domingo, 21 de janeiro de 2018



Em Lc.16:19-31 temos a chancela do chamado “estado intermediário  (ᾅδης [...] κόλπον Ἀβραάμ”)?
Temos nesse texto a indicação do que ocorre com justos e ímpios no período pós-morte até o julgamento final?

                   A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit.[1]


















... E assim, imediatamente depois da morte, os crentes desfrutam de um estado temporário de benção de Cristo no céu, assim também os incrédulos desde o momento de sua morte, entram em um lugar de tormento (BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.610,612).

REFORMA E DEFORMAÇÃO. Bavinck afirma que Lutero via o estado intermediário do crente como um sono no qual ele tranquila a calmamente aguardava o futuro do Senhor. Calvino quase na mesma dinâmica entendia que o seio de Abraão significa apenas que depois da morte as almas dos fieis desfrutam da plena paz, mas que até o dia da ressurreição, algo ainda está faltando... Em suma o estado intermediário afinal, consistia quase totalmente “na esperança e expectativa de uma glória futura, não de fato, no gozo dessa glória” – E da mesma forma os ímpios numa expectativa de punição (BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.617,618).


    Nesse sintético texto procuraremos tratar exegeticamente Lc.16:19-31 com pressupostos teológicos distintos (cf. BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.593-647). Nesse caso, o posicionamento escatológico que trata “o estado intermediário” no pós-morte como algo transitório até o julgamento final (junção do espírito com o corpo). As delimitações que envolvem este pós-morte, constituem o interesse deste ensaio, pois funcionam como norteadores teológicos necessários. Por isso, o ᾅδης (hádes) e τὸν κόλπον Ἀβραάμ” (“o seio de Abraão”) quando problematizados, devem ser definidos contextualmente de que forma? O trato exegético que os envolve traz consigo o significado que corrobora com o pressuposto hermenêutico?
     Ao tratar exegeticamente Lc.16:19-31 nos detemos inicialmente para a determinação da síntese que envolve a dinâmica contextual. Assim, a repetição de ἄνθρωπός τις ἦν πλούσιος (“havia um homem rico”) em 16:1,19 funciona como fundamento estrutural, nesse caso, expondo a introdução e conclusão da seção. Além disso, estabelece do foco temático, indicando a tratativa central, vista por alguns eruditos do NT na seguinte concordância: “o uso e abuso das riquezas” - NOLLAND. Luke WBC, p. 825; “cuidado com as riquezas” - MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.9; “sobre o uso da riqueza” - PLUMMER. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Luke, p. 379. Outra ação elucidadora e informativa nessa mesma dinâmica é a pormenorização desta seção (16:1-31), realizada em sua estruturação. O modelo exposto por Howard Marshall nos ajuda nesse sentido: 1) o administrador prudente” (16:1-8); 2) “a administração fiel” (16:10-13); 3) “reprovação aos fariseus” (16:14:15); 4) “a lei e o reino” (16:16:17); 5) “a lei concernente ao divórcio” (16:18); 6) “o homem rico e Lázaro” (16:19:31)” MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p. 9. Com estas informações preliminares nosso recorte ganha significado a ser desenvolvido. A última parte citada é desenvolvida em duas cenas, sendo que a primeira ocorre na terra (16:19-22) e a segunda no Hades (16:23-31). Desta forma, a antítese entre “Ανθρωπος [...] ἦν πλούσιος (“um homem que era rico”) e πτωχὸς [...] ὀνόματι Λάζαρος (“um pobre chamado Lazaro”) expõe as condições dos personagens iniciais e seus referidos lugares depois da morte: o primeiro “estando em tormentos” (ὑπάρχων ἐν βασάνοις) e o segundo no “seio de Abraão” (κόλπον Ἀβραάμ). Além disso, o quiasmo destaca a maior participação do rico nesse contexto (Lázaro nada fala).

   A. Ἄνθρωπος [...] τις ἦν πλούσιος... (16:19).[2]
B.πτωχὸς [...] τις ὀνόματι Λάζαρος...(16:20).[3]
B.ἀποθανεῖν τὸν πτωχὸν... (16:22).[4]
   A. ἀπέθανεν ὁ πλούσιος... (16:22).[5]

   Nossa análise focará os vs.22,23, mas não sem dialogar com o restante do texto. Assim, em primeiro lugar, observemos as informações metafóricas relacionadas ao “κόλπον Ἀβραάμ”, pois aconteceu que “ἀποθανεῖν τὸν πτωχὸν καὶ ἀπενεχθῆναι αὐτὸν ὑπὸ[6]  τῶν ἀγγέλων εἰς τὸν κόλπον Ἀβραάμ (“morreu o pobre e foi levado pelos anjos para a habitação celeste”). Nossa busca pela devida compreensão de “κόλπον Ἀβραάμ” passa inicialmente por um viés lexical, nesse sentido Louw Nida o traduzem como: “a habitação celeste, com a implicação de relações interpessoais muito estreitas” [...] “em geral é interpretada  também como uma referência a festa no céu” (legitimando a tradução da NTLH), leitura oriunda de uma antiga tradição judaica (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do Novo Testamento, p.7). Além disso, (κόλπον Ἀβραάμ) pode indicar a “relação de filho com o pai” (κόλπος[7]Jo.1:18 - MORRIS. Lucas, p.238) ou outra maneira de dizer que alguém (aqui o pobre) foi “reunido aos pais” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.636).[8]  Mesmo com diferentes definições ainda assim, as delimitações no pós-morte não definitivas são expostas, pois o foco não parece estar em consonância com a ressurreição do corpo (1Co.15:50-58; 1Ts.4:13-18). Esse apontamento leva em conta a fala de Carson: “a história é uma parábola e, portanto, não fornece necessariamente informações literais sobre as condições na próxima vida [...] Embora seja manifestamente simbólico, fala de destinos reais para as pessoas.” (CARSON. New Bible Commentary, s. Lc 16:19).
    De outro lado, o “rico morreu e foi sepultado”, logo depois aparece no  “Hades (ᾅδηςA ARA e ACF traduzem como “inferno”)[9], estando em tormento” (ὑπάρχων ἐν βασάνοις. 16:23). Esse “ᾅδης” pode ser traduzido como “lugar dos mortos, incluindo tanto justos como ímpios”. Mas, em Lc.16:23 implica em “tormento e castigo” como aspectos suplementares, todavia, não integrantes do significado.[10] Como Lucas faz uso de “γέεννα (guéena – “um lugar onde os mortos são punidos”) em 12:5 é possível que a opção por “ᾅδης” em 16:23, reflita a intenção de enfatizar de incluir tanto os justos como os ímpios no Hádes (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do Novo Testamento, p.7). Essas perspectivas lexicais juntamente com as informações contextuais chancelam a ausência de definição quanto a punição exposta no estado final. Por esta razão, Howard Marshall explica que “a descrição por ser para o homem logo depois da sua morte é muito provável que signifique a morada intermediária dos mortos antes do julgamento final”. Além disso, βάσανος (“tormento”)[11] é uma característica tanto do estado intermediário como o final (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.636). Portanto, o uso de  “ᾅδης” no NT contribui com essa teste interpretativa, pois não define totalmente o estado final de condenação em seus desdobramentos (cf. Ap.20:14; 21:8 - ἡ λίμνη τοῦ πυρός).[12]
    Depois destas constatações os vs.24-31 serão desenvolvidos no “ᾅδης”, as petições do “rico” ao “pai Abraão” (respondidas). Isso ocorre, porque “Abraão ocupa uma posição de autoridade e importância. Ele é o pai espiritual de Israel” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.637). Portanto, por “estar atormentado” o rico deseja ser refrescado, mas Abraão nega veementemente (16:25). Logo depois, a petição ganha novo foco, agora envolvendo não o rico, mas sua casa paterna (16:27,28). Novamente a resposta dada pelo Pai Abraão é negativa, desta vez com o elemento fundante que envolve “Moisés e os profetas” (16:29, cf.Lc.24:27,44). Nesse momento a contestação desafia a afirmativa do v.29, pois “se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão” (16:30). Chegamos assim, ao ápice da diálogo, pois a supremacia de “Moisés e dos profetas” é chancelada como único elemento de impedimento para o “tormento” (16:31).  Desta forma, observamos que a dinâmica dos versos citados progride para a suficiência de “Moisés e os profetas” em conexão ao vs.16,17.

Ο νόμος καὶ οἱ προφῆται (16:16).
Μωϋσέα καὶ τοὺς προφήτας (16:29).[13]

     Assim, a dualidade escatológica ganha significado pelo contexto anterior no estabelecimento da relação parentética entre “a Lei” - “o reino” - “Moisés e os profetas”. O “divórcio” e “o trato com as riquezas” aparecem como elementos subservientes a esse padrão que funciona como síntese, apontando para as Escrituras. Por isso, na compreensão de Lucas a pregação das boas novas do reino de Deus, ao contrário de oferecer fácil entrada no reino, envolve uma intensificação das demandas da lei. O divórcio é usado como ilustração disso, mas o foco está sobre a confirmação e intensificação destas demandas da lei em conexão com as riquezas (NOLLAND. Luke WBC, p. 820). Numa percepção bem definida sobre a suficiência da Escritura nessa parte do discurso (16:31) Marshall afirma: “os milagres não vão convencer aqueles cujos corações são moralmente cegos e impenitentes; eles não serão persuadidos” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.639). Pfeiffe de outro lado trata a ação limitada do milagre, pois não produz fé por si mesmo (Pfeiffer; Harrison: The Wycliffe Bible Commentary : New Testament, s. Lc 16:29)
    Depois de levantarmos estes norteadores, voltemos a percepção de Herman Bavinck (1854-1921), tratada como pressuposto teológico neste ensaio: e assim, imediatamente depois da morte, os crentes desfrutam de um estado temporário de benção de Cristo no céu, assim também os incrédulos desde o momento de sua morte, entram em um lugar de tormento (BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.610,612). Encontramos apoio exegético no trato desenvolvido, pois contextualmente tratamos os apontamentos de Lc.16 quanto ao seu foco temático. Nesse caso, a administração das riquezas em subserviência a Palavra com desdobramentos escatológicos, vivenciados na antítese entre o “πλούσιος e o “πτωχός. Além disso, foi observado que o “ᾅδης não é visto como lugar definitivo no pós-morte, pois lhe falta consonâncias com as delimitações que envolvem o NT. Assim, esse lugar temporário pode ser definido como “estado intermediário”..    


[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).
[2]Havia um homem rico...”
[3]  um pobre chamado Lázaro...”
[4]  “morreu o pobre...”
[5] “morreu o rico”...
[6]  Agente último da passiva. Indica a última pessoa responsável pela ação, diretamente ou não envolvido. WALLACE Daniel. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo
Testamento
. São Paulo: Batista Regular, 2009
, p.433.
 
[7] Esta palavra aparece seis vezes no NT: Lc.6:38; 16:22;,23; Jo.1:18; 13:23; At.27:39. Mais quarenta e uma vezes na LXX.
[8] Gn.15:15; 47:30; Dt. 31:16
[9] Esta palavra aparece 10 vezes no NT: Mt.11:23; 16:18; Lc.10:15; 16:23; At.2:27,31; Ap.1:18; 6:8; 20:13,14.
[10]  É até possível que, por se dirigir aos leitores do mundo greco-romano, Lucas tenha usado ᾅδης num contexto que implica punição e tormento, pois era uma maneira típica de se ver o além no mundo greco-romano. LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do Novo Testamento, p.7.  
[11] Esta palavra aparece três vezes no NT: Mt.4:24; LC.16:23,28.
[12] “O lago de fogo”.
[13] “A lei e os profetas” – “Moisés e os profetas”.

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...