quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A Teologia Natural vista pela Dimensão Interpretativa de Rm.1:19,20 descreve um conhecimento de Deus interno ou externo?  

τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν, Rm 1:19).

Deus está trabalhando “neles” sempre que a revelação natural ocorre. O Senhor traz a convicção, não como uma característica objetiva do universo criado. Mas alguns defendem fortemente “entre eles”, desta  forma, a revelação em questão não por algum conhecimento interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p.80).

Ao construirmos uma genealogia da Teologia Natural, poderemos destacar postulados expostos por alguns teólogos nos últimos séculos. Recentemente, Alister McGrath trouxe alguns considerandos sobre este tema, de maneira que, um retorno está em voga. Neste ensaio, nosso recorte passará pela dimensão interpretativa da Teologia Natural, focando Rm.1:19-20, passagem de extrema importância para o trato em questão. Alguns estudiosos irão corroborar com as impressões deste ensaio (Dunn, Calvino, Morris, Cranfield e outros). Assim, analisaremos τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν (Rm 1:19), a partir das construções textuais, tendo como pressuposto a hermenêutica calvinista (gramático-histórico) e com a seguinte problemática: “o conhecimento de Deus” de 1:19 tem conotação interna ou externa? James Dunn afirma que algum tipo de Teologia Natural está em foco aqui (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.56).

Em primeiro lugar, pensaremos o quadro contextual de 1:19-20 envolvido na argumentação paulina. O duplo uso da ἀδικία (lê-se: adikía, “injustiça”) em 1:18 serve como resumo para a queda do homem e abertura para toda a seção (1:18-3:20). A rememoração disto, se dá pela repetição desta palavra em 1:29; 2:8 e 3:5. Estruturalmente, a acusação concentra-se primeiro no homem como tal, mas com efeito nos gentios, “eles” (1:18–32) contra o judeu “nós” (2:1–3:8), antes de resumir em 3:9–20. Isto é, o foco principal da crítica é a autoconfiança judaica de que a acusação quanto ao pecado gentio (1:18–32), não é aplicável ao próprio povo da aliança (2:1–3:20). Ao reduzirmos para o primeiro trato da seção (1:18-32) a ênfase está sobre “a ira de Deus sobre a humanidade, de uma perspectiva judaica” (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.51). Nesse viés, alguns apontamentos devem ser levados em conta: 1) o eco existente entre Gn.2-3 e Rm.1:19-25, pois, foi Adão que, acima de tudo, perverteu seu conhecimento de Deus e procurou escapar do status de criatura, assim, estabeleceu o padrão (Adão = homem) para uma humanidade que adora o ídolo em vez do Criador. 2) Igualmente significativo, no entanto, é o fato de que, no v.21 e esmagadoramente, a partir do v 23, Paulo fala como judeu e faz uso da polêmica judaica helenística contra a idolatria. O efeito em voga caracteriza a injustiça humana (Adão) de uma perspectiva judaica, isto é, aquela tipificada pela aversão à idolatria e à degradação da ética sexual dos gentios. 3) De outro lado, a repetição de ἤλλαξαν (“mudaram”, 1:23, de ἀλλάσσω), μετήλλαξαν (“mudaram”, 1:25,26, de μεταλλάσσω) e παρέδωκεν, o qual aparece três vezes em 1:24,26,28 (“entregou”, de  παραδίδωμι), “criando um poderoso senso do círculo vicioso do pecado humano - falha em reconhecer a Deus, levando à degeneração da religião e do comportamento. O orgulho humano colhendo o fruto da depravação humana e isso vemos em 1:24,26,27 e na descrição de uma maldade geral vista em 1:29-31 (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.53).    

 O fluxo argumentativo marcado pelas relações sintáticas trazem certas conjunturas conclusivas.

     Οὐ γὰρ ἐπαισχύνομαι τὸ εὐαγγέλιον,

      Porque não me envergonho do evangelho

          δύναμις γὰρ θεοῦ ἐστιν εἰς σωτηρίαν...

             Porque é o poder de Deus para a salvação...

          δικαιοσύνη γὰρ θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται...

             porque a justiça de Deus se revela nele...

    Ἀποκαλύπτεται γὰρ ὀργὴ θεοῦ ἀπ᾽ οὐρανοῦ...

    Porque a ira de Deus se revela do céu...

 

A primeira conjuntura é o paralelo entre a δικαιοσύνη θεοῦ (“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ (“a ira de Deus”) conectado pelo verbo ἀποκαλύπτεται (de ἀποκαλύπτω, “eu revelo”).  Além disso, tanto τὸ εὐαγγέλιον (“o evangelho”) como ἀπ᾽ οὐρανοῦ (“do céu”) aparecem como fontes destas respectivas “justiça e ira de Deus”. Nessa dinâmica, a conjunção γάρ (lê-se: gár) repetida em todos os versos determina o tipo de costura feita entre os textos. Dunn sugere fortemente que este γάρ traz “tanto contraste quanto causa”, quanto a δικαιοσύνη θεοῦ (“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ ([“ira de Deus”] DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.54). Este viés de constraste, segundo Calvino: “prova que a justiça só pode ser concebida ou conferida pela instrumentalidade do evangelho, porquanto, demonstra que todos os homens estão condenados” (CALVINO. Romanos, 2001, p.61).

         Em nossa tarefa de entender a dimensão interpretativa da Teologia Natural (pela problemática levantada), observaremos num viés lexical o adjetivo γνωστός (lê-se: gnostós, “conhecer”), o qual aparece quinze vezes no NT (na LXX em: Gn.2:9; Êx.33:6; Sl.76:1; Is.19:21 e em outras passagens), mas somente uma em Romanos (1:19). Seu domínio semântico “conhecer”, de forma reduzida no subdomínio “capaz de ser conhecido”, destaca γνωστός (lê-se: gnostós), especificamente, por Rm.1:19: “o que as pessoas podem conhecer a respeito de Deus está claro a elas [...] eles podem compreender o que se pode conhecer a respeito de Deus” (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do NT, baseado em Domínios Semânticos, p.306). Robertson entende γνωστός (lê-se: gnostós) como adjetivo verbal de γινωσκω, ou seja, “o conhecido”, como em outras partes de NT (At.1:19; 15:18, etc.) ou “o conhecível”, da mesma forma presente no costume grego antigo, que é “o conhecimento” (ἡ γνωσις) de Deus (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Rm 1:19). Cranfield afirma também γνωστός como “conhecível” e conclui que “há poucas dúvidas de que esse seja o seu sentido” (CRANFIELD. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Os desdobramentos textuais trarão mais luzes sobre esta questão.

            Assim, na segunda linha o apóstolo afirma: “o conhecimento de Deus é manifesto neles, porque Deus lhes manifestou” (...τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν). Esta parte traz certa problemática na tradução de τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς · ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν pelas diferenças nas versões em português: “o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou” (ARA, NVI) – “o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” (ARC) – “o que se pode conhecer de Deus eles o leem em si mesmos, pois Deus lho revelou com evidência” (AM). Basicamente, a divergência em questão passa pela percepção locativa e distributiva usadas como substratos sintáticos. Assim: “neles” ou “entre eles”?

“Neles” significa que a revelação ocorre basicamente na mente das pessoas (cf. ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Rm 1:19) Nesta visão, Deus está trabalhando “neles” sempre que a revelação natural ocorre. Desta forma, o Senhor traz a convicção, não como uma característica objetiva do universo criado. Entretanto, outros defendem fortemente “entre eles”, desta  forma, a revelação em questão ocorre não por algum conhecimento interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p.80). Neste viés de discussão, Cranfield entende a locução preposicional ἐν αὐτοῖς como: “no meio deles”, ao invés vez de “dentro deles” pela incompatibilidade com o que é dito nos vs.20,21. O significado é que τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ se manifesta no meio deles e ao redor deles” também em sua própria existência criativa Deus se manifesta objetivamente: toda a Sua criação o declara (CRANFIELD. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Para Calvino a locução dativa pode ser vista num viés locativo: “neles” – “esculpida no coração” (CALVINO. Romanos, 2001, p.63).   Entretanto, devemos ter em mente que Paulo usa a preposição ἐν (lê-se: en) com muita frequência (988 vezes; isso é mais de um terço do total de 2.713 do NT) e nem sempre com um significado preciso.

Em suma, essa percepção ligada numa concordância definida temos a indicação de que Deus não é conhecível na esfera autônoma do sujeito (uma convicção muito forte no judaísmo – cf. Êx 33:20; Dt 4:12), algo que nega uma indevida autonomia epistemológica, pois, na verdade, Ele Se deu a conhecer até certo ponto. Assim, a questão discutida provavelmente inclui o conhecimento comum sobre Deus, daí a severidade da acusação no final da v.20 (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.56). Assim, somos conscientizados por Dunn quanto a doação e limitação deste “conhecimento de Deus” (τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ). Sem considerações exaustivas quanto a propriedade e essência deste “conhecimento de Deus”, passamos para sua devida explicação. Num segundo momento este aspecto interno e externo tem aspectos fundantes explicativos pelo “paradoxo presente entre as coisas visíveis e invisíveis” defendido por Wuest (WUEST. Wuest's Word Studies from the Greek New Testament: For the English Reader, 1997, S. Rm 1:19). Desta forma, a conexão feita pelo γάρ (semântico funcional–lógica– explicativa) trabalha pormenores interessantes sobre a questão em foco. Assim, um viés estrutural pelo grego nos serve de organização argumentativa:    

τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου

porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo

τοῖς ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται,

pelas coisas criadas, são claramente percebidas, quando são reconhecidas (particípio adverbial condicional) ou porque é possível reconhecê-las (particípio adverbial causal) ou já que é reconhecível (particípio adverbial modal).    

ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης,

a saber, (τε... καὶ, Epexégetico), sua eternidade e divindade

εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους

de modo que (consecutivo) que são indesculpáveis

A primeira linha traz a qualificação necessária, para entendermos os desdobramentos que envolvem τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν. Em primeiro lugar, o paradoxo traz τὰ ἀόρατα αὐτοῦ (“as suas coisas invisíveis”) ligadas “a criação do mundo”, a partir do genitivo de fonte (ἀπὸ κτίσεως κόσμου). Numa coesão lexical, ἀόρατος aparece em Cl.1:15,16 nessa mesma dinâmica. Assim, “a criação” (κτίσις) tem papel preponderante neste viés epistemológico e pode ser vista em três sentidos: (1) o ato de criar (como aqui); (2) o resultado desse ato, o agregado das coisas criadas como em Cl.1:15 e provavelmente Rm.8:19; ou (3) uma criatura, uma única coisa criada como em Hb 4:13, e talvez Rm. 8:39 (SANDAY; HEADLAM. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans, 1897, p. 43). Numa síntese, Calvino associa os argumentos paulinos ao afirmar: “Deus em si mesmo, é invisível, porém, uma vez que sua majestade resplandece em todas  as suas obras e em todas as suas criaturas, os homens devem reconhecê-lo nelas, porquanto são uma viva demonstração de seu criador” (CALVINO. Romanos, 2001, p.64).

A luz da problemática em voga (“neles” e “entre eles”) em 1:20 alguns pontos devem ser observados. Inicialmente, o texto em sua primeira parte afirma:  τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται] ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης (a tradução foi realizada na página anterior).  O paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado pela junção do particípio/verbo (νοούμενα com καθορᾶται). O verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) aparece somente em Rm.1:20 no NT, entretanto, algumas vezes na LXX (Êx.10:5; Nm.24:2; Dt.26:15; Jó.10:4; 39:26). Por ser composto, κατά tem força de intensificação e pode ser visto como “algo claramente visto”, desta forma, o paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado. Além disso, está ligado ao particípio νοούμενα (de νοέω, “eu reconheço”), o qual é debatido em sua identificação adverbial, pois pode ser traduzido como condicional, causal ou modal. Mas, além disso, o verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) tem como objeto o dativo instrumental τοῖς ποιήμασιν (“pelo que foi feito”).

Em suma, a paráfrase por esses substratos sintáticos, chancela que “as coisas invisíveis, claramente são percebidas, pela criação, sendo reconhecidas/compreendidas...” (NVI). A apropriação epistemológica em voga passa pelo verbo νοέω (lê-se: noéo, usado no particípio) que tem conotação intelectual (cf.Jo.12:40; Ef.3:4,20), isto é, por mais precisamente que a frase νοούμενα καθορᾶται deva ser traduzida (“claramente percebida”; “visível aos olhos da razão”), dificilmente é possível que Paulo não pretendesse que seus leitores pensassem termos de algum tipo de percepção racional da realidade mais completa dentro e por trás do cosmos criado. (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.58).

    A trilogia usada por Paulo traz “as coisas invisíveis”: ἀΐδιος δύναμις καὶ θειότης (lê-se: aídios, “eterno”; dýnamis, “poder”; kaì theiótes “e divindade”). Esse conhecimento restrito de Deus, provavelmente, inclui conhecê-Lo como Criador, uma vez que Seu poder e divindade são conhecidos no mundo que Ele criou. Paulo também não está sugerindo que o conhecimento da existência e do poder de Deus seja o resultado de uma dedução ou de cuidados raciocínios, de modo que o texto possa ser usado, para incentivar uma argumentação racional. Em vez disso, esse conhecimento do Senhor é uma realidade para todas as pessoas, não apenas para aqueles que possuem mentes, incomumente, lógicas. Assim, chegam a um conhecimento de Deus, através do mundo criado porque “Deus fez manifestou a eles” (SCHREINER. Romans, 1998, p.86). Portanto, somos conscientizados pelo texto quanto ao conhecimento de Deus em sua proposta revelacional ligada a criação que expõe certas propriedades do Senhor. A ideia consecutiva conclui a situação do homem: “de modo que são indesculpáveis” (εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους).  Assim, a primeira ideia destaca que o homem foi criado para ser um espectador do mundo criado, e dotado com olhos com o propósito de ser guiado por Deus mesmo, o Autor do mundo para a contemplação de algo tão significante (CALVINO. Romanos, 2001, p.63).

Talvez, a plausibilidade do trato da questão possa ser vista como diferente. Em nosso contexto evangelical não costumamos pensar fatos teológicos por seus substratos textuais (vivemos no império da TS). A pretensão limitada deste ensaio passa por este objetivo inicial, de maneira que possamos a teologia pela percepção calvinista. Quanto a problemática levantada temos razões para ambas percepções (interno ou externo). Parece-me que a ambiguidade, neste caso, funciona como elemento fundante aqui. Não por ser a saída mais fácil, mas porque a expectação tem força argumentativa pela criação e não parece ser possível que esta leitura fuga das prerrogativas racionais presentes nos leitores de Paulo. 

domingo, 27 de outubro de 2019




“Toda Escritura (πᾶσα γραφὴ) é inspirada por Deus” (θεόπνευστος): Uma análise da Extensão e Qualificação singular da Escritura.  



Nos manuais de Teologia, 2Tm.3:16 tem certa proeminência, como substrato para provar que a Bíblia é “a comunicação verbalizada de Deus às Suas criaturas” (ARMSTRONG. Sola Scriptura, 2000, p.93). Reconhecemos neste ensaio, a importância deste pressuposto hermenêutico e partimos dele, para pensarmos, exegeticamente, 2Tm.3:16. Por isso, o roteiro em questão trará algumas problemáticas, a serem pensadas por dois elementos: a extensão: “Toda Escritura” (πᾶσα γραφὴ) aponta para que combinação: parte ou o inteiro do AT? O AT e o NT juntos? A qualificação: o adjetivo θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) tem conotação ativa ou passiva? Estas questões serão pensadas, a partir, de apontamentos exegéticos direcionadores.

πᾶσα γραφὴ (“Toda Escritura...”)
            Nossa primeira questão quanto a 3:16 é a extensão em foco: “toda Escritura”. Para tal análise passemos pelo texto grego, enfatizando o uso anarthro (sem artigo) da expressão: πᾶσα γραφὴ (lê-se: pâsa grafè). Neste viés, uma clarificação, quanto ao artigo no grego, deve ser observada, pois: “o nome pode ser definido se for anarthro e deve ser definido, se for articular” (WALLACE. Gramática Grega, 2009, p.243). Alguns estudiosos pensam este uso anarthro (πᾶσα γραφὴ) como definido. Robertson explica isto ao afirmar: “por duas vezes (1Pe.2:6; 2Pe.1:20) este γραφή (lê-se: grafé, “Escritura”) aparece no singular sem o artigo e ainda assim definido” (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, s.2Tm 3:16). Além disso, podemos questionar: o adjetivo anarthro πᾶσα (lê-se: pâsa, “toda”) aponta para algo partitivo ou holístico? O holístico parece ser mais coerente, pois, γραφή, se refere às Escrituras como um todo. Isso pode ser constatado em 2Pe.1:20 e frequentemente, mesmo quando uma passagem específica das Escrituras é citada. Vemos isto em 1Pe.2:6, por exemplo, pois, se diz que a passagem específica está “contida nas Escrituras”. O mesmo pode ser dito onde as Escrituras são personificadas (“as Escrituras dizem”) como em: Rm 4:3; 9:17; 10:11; Gl.4:30; 1Tm.5:18 (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.445).
          O contexto de 3:16 também deve ser considerado para a análise desta questão. Nele observarmos de forma paralela: [τὰ] ἱερὰ γράμματα (“as sagradas letras”) e πᾶσα γραφή (toda Escritura) funcionando numa conotação sinonímica. Quanto [τὰ] ἱερὰ γράμματα (“as sagradas letras”) esta expressão aparece somente aqui no NT e aponta para os escritos sagrados, os quais certamente referem-se às Escrituras judaicas, o AT (ARICHEA; HATTON: A Handbook on Paul's Letters to Timothy and to Titus, p.234). Este uso foi necessário, nesse contexto, provavelmente, por causa da origem judaica de Timóteo, já que a frase era usada entre os judeus de língua grega para designar o AT (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.443). Além disso, a expressão pode ter sido usada para enfatizar o caráter sagrado da aprendizagem de Timóteo, como um contraste total com as heresias estúpidas dos falsos mestres. Sendo assim, o aspecto pedagógico do pensamento judaico torna-se evidente aqui. A referência de Paulo às “sagradas Escrituras” em 3:15 é claramente uma declaração sobre o Antigo Testamento, algo continuado em 3:16 (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, pp.234,235).
      Essa constatação é correta pelo viés do contexto, mas, ainda assim, existem outros elementos que devem ser observados, os quais estão ligados ao poder das Sagras Escrituras (3:15). Antes deste postulado, o apóstolo reconhece a instrução dada a Timóteo, “desde a infância” (ἀπὸ βρέφους, genitivo adverbial de tempo), o que parece indicar por fontes rabínicas, que este ensino começava, a partir, do cinco ou seis anos de idade (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p.563). Talvez, esta prática tenha sido realizada por sua mãe, já que seu pai não era judeu (At.16:1). No restante de 3:15, o referido poder (τὰ δυνάμενά, “que podem”) das Sagradas Escrituras é construído numa progressividade distinta: ESCRITURA-SABEDORIA-SALVAÇÃO-FÉ  CRISTO. A frase εἰς σωτηρίαν (“para a salvação”) expressa o objetivo da instrução e do esforço cristão em geral [...] Provavelmente, a frase deva ser tomada amplamente com o precedente: todo o processo de vir à salvação pela fé. Corretamente entendido, o AT instrui no caminho cristão de salvação através da fé, mas, sem o conhecimento de Cristo e a devida fé nele, esta compreensão ficará prejudicada. Assim, se faz necessária uma interpretação cristã (MARSHALL; TOWNER. A Critical and Exegetical Commentary on the Pastoral Epistles, p.790).
Portanto, aqui começa a ser desenhado o estabelecimento do AT com o NT. O elemento comum a eles é justamente a salvação, διὰ πίστεως τῆς ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ (“...pela fé em Cristo Jesus”). Sobre isso Mounce afirma: A mensagem da salvação iniciada no AT tem sido cumprida no evangelho, e é isso que Timóteo deve pregar  (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p.564 [4:2]). Calvino é ainda mais enfático: “o apóstolo tem boas razões para lembrar-nos da fé que está em Cristo, a qual é o centro e a suma da Escritura(CALVINO João. Pastorais, p. 262). Desta forma, parece ser correta a percepção hermenêutica quanto a extensão “toda Escritura”, se dirigindo de forma holística ao AT juntamente com a hermenêutica cristológica presente no NT (cf. DOCKERY. Hermenêutica Contemporânea à Luz da Igreja Primitiva, 2001).  
 [πᾶσα γραφὴ] θεόπνευστος (“inspirada ou expirada”)  
Neste segundo momento, pensaremos a qualificação singular da Escritura exposta pelo adjetivo θεόπνευστος (lê-se: theópneystos). No léxico de Louw Nida este termo aparece no domínio “comunicação”, sendo desmembrado no subdomínio “pregar, proclamar”. Isso significa que pode ser visto como “algo relativo a comunicação que foi inspirada por Deus ou divinamente inspirada ou pode ser expresso ainda: Escritura, cujo escritor foi influenciado por Deus ou guiado por Ele (LOUW; NIDA. Léxico Grego- Português do NT, p.373). Como palavra composta θεόπνευστος é uma junção da palavra “Deus”, [θεὸς] e o verbo “respirar”, [πνέω]. Por esta razão, a tradução “inspirada por Deus”, embora sob a influência da Vulgata: “Omnis Scriptura Divinitus Inspirata” (MAIA. A Inspiração e Inerrância das Escrituras, 2008, p.64). Este θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) aparece somente aqui na Bíblia grega (hápax) e segundo Mounce “raramente pode ser encontrada na literatura pré-cristã” (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p. 565). Ainda assim, pelo contexto histórico observamos que a crença na inspiração da profecia e (geralmente em um sentido um pouco diferente), da poesia e da música era difundida na antiguidade mediterrânea. Essa crença foi aplicada naturalmente aos livros de profecia, e a maior parte do Antigo Testamento atribuída aos profetas. A reivindicação de Paulo pela inspiração das Escrituras corresponde às designações do Antigo Testamento para a lei e as profecias divinas como “Palavra de Deus”. Como o apóstolo, o judaísmo, virtualmente e universalmente, aceitava o Antigo Testamento como a Palavra de Deus (KEENER. InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament, 1993, S. 2Tm 3:16). Em suma, o caráter autoritativo da Escritura está em voga pelo viés lexical e histórico, pois descreve o papel de Deus como Seu autor.
Outra questão: θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) deve ser visto como ativo ou passivo (θεὸς + πνέω – “Deus + respirar”)? Neste viés, a tradução pode passar por caminhos diferentes, pois, o verbo de ligação subentendido “é”, pode ser colocado depois de γραφή (“a Escritura é inspirada por Deus”) ou [depois] de θεόπνευστος (“a Escritura inspirada por Deus é ...”).  Para ser mais claro ainda estas diferenças afirmam: ativo no significado, sugerindo que toda a Escritura tem um efeito inspirador. Significado passivo, sugerindo que toda a Escritura tem sua origem em Deus, é o produto do Seu sopro (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, p.236)?
Portanto, como forma verbal passiva, indica que a fonte da Escritura é o sopro de Deus, ou seja, que a própria é um resultado dessa ação. (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.446). Warfield, talvez seja aquele que mais trabalhou esta questão, afirma o passivo, pois θεόπνευστος em sua percepção: “não indica que a Escritura foi aspirada por Deus ou que seja produto da inalação divina sobre Seus autores, mas que é soprada por Deus, produto do sopro criador de Deus” (WARFIELD. A Inspiração e Autoridade da Bíblia, 2010, p.107). A menção deste termo [θεόπνευστος] não é primariamente para definir a natureza da Escritura, mas para dar uma razão, para que seja útil e eficaz para as funções que são mencionadas.[1] Entretanto, esta é uma verdade que está fundamentada na autoridade da Escritura em si. Por isso, Calvino destaca uma ordem argumentativa mais fiel ao texto, pois primeiro, o apóstolo recomenda a Escritura por causa de sua autoridade; e a seguir por causa do benefício que dela advém (CALVINO João. Pastorais, p.262). Sendo assim, a autoridade final para um cristão deve ser a Palavra de Deus, que vem do Criador como [Palavra] unificadora da Sua aliança (ARMSTRONG John. Sola Scriptura, p.94). Este aspecto divino da Escritura apresenta assim, sua devida suficiência.[2] Assim, a idéia que o termo apresenta é que Deus soprou Seu caráter nas Escrituras, para que fosse, inerentemente, inspirada. Paulo não estava afirmando que as Escrituras são inspiradoras, porque, desta forma, inspiram informações sobre Deus. As Escrituras devem sua origem e distinção ao próprio Deus. Esse é o seu caráter permanente. Ao afirmar a inspiração das Escrituras, Paulo declarou este fato [teológico] sem discutir o processo pelo qual ocorreu sopro (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, p.236).
       Depois desta sintética trajetória, observamos algumas hipóteses sobre as problemáticas levantadas. Em suma, quanto a extensão, πᾶσα γραφὴ realmente, parece fazer referência ao AT, mas não sem a hermenêutica cristológica que estabelece uma leitura retrospectiva (ler o AT pela hermenêutica ensinada por Cristo, centrada Nele) dos escritores do NT. Em segundo lugar, trabalhamos θεόπνευστος como passivo, indicando que Deus soprou nas Escrituras Seu caráter. Isto diz respeito ao processo de Escrituração do texto num viés divino-humano (sem algo mecânico).



[1] ARICHEA, Daniel C.; Hatton, Howard: A Handbook on Paul's Letters to Timothy and to Titus. New York: United Bible Societies, 1995 (UBS Handbook Series; Helps for Translators), S. 235. Warfield explica esta percepção ao evocar a tese do Prof. Hermann Cremer, a qual afirma: “θεόπνευστος não indica a origem das Escrituras, mas seus efeitos - e não como inspirada por Deus, mas inspirando seus leitores”. WARFIELD Benjamin. A Inspiração e Autoridade da Bíblia, pp.197,198.  
[2] A Confissão de Fé de Westminster sobre isso afirma: VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm. Acesso em 16/08 às 09:56.

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