Ἰησοῦ Χριστοῦ, ὁ μάρτυς, ὁ πιστός, ὁ πρωτότοκος  (Rev. 1:5 BNT)

          [D] Um nominativo participial é aplicado sete vezes a um genitivo. O primeiro nesta categoria está o solecismo mais famoso e um dos loci Communes onde são identificados no Apocalipse, provavelmente devido à sua primeira posição no livro. Apocalipse 1:4 contém a frase π ν κα ν κα ρχόμενος, onde π é seguido não por genitivos, mas surpreendentemente, por um nominativo (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, p.113).

          [E] Em 13:14, o particípio masculino singular λέγων funciona como um predicado adjetivo, modificando o substantivo neutro singular θηρίον (13:11). Isto é claramente um solecismo e também reflete a prática do narrador de modificar o neutro substantivos que simbolizam homens com adjetivos, pronomes e particípios no género masculino (AUNE. Word Biblical Commentary, p.389).

         Vale a ressalva de que o “Constructio Ad Sensum” deve ser levado em conta. Tal construção contempla um pequeno grupo de demonstrativos possui uma concordância natural com seus antecedentes, cometendo o que chamamos de solecismo. São construções ideológicas ou constructio ad sensum. Essa (des-) concordância natural envolve gênero ou, mais raramente, número. Frequentemente, a concordância somente é conceituai, visto que o pronome aponta para uma frase ou oração e não para um substantivo ou qualquer outro nome. Como é de se esperar, não poucos desses exemplos são debatíveis e exegeticamente significantes (Wallace, p.330). Corroboram Debrunner, Blass, quando destacam: [1] “a instância principal é aquela em que um coletivo, abrangendo uma pluralidade de pessoas em um substantivo singular, é interpretado como se o sujeito fosse plural. [2] Coletivos pessoais femininos ou neutros no plural podem ser continuados por um masculino plural. [3] Um particípio masculino referindo-se a um substantivo neutro que designa um ser pessoal” (DEBRUNNER, BLASS. A Greek Grammar of The New Testament and Other Early Christian Literature, pp.133,135). Ainda assim, Beale afirma: “as conclusões a que cheguei refinam esta avaliação. Alguns os solecismos que podem ser atribuídos à influência do AT também poderiam ser explicados como devidos à constructio ad sensum, mas não a maioria deles; e quando ambas as explicações são possíveis, a influência do AT é preferível, porque se baseia em evidências mais objetivas” (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.101).

 Depois desta sintética análise continuamos com a tese inicial de que o grego do apocalipse é notoriamente complexo. Pelos solecismos percebemos seus usos nas antigas literaturas que precederam o livro das revelações. Além disso, a detecção inicial deles no 3º século d.C. De forma, introdutória percebemos que a escrita do livro teve fundamento no AT. Parece ser esta a explicação tendo também como base que as aparições dos solecismos se desenvolvem na intertextualidade (relação com o AT). Tal síntese parece expressar hebraísmos ou aramaísmos. Os outros elementos a serem observados complementarão a análise.  


sábado, 27 de maio de 2023

 

      O “Nu” (γυμνός - gymnós) em Ap.16:15 tem que significado/significância? 


       


      Neste ensaio procuraremos trabalhar a questão do “nu” em seu devido significado. Para tal nos valeremos da exegese contextual canônica, algo funcional para termos uma ideia mais ampla do tema. Este movimento está relacionado a exegese do Apocalipse vista pelo substrato da intertextualidade. A investigação trará informações introdutórias longe de prerrogativas exaustivas. Defenderemos neste ensaio γυμνός  (gymnós) num simbolismo que define um aspecto ético da igreja visto como algo inegociável.   

     O texto base que partiremos Ap.16:15 está num contexto que envolve os “sete flagelos” (16:1-21), mais especificamente o sexto (16:12-16). Em 16:15 segundo Beale uma exortação entre parênteses é dirigida aos crentes. A voz os exorta a estarem sempre vigilantes para a aparição final de Cristo, uma vez que virá inesperadamente, ‘como um ladrão’. No contexto, a exortação parece abrupta e desajeitada, mas num estudo mais detalhado funciona como as exortações em 13:9 e 14:12 (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek Text, p.836). Nesta dinâmica, a exortação objetiva a negação a “nudez” e este será nosso ponto em voga.

      O termo grego γυμνός (gymnós) aparece por 47 vezes na Bíblia. Inicialmente, no livro de Genesis (LXX- 2:25; 3:7,10,11) como tradução do hebraico עָרוֹם (arom). Posteriormente a isto, aparece em alguns outros livros do AT (1Sm.19:24; 2Cr.28:15; Pv.23:31; Ec.5:14; Jó.1:21; 22:6; 24:7,10; 26:6; 31:19; Os.2:5; Am.2:16; 4:3; Mq.1:8; Is.20:2,3,4; 32:11; 58:7; Ez.16:7,22,39; 18:16; 23:29). Encontramos também no NT em livros distintos (Mt.25:36,38,43,44; Mc.14:51,52; Jo.21:7; At.19:16; 1Co.15:37; 2Co.5:3; Hb.4:13; Tg.2:15). Neste viés, precisamos destacar os usos propriamente presentes no Apocalipse: 3:17; 16:15; 17:16. Cabe nesse momento analisar o viés lexical de γυμνός (gymnós), de modo que, possamos ter uma ideia da equivalência (língua fonte [grego] – língua receptora [português]).

    Inicialmente pelo BDAG observamos o uso literal de γυμνός (gymnós) visto como “nu” ou figurado como “descoberto” e finalmente, “estar inadequadamente vestido, sem uma vestimenta exterior, sem a qual uma pessoa decente não aparecia em público” (Arndt, Danker & Bauer. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p.208). Em suma, γυμνός (gymnós)  aparece 15 vezes no NT. Já o substantivo γυμνότης (gymnótes), que é raro em grego fora do NT e da LXX, aparece somente 3 vezes (Rm. 8:35; 2 Cor 11:27; Ap 3:18). Ambas as palavras podem ser usadas para a “nudez completa ou para roupas inadequadas ou escassas”. Eles também podem ser usados ​​para a condição de desprotegido, necessitado e desamparado. Numa recorrência ao AT como em Gn.3:7, a vergonha na presença da “nudez” é explicada como resultado do pecado (cf. 2:25; 3:10; 9:21). A pessoa começa e termina a vida na nudez (Jó.1:21; Ec.5:14). Os pobres estão nus e dependem dos verdadeiramente piedosos e justos para se vestir (Is 58:7; Ez 18:7, 16; Tob 4:16). A “nudez” é, portanto, predominantemente uma expressão de indefesa (cf. Jó 26:6 sobre o reino dos mortos, que não podem se esconder diante de Deus). (Balz & Schneider. Exegetical dictionary of the New Testament. 1:265).

     Depois destes elementos iniciais foquemos no que γυμνός (gymnós)  presente na exortação presente em Ap.16:15. Num insight interessante Beale destaca, inicialmente: “vestes’ simbolizam inflexibilidade ou ‘atos justos dos santos’, que são necessários para a admissão ‘à ceia das bodas do Cordeiro’ (19:8–9), ao passo que o ‘nu’ significa falta de retidão” (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek Text, p.836). Aune corrobora trazendo o fundamento da exegese joanina, pois no AT e no judaísmo primitivo, as noções de “nudez” e “vergonha” estavam intimamente associadas (Gn 9:20-24; Is 20:4; 47:3; Os 2:10; 1Co.12:23). O termo hebraico עֶרַוָה (erwâ), “nudez, genitália”, é traduzido oito vezes na LXX com o termo grego αἰσχύνη, (aiskhýne - “vergonha, desgraça”, Is.20:4; 47:3; Ez 16:36, 38; 22: 10; 23:10, 18, 29), sugerindo que em Ap 16:15 o paralelismo está em voga (αἰσχύνη também significa “nudez”). Segundo a protologia israelita, a “nudez” nem sempre foi associada à vergonha, como deixa claro Gn 2:25: “O homem e sua mulher estavam nus e não se envergonhavam”. As noções de “nudez” e “vergonha” também estão ligadas em Ap 3:18 na frase ἡ αἰσχύνη τῆς γυμνότητός σου, “a vergonha da tua nudez”. Ap 16:15 pode, então, ser uma alusão à tradição da “túnica de Adão” (baseada em Gn 3:7,10,11), uma vestimenta mágica que garantia invencibilidade, que foi venerada por seus descendentes e acabou enterrada no cemitério. Uma faceta é refletida na variante mitológica poética da tradição de Adão em Ezequiel 28:13, onde a vestimenta é descrita como uma série de pedras preciosas semelhantes às usadas nas vestimentas dos sumos sacerdotes. Adão e Eva perderam suas “vestimentas de luz” celestiais (עור ˓ôr, “pele”, em Gênesis 3:21, explicado como se estivesse escrito אור ˒ôr, “luz”) quando expulsos do Éden. Assim, esta “nudez” está associada à vergonha, juntamente com a fome, como castigos divinos. Havia uma atitude diferente em relação ao corpo no mundo grego, embora a nudez pública sempre fosse relativamente incomum; ela (a nudez) era considerada vergonhosa em alguns contextos, mas não em outros, por exemplo, atletismo, batalha. O primeiro homem nu apresentado na literatura grega é Ulisses, e ele expressa vergonha por sua nudez na presença de mulheres jovens (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 6-16, p.897).

       Estas considerações fazem com que vejamos a questão por alguns ângulos possíveis. Entretanto, numa síntese podemos entender que em 16.15, os eleitos precisavam manter vestidas as suas roupas, uma metáfora estranha que pode ter a ideia de “manter” ou guardar o compromisso espiritual com Cristo. Embora, alguns exegetas afirmem que o quadro representa aqueles que vigiam suas roupas, para que não sejam perdidas nem roubadas, é melhor ver a figura descrevendo uma pessoa que está alerta e completamente vestida, em prontidão para o retorno de Cristo. O risco de não se manter trajado com as vestimentas espirituais é “andar nu e ter a nudez exposta”. Tal ideia é semelhante a 3.18, em que “a vergonha de tua nudez” retrata a igreja pecadora “exposta” por Deus, dando continuidade a uma imagem do AT, na qual a nudez é símbolo de juízo (Is 20.1-4; Ez 16.36; 23.10,29), e a “vergonha” implica desgraça e merecimento de juízo. (OSBORNE, Apocalipse.p.664). Portanto, a referência de guardar alguém suas roupas não tem nada a ver com nudismo, mas tem de ser considerada em termos figurativos. A alusão é de estar espiritualmente vestido com a Palavra de Deus, de modo que, quando o tentador chegar com imposturas e fraudes, o crente seja capaz de prestar boa conta de si mesmo, ou de si mesma, e assim malograr as tentações, desmascarar a fraude e frustrar os ataques diabólicos. Perambular espiritualmente nu, sem as vestimentas da Palavra de Deus, traz vergonha ao cristão e vexame a seu Senhor (KISTEMAKER. Apocalipse, p.569).

     Depois de observar γυμνός (gymnós)  por algumas portas de análise conseguimos ter algumas consolidações introdutórias. Nosso recorte (Ap.16:15) passa pelo uso figurado, de modo que a expressão imagética, vista em seu contexto histórico, traz delimitações importantes. As associações internas do Ap envolvendo γυμνός (gymnós) são suficientes para entendermos o aspecto negativo do adjetivo em voga. A ideia defendida de que a vestimenta aponta para o devido preparo para a chegada do noivo tem viés fundante no Apocalipse, por esta razão o nu é antítese disto. Além disso, a vestimenta aponta para posturas que caracterizam o povo de Deus e assim, novamente o “nu” está em oposição a isto. 

terça-feira, 18 de abril de 2023

 

Análise exegética de 1Co.5:5: “O autor da tal infâmia [...] seja entregue a Satanás, para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”.

Esse texto é um dos desafios hermenêuticos que temos como leitores e estudantes da Bíblia. Por esta razão, nesse ensaio introduzirei alguns caminhos, para buscarmos o significado desta porção da Palavra. Estruturalmente, dividirei em três partes, para que possamos tratar o texto com temáticas distintas.

A questão em foco. 5:1,2.

Paulo de alguma forma tomou conhecimento (ἀκούεταιakúetaié ouvido) que no meio da igreja (ἐν ὑμῖνen hymîn – entre vós)[1], havia “imoralidade” (πορνεία - porneía).[2] Por causa da triste ocorrência, “a saber, [que] alguém tem[3] [como companheira] a mulher de seu pai” (“ὥστε γυναῖκά τινα τοῦ πατρὸς ἔχειν - hóste gynaîka tina tû ékhein). Normalmente, esta “mulher” (γυνή - gyné) é identificada como “a madrasta”, pois se fosse a mãe, Paulo teria afirmado isso. Esta é uma possibilidade interpretativa, mas, seja como for, o incesto é reprovado pela Lei Mosaica como pelo Novo Testamento (Lv.18:8; Dt.22:30; 27:20; At.15:20,29; 21:25). Para agravar a questão, o apóstolo mostra que isso “não ocorria nem entre os pagãos” (καὶ τοιαύτη πορνεία ἥτις οὐδὲ ἐν τοῖς ἔθνεσινkaì toiaúte porneía hètis udè en toîs éthenesin). Isso não significa que os pagãos tinham um padrão moral superior, mas que o direito romano (não a lei grega) proibia essa união, mesmo quando o pai estava morto (JOHNSON. 1Corinthians, InterVarsity Press, p. 87). Assim, esta descrição expõe a seriedade do problema presente na igreja. Mas, como lidaram com isso?

A resposta indevida da igreja ao problema (o que não fazer). 5:2.

Infelizmente, a igreja não se posicionou de forma correta ao ato pecaminoso exposto. A descrição usada pelo apóstolo (5:2) chancela isto, pois, “andais vós ensoberbecidos” (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι[4] ἐστὲ - hymeîs pefysioménoi estè)[5] e “não estivestes tristes” (οὐχὶ ἐπενθήσατεuhkì epenthésate), desta forma, estes paralelos contrários expõem o antagonismo em relação ao que devia ser feito. A primeira postura reprovável (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι[6] ἐστὲ - hymeîs pefysioménoi estè) denota o conceito que governava a conduta dos coríntios que estava em antítese a humildade cristã (MORRIS. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.69). Quanto a segunda expõe o que eles deixaram de fazer, pois “não entraram num estado de luto”[7] (THISELTON. The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, p. 388). Morris pensa a partir deste verbo, que Paulo pode estar insinuando que a igreja perdeu um membro: “deveis estar chorando muito mais a perde de um membro!” (MORRIS. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.69). Entretanto, este verbo (πενθέω - penthéo “lamentar”) é usado outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e arrependimento (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.879). Por esta razão, a contestação a tese de Morris passa a ter fundamento.

A mesma dinâmica antitética continua (5:2), pois, o apóstolo traz uma pergunta retórica, cuja a resposta é negativa. Isso é feito em conexão com as duas posturas reprováveis tratadas anteriormente. Elas não apresentaram o correto resultado, apontado pelo apóstolo: “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας; - hína arthê ek mésu hymôn ho tò érgon tûto práksas?). Portanto, todas posturas da igreja narradas até agora, foram antagônicas ao padrão divino, tanto do incestuoso como dos restantes. Não houve um trato legitimo da questão exposta. Entretanto, a partir de 5:3 Paulo começa a explicar o que deve ser feito.

A instrução de Paulo quanto ao trato legítimo da questão (o que fazer).

Depois dos antagonismos passemos para o trato legitimo. Isso começa a ser feito com a conjunção “γάρ (gár) ignorada na ARA, ARC, ACF, NVI. Seu uso conectivo enfático define a justificativa do que foi afirmado no v.2.[8]  Além disso, o constraste pronominal entre “vós” de 5:2 (ὑμεῖς hymeîs) e o “eu” de 5:3 chancela a diferença de posturas. O conteúdo deste trato legítimo envolve alguns momentos definidos estruturalmente, os quais precisam ser analisados com cautela e precisão exegética.

Em primeiro lugar, mesmo “estando Paulo ausente no corpo” (ἀπὼν τῷ σώματι – apòn tô sómati), ainda assim, “estaria presente em espírito” (παρὼν δὲ τῷ πνεύματι – paròn dè tô pneúmati). Thiselton explica que estes particípios presentes antitéticos “ἀπών”, (“estando ausente”), e “παρών”, (“estando presente”) são qualificados por dois dativos, isto é, “τῷ σώματι” (no corpo), isto é, fisicamente e “τῷ πνεύματι”, (no espírito), fora do corpo. Desde o século XIX até o final da década de 1950, a interpretação praticamente unânime, a qual entende “em espírito”, isto é, em um sentido não corporal, porque o contraste semântico entre “σῶμα” (soma – “corpo”) e “πνεῦμα” (pneûma – espírito) foi assumido como refletindo o dualismo clássico mente-corpo ocidental de Platão e Descartes. (THISELTON. The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, p. 390). Morris pensa nisso como uma assembleia disciplinar a ser realizada. Nesse caso Paulo como presidente desta assembleia passou a sentença[9] (MORRIS. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70). Nessa posição o apostolo expos o veredito, pois aquele que cometeu o ato pecaminoso, “já o sentenciei” (ἤδη κέκρικα éde kékrika).

Em segundo lugar, o fundamento de autoridade está em loco, pois o apóstolo mostra que isso é feito “em nome do Senhor Jesus” (ἐν τῷ ὀνόματι τοῦ κυρίου [ἡμῶν] Ἰησοῦ - en tô onómati tû kyríu hemôn Iesû). Além disso, a junção exposta pelo particípio “συναχθέντων (synakhthénton – “reunido”) e preposição “σύν (sýn – “com”) mostra a igreja e Paulo juntamente com “o poder do Senhor Jesus” ligados (Mt.18:20).

Depois destas premissas, em terceiro lugar, o pronunciamento é apresentado: “... entregar tal pessoa a satanás, para a destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor” (5:5).[10] O que isso significa neste contexto: Uma completa apostasia? Ou: apontamento para disciplina (exclusão)?

Três expressões são usadas neste capítulo, focando o afastamento do ofensor: em 5:2: “... fosse afastado do vosso meio” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν), 5:5: “entregar a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e 5:13: “expulsai dentre vós” (ἐξάρατε τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν αὐτῶν). Ao lermos estas conexões seremos melhor direcionados. Assim ao analisarmos o “entregar a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e sua complementação, ou seja, “para destruição da carne” (εἰς ὄλεθρον τῆς σαρκόςeis ólethron tês sarkós), algumas teses interpretativas podem ser destacadas:

1) maldição-morte, nesse caso a sustentação é que Paulo profere uma maldição que resultará em sofrimento físico e, por fim em morte (1Co.11:30).

2) “entregar o ofendido a satanás” é devolvê-lo a era satânica, fora do ambiente edificante e acolhedor da igreja, onde Deus opera. A carne a ser destruída é a carne pecaminosa (1Co.3:16,17). O homem deve ser excluído da comunidade da fé (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.880).[11]  Calvino explica isso, estabelecendo o seguinte paralelo: “... é por isso que o entrega a Satanás, por que o diabo está fora da igreja como Cristo está na igreja” (CALVINO. As Institutas, p.227).

3). O posicionamento de Herman Ridderbos estabelece quase uma síntese, pois entende que se trata da expulsão formal da igreja (Mt.18:20). Além disso, deve-se entender essa “destruição da carne” como grave aflição física, afetando a vida temporal que acometerá o pecador que foi entregue a Satanás[12] (RIDDERBOS. A Teologia do Apóstolo Paulo, pp.523,524).

Essa percepção guarda ainda uma questão, pois podemos afirmar que o culpado por tal ato pecaminoso era realmente cristão? Boor defende que sim, já que, Satanás obtém poder apenas para a destruição da carne. Pois esse homem é “cristão”. Fez algo terrível, mas de sua parte não se desligou de Jesus. A morte sacrifical de Jesus permanece válida para ele. Por um lado, um pecado tão flagrante, que causou enorme dano para o evangelho entre judeus e gentios e trouxe vergonha ao nome do Senhor, precisa obter um castigo claro. Por outro lado, justamente quando esse castigo for suportado – e ser entregue a Satanás para a destruição da carne é terrível (BOOR. Comentário Esperança, Primeira Carta De Paulo Aos Coríntios; Comentário Esperança, 1 Coríntios, p. 100). Isso é sugerido pela progressão do texto, pois o propósito da disciplina é descrito positivamente (Hb.12:4-13): “... ἵνα τὸ πνεῦμα σωθῇ ἐν τῇ ἡμέρᾳ τοῦ κυρίου (hína tò pneûma sothê en tê heméra tû kyríu – “... para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”). Portanto, o incestuoso foi entregue a condenação temporária, para que fosse salvo eternamente (CALVINO. As Institutas, p.227).

O v.5 apresenta dois propósitos estabelecidos pela preposição “εἰς (eis – “para”) e pela conjunção “ἵνα (hína – “para que”), de maneira que desmembrá-las não seria coerente. Portanto, num primeiro momento o crente foi disciplinado (para a destruição da carne), isso seguido de seu referido objetivo: “a salvação” (para que seja salvo). 

Como foi dito no início esse texto é realmente desafiador, entretanto, alguns caminhos interpretativos expostos nos ajudam. Em suma, sua ênfase é o trato eclesiológico de cunho disciplinar. “Entregar a Satanás” funciona como exclusão estabelecida de alguma forma em que o crente é tratado. Os pormenores não são descritos por Paulo. Portanto, fiquemos com o princípio, o qual descreve a necessidade de posicionamento da igreja diante de pecados notórios (ao contrário do ocorre em Mt.18).


[1] O “entre vós (ἐν ὑμῖν)” localiza gramaticalmente o relatório, mas, de fato, a ofensa: foi entre eles que o rumor circulava, porque [no meio deles] o pecado foi encontrado: “a falta de castidade é relatada [como existe] entre vocês.” O relatório chegou ao apóstolo através do mesmo canal que trouxe informações sobre as facções (1:11), ou através de Estefanas (16:17). O peso da censura do apóstolo cai, não sobre a conversa sobre o crime dentro da comunidade, mas sobre a ocorrência e a falta de lidar com isso. ROBERTSON, Archibald; PLUMMER, Alfred: A Critical and Exegetical Commentary on the First Epistle of St. Paul to the Corinthians. New York: C. Scribner's Sons, 1911, p. 95

[2]πορνεία (porneía) aparece dez vezes no corpus paulinus: 1Co.5:1,2; 6:13,18; 7:2; Gl.5:19; Ef.5:3; Cl.3:5; 1Ts.4:3.

[3] O tempo presente infinitivo ἔχειν” (ékhein), “está tendo”, denota uma relação contínua, contra um único ato que provavelmente seria o aoristo. THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans, 2000, p. 386.

[4] Quanto ao verboφυσιόω (fysióo eu ensoberbeço, faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.

[5] Particípio perifrástico. Perfeito (particípio) + Presente (verbo) = perfeito.

[6] Quanto ao verboφυσιόω (fysióo – eu ensoberbeço, faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.

[7] ἐπενθήσατε – (epenthésate). “Aoristo ingressivo”, o qual denota a entrada ou começo de uma ação. O verbo “πενθέω (penthéo – lamentar) é utilizado no NT nas ocasiões de luto por um ente querido (Mt.9:15; Mc.16:10) e para prantear e chorar por uma grande perda (Ap.18:11,15,19). Por isso, alguns comentaristas entendem que Paulo está lamentando a iminente perda do irmão pecador. Entretanto, a palavra é usada outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e arrependimento. O uso do “lamento” na LXX sugere que, para Paulo, em 5.a os coríntios deveriam lamentar no sentido de confessar o pecado do irmão ofensor como se fosse o pecado deles próprios. A palavra ocorre apenas seis vezes na LXX com referência ao pecado (Ed.10:6; Ne.1:4; 8:9; Dn.10:2). BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.879.

[8] “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας; - hína arthê ek mésu hymôn ho tò érgon tûto práksas?).

[9] O verbo “sentenciei (κέκρικα - kékrika) está no perfeito em grego. 

[10] Construção similar aparece em 1Tm.1:20.

[11] Morris afirma: o significado mais palpável é o de excomunhão (ver os vs.2,7,13). A ideia subjacente é que fora da igreja está a esfera de Satanás (Ef.2:12; Cl.1:13; 1Jo.5:19). Ser expulso da igreja é Cristo é ser lançado àquela região onde Satanás mantém o poder. É uma expressão muito forte concernente a perda de todos os privilégios cristãos. MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70.

[12] 2Co.12:7; Lc.13:16; Jó.1 onde o sofrimento também é atribuído a Satanás.

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