A Teologia Natural vista pela Dimensão Interpretativa de
Rm.1:19,20 descreve um conhecimento de Deus interno ou externo?
τὸ
γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς
γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν, Rm 1:19).
Deus está trabalhando “neles” sempre que a revelação natural ocorre. O Senhor traz a convicção, não como uma característica objetiva do universo criado. Mas alguns defendem fortemente “entre eles”, desta forma, a revelação em questão não por algum conhecimento interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p.80).
Ao construirmos uma genealogia da Teologia Natural, poderemos
destacar postulados expostos por alguns teólogos nos últimos séculos. Recentemente,
Alister McGrath trouxe alguns considerandos sobre este tema, de maneira que, um
retorno está em voga. Neste ensaio, nosso recorte passará pela dimensão
interpretativa da Teologia Natural, focando Rm.1:19-20, passagem de extrema
importância para o trato em questão. Alguns estudiosos irão corroborar com as
impressões deste ensaio (Dunn, Calvino, Morris, Cranfield e outros). Assim, analisaremos
τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς·
ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν (Rm 1:19), a partir das
construções textuais, tendo como pressuposto a hermenêutica calvinista
(gramático-histórico) e com a seguinte problemática: “o conhecimento de Deus”
de 1:19 tem conotação interna ou externa? James Dunn afirma que algum tipo
de Teologia Natural está em foco aqui (DUNN. Word Biblical Commentary:
Romans 1-8, 2002, p.56).
Em primeiro lugar, pensaremos o quadro
contextual de 1:19-20 envolvido na argumentação paulina. O duplo uso da ἀδικία (lê-se:
adikía, “injustiça”) em 1:18 serve como resumo para a queda do homem e abertura
para toda a seção (1:18-3:20). A rememoração disto, se dá pela repetição desta
palavra em 1:29; 2:8 e 3:5. Estruturalmente, a acusação concentra-se primeiro
no homem como tal, mas com efeito nos gentios, “eles” (1:18–32) contra o judeu “nós”
(2:1–3:8), antes de resumir em 3:9–20. Isto é, o foco principal da crítica é a
autoconfiança judaica de que a acusação quanto ao pecado gentio (1:18–32), não
é aplicável ao próprio povo da aliança (2:1–3:20). Ao reduzirmos para o
primeiro trato da seção (1:18-32) a ênfase está sobre “a ira de Deus sobre a
humanidade, de uma perspectiva judaica” (DUNN. Word Biblical Commentary:
Romans 1-8, 2002, p.51). Nesse viés, alguns apontamentos devem ser levados
em conta: 1) o eco existente entre Gn.2-3 e Rm.1:19-25, pois, foi Adão
que, acima de tudo, perverteu seu conhecimento de Deus e procurou escapar do
status de criatura, assim, estabeleceu o padrão (Adão = homem) para uma
humanidade que adora o ídolo em vez do Criador. 2) Igualmente significativo,
no entanto, é o fato de que, no v.21 e esmagadoramente, a partir do v 23, Paulo
fala como judeu e faz uso da polêmica judaica helenística contra a idolatria. O
efeito em voga caracteriza a injustiça humana (Adão) de uma perspectiva judaica,
isto é, aquela tipificada pela aversão à idolatria e à degradação da ética
sexual dos gentios. 3) De outro lado, a repetição de ἤλλαξαν (“mudaram”, 1:23, de ἀλλάσσω), μετήλλαξαν (“mudaram”, 1:25,26, de μεταλλάσσω) e παρέδωκεν, o qual aparece
três vezes em 1:24,26,28 (“entregou”,
de παραδίδωμι), “criando um poderoso senso do círculo vicioso do
pecado humano - falha em reconhecer a Deus, levando à degeneração da religião e
do comportamento. O orgulho humano colhendo o fruto da depravação humana e isso
vemos em 1:24,26,27 e na descrição de uma maldade geral vista em 1:29-31 (DUNN.
Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.53).
O fluxo
argumentativo marcado pelas relações sintáticas trazem certas conjunturas
conclusivas.
Οὐ γὰρ ἐπαισχύνομαι
τὸ εὐαγγέλιον,
Porque não me envergonho do evangelho
δύναμις γὰρ θεοῦ ἐστιν εἰς σωτηρίαν...
Porque é o poder de Deus para a
salvação...
δικαιοσύνη γὰρ θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται...
porque a justiça de Deus se revela
nele...
Ἀποκαλύπτεται
γὰρ ὀργὴ θεοῦ ἀπ᾽ οὐρανοῦ...
Porque a ira de Deus se revela do céu...
A primeira conjuntura é o paralelo
entre a δικαιοσύνη θεοῦ
(“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ (“a ira de Deus”) conectado pelo verbo ἀποκαλύπτεται (de ἀποκαλύπτω, “eu revelo”). Além disso, tanto τὸ εὐαγγέλιον (“o
evangelho”) como ἀπ᾽ οὐρανοῦ (“do céu”) aparecem como fontes destas
respectivas “justiça e ira de Deus”. Nessa dinâmica, a conjunção γάρ (lê-se: gár) repetida
em todos os versos determina o tipo de costura feita entre os textos. Dunn sugere
fortemente que este γάρ traz “tanto
contraste quanto causa”, quanto a δικαιοσύνη θεοῦ (“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ ([“ira de Deus”] DUNN. Word Biblical Commentary:
Romans 1-8, 2002, p.54). Este viés de constraste, segundo Calvino: “prova
que a justiça só pode ser concebida ou conferida pela instrumentalidade do
evangelho, porquanto, demonstra que todos os homens estão condenados” (CALVINO.
Romanos, 2001, p.61).
Em nossa tarefa de entender a dimensão interpretativa da Teologia
Natural (pela problemática levantada), observaremos num viés lexical o adjetivo
γνωστός (lê-se: gnostós, “conhecer”), o qual aparece
quinze vezes no NT (na LXX em: Gn.2:9; Êx.33:6; Sl.76:1; Is.19:21 e em outras
passagens), mas somente uma em Romanos (1:19). Seu domínio semântico “conhecer”,
de forma reduzida no subdomínio “capaz de ser conhecido”, destaca γνωστός (lê-se:
gnostós), especificamente, por Rm.1:19: “o que as pessoas podem conhecer a
respeito de Deus está claro a elas [...] eles podem compreender o que se pode conhecer
a respeito de Deus” (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do NT, baseado
em Domínios Semânticos, p.306). Robertson entende γνωστός (lê-se:
gnostós) como adjetivo verbal de γινωσκω, ou
seja, “o conhecido”, como em outras partes de NT (At.1:19; 15:18, etc.) ou “o
conhecível”, da mesma forma presente no costume grego antigo, que é “o
conhecimento” (ἡ
γνωσις) de Deus (ROBERTSON. Word Pictures
in the New Testament, 1997, S. Rm 1:19). Cranfield afirma também γνωστός como “conhecível” e conclui que “há poucas dúvidas de
que esse seja o seu sentido” (CRANFIELD. A Critical and Exegetical
Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Os desdobramentos textuais trarão mais luzes sobre esta
questão.
Assim, na segunda linha o apóstolo
afirma: “o conhecimento de Deus é manifesto neles, porque Deus lhes manifestou”
(...τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν
αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν). Esta
parte traz certa problemática na tradução de τὸ γνωστὸν τοῦ
θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς · ὁ
θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν pelas diferenças nas
versões em português: “o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou” (ARA,
NVI) – “o que de Deus se pode conhecer neles se
manifesta, porque Deus lho manifestou” (ARC) – “o que se pode conhecer de Deus eles o leem em
si mesmos, pois Deus lho revelou com
evidência” (AM). Basicamente, a divergência
em questão passa pela percepção locativa e distributiva usadas como substratos
sintáticos. Assim: “neles” ou “entre eles”?
“Neles”
significa que a revelação ocorre basicamente na mente das pessoas (cf. ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament,
1997, S. Rm 1:19) Nesta visão, Deus está trabalhando “neles” sempre que a
revelação natural ocorre. Desta forma, o Senhor traz a convicção, não
como uma característica objetiva do universo criado. Entretanto, outros
defendem fortemente “entre eles”, desta
forma, a revelação em questão ocorre não por algum conhecimento
interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle
to the Romans, 1988, p.80). Neste viés de discussão, Cranfield entende a locução preposicional ἐν
αὐτοῖς como: “no meio deles”, ao invés vez de “dentro deles”
pela incompatibilidade com o que é dito nos vs.20,21. O
significado é que τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ se manifesta no meio deles e
ao redor deles” também em sua própria existência criativa Deus se manifesta
objetivamente: toda a Sua criação o declara (CRANFIELD.
A
Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Para Calvino a locução dativa pode ser vista num viés
locativo: “neles” – “esculpida no coração” (CALVINO. Romanos, 2001,
p.63). Entretanto,
devemos ter em mente que Paulo usa a preposição ἐν (lê-se: en)
com muita frequência (988 vezes; isso é mais de um terço do total de 2.713 do
NT) e nem sempre com um significado preciso.
Em suma, essa
percepção ligada numa concordância definida temos a indicação de que Deus
não é conhecível na esfera autônoma do sujeito (uma convicção muito
forte no judaísmo – cf. Êx 33:20; Dt 4:12), algo que nega uma indevida
autonomia epistemológica, pois, na verdade, Ele Se deu a conhecer até
certo ponto. Assim, a questão discutida provavelmente inclui o conhecimento
comum sobre Deus, daí a severidade da acusação no final da v.20 (DUNN. Word
Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.56). Assim, somos conscientizados
por Dunn quanto a doação e limitação deste “conhecimento de Deus” (τὸ
γνωστὸν τοῦ θεοῦ). Sem
considerações exaustivas quanto a propriedade e essência deste “conhecimento de
Deus”, passamos para sua devida explicação. Num segundo momento este aspecto
interno e externo tem aspectos fundantes explicativos pelo “paradoxo presente
entre as coisas visíveis e invisíveis” defendido por Wuest (WUEST. Wuest's Word Studies from the
Greek New Testament: For the English Reader, 1997, S. Rm 1:19). Desta forma, a conexão feita pelo γάρ (semântico funcional–lógica– explicativa) trabalha pormenores interessantes sobre a questão em
foco. Assim, um viés estrutural pelo grego nos serve de organização argumentativa:
τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου
porque as suas coisas invisíveis, desde a
criação do mundo
τοῖς ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται,
pelas coisas criadas, são claramente percebidas, quando
são reconhecidas (particípio adverbial condicional) ou porque é possível
reconhecê-las (particípio adverbial causal) ou já que é reconhecível (particípio
adverbial modal).
ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης,
a saber, (τε... καὶ, Epexégetico), sua eternidade e
divindade
εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους
de modo que (consecutivo) que são indesculpáveis
A primeira linha traz a qualificação
necessária, para entendermos os desdobramentos que envolvem τὸ
γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν. Em
primeiro lugar, o paradoxo traz τὰ ἀόρατα αὐτοῦ (“as suas coisas invisíveis”) ligadas “a criação do
mundo”, a partir do genitivo de fonte (ἀπὸ κτίσεως
κόσμου). Numa coesão lexical, ἀόρατος
aparece em Cl.1:15,16 nessa mesma dinâmica. Assim, “a
criação” (κτίσις) tem
papel preponderante neste viés epistemológico e pode ser vista em três
sentidos: (1) o ato de criar (como aqui); (2) o resultado desse ato, o agregado
das coisas criadas como em Cl.1:15 e provavelmente Rm.8:19; ou (3) uma
criatura, uma única coisa criada como em Hb 4:13, e talvez Rm. 8:39 (SANDAY; HEADLAM.
A Critical and
Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans, 1897, p. 43). Numa síntese, Calvino associa os argumentos paulinos ao
afirmar: “Deus em si mesmo, é invisível, porém, uma vez que sua majestade
resplandece em todas as suas obras e em
todas as suas criaturas, os homens devem reconhecê-lo nelas, porquanto são uma
viva demonstração de seu criador” (CALVINO. Romanos, 2001, p.64).
A luz da problemática em voga (“neles”
e “entre eles”) em 1:20 alguns pontos devem ser observados. Inicialmente, o
texto em sua primeira parte afirma: τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται] ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις
καὶ θειότης (a tradução foi realizada na página anterior). O
paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado pela junção do particípio/verbo (νοούμενα com καθορᾶται). O verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) aparece
somente em Rm.1:20 no NT, entretanto, algumas vezes na LXX (Êx.10:5; Nm.24:2;
Dt.26:15; Jó.10:4; 39:26). Por ser composto, κατά tem força
de intensificação e pode ser visto como “algo claramente visto”, desta forma, o
paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado. Além disso, está ligado ao
particípio νοούμενα (de νοέω, “eu reconheço”), o qual
é debatido em sua identificação adverbial, pois pode ser traduzido como
condicional, causal ou modal. Mas, além disso, o verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) tem como
objeto o dativo instrumental τοῖς ποιήμασιν (“pelo que foi feito”).
Em suma, a paráfrase por esses
substratos sintáticos, chancela que “as coisas invisíveis, claramente são percebidas,
pela criação, sendo reconhecidas/compreendidas...” (NVI). A apropriação
epistemológica em voga passa pelo verbo νοέω (lê-se: noéo, usado no particípio) que tem conotação intelectual (cf.Jo.12:40; Ef.3:4,20), isto
é, por mais precisamente que a frase νοούμενα καθορᾶται deva ser traduzida (“claramente percebida”; “visível aos
olhos da razão”), dificilmente é possível que Paulo não pretendesse que seus
leitores pensassem termos de algum tipo de percepção racional da realidade mais
completa dentro e por trás do cosmos criado. (DUNN. Word Biblical
Commentary: Romans 1-8, 2002, p.58).
A trilogia usada por Paulo traz “as coisas
invisíveis”: ἀΐδιος δύναμις καὶ θειότης (lê-se: aídios, “eterno”; dýnamis, “poder”;
kaì theiótes “e divindade”). Esse conhecimento restrito
de Deus, provavelmente, inclui conhecê-Lo como Criador, uma vez que Seu poder e
divindade são conhecidos no mundo que Ele criou. Paulo também não está
sugerindo que o conhecimento da existência e do poder de Deus seja o resultado
de uma dedução ou de cuidados raciocínios, de modo que o texto possa ser usado,
para incentivar uma argumentação racional. Em vez disso, esse conhecimento do
Senhor é uma realidade para todas as pessoas, não apenas para aqueles que
possuem mentes, incomumente, lógicas. Assim, chegam a um conhecimento de Deus,
através do mundo criado porque “Deus fez manifestou a eles” (SCHREINER. Romans,
1998, p.86). Portanto, somos conscientizados pelo texto quanto ao conhecimento
de Deus em sua proposta revelacional ligada a criação que expõe certas
propriedades do Senhor. A ideia consecutiva conclui a situação do homem: “de
modo que são indesculpáveis” (εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους). Assim, a
primeira ideia destaca que o homem foi criado para ser um espectador do mundo
criado, e dotado com olhos com o propósito de ser guiado por Deus mesmo, o
Autor do mundo para a contemplação de algo tão significante (CALVINO. Romanos,
2001, p.63).
Talvez, a plausibilidade do trato da
questão possa ser vista como diferente. Em nosso contexto evangelical não costumamos pensar
fatos teológicos por seus substratos textuais (vivemos no império da TS). A
pretensão limitada deste ensaio passa por este objetivo inicial, de maneira que
possamos a teologia pela percepção calvinista. Quanto a problemática levantada
temos razões para ambas percepções (interno ou externo). Parece-me que a
ambiguidade, neste caso, funciona como elemento fundante aqui. Não por ser a
saída mais fácil, mas porque a expectação tem força argumentativa pela criação
e não parece ser possível que esta leitura fuga das prerrogativas racionais
presentes nos leitores de Paulo.