MILÊNIO (QUE “MIL ANOS”
SÃO ESSES?): UMA ANÁLISE DO CONTEXTO E CONTEÚDO de Ap.20:1-3 (1ª PARTE)
PRESSUPOSTA PELO MILENARISMO INAUGURADO (Amilenismo).
A partir de pressupostos hermenêuticos
distintos (a “tábula rasa” morreu!), existem diferentes abordagens sobre o
milênio de Ap.20. Detectamos isto, ao observarmos na história da interpretação,
as linhas exegéticas construídas, vistas em sua progressividade, estabelecendo
caminhos antitéticos. Assim, ao problematizarmos os elementos que envolvem esta
questão, procuraremos entender numa dimensão teológica da
interpretação de 20:1-6, o Milenarismo Inaugurado[2] (interpretação teológica), por suas bases exegéticas
(“exegese crítica” CARSON. A Exegese e Suas Falácias, p.14) que
comprovam sua existência. Além disso, de que forma conectar
20:1-6 ao cap.19: num viés cronológico e histórico ou numa recapitulação
(19:17-21 simultâneo a 20:7-10)? Neste ensaio trabalharemos com alguns autores como
Gregory Beale, William Hendriksen, Simon Kistemaker, Grant Osborne, David Aune,
e outros (que não tem o mesmo pressuposto hermenêutico), para a pesquisa
delimitada pelas problemáticas levantadas. O caminho estrutural que será
percorrido, envolverá dois pontos: 1) Ap.20
visto em sua delimitação contextual e 2) a análise do conteúdo da visão
reduzida aos vs.1-3.
Numa dimensão exegética, ao pensarmos
a questão que envolve o contexto, focaremos em alguns elementos fundantes que
serão norteadores neste quesito. A defesa neste ensaio, quanto
ao pressuposto, afirma que a dimensão teológica de Ap.20:1-3 aponta para o Milenarismo
Inaugurado. Beale o define como: “o
período da visão se estende da ressurreição de Cristo até a Sua vinda”
(BEALE.
The
Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.984). Os fundamentos probatórios desta tese que envolvem a
“Exegese Crítica” são os seguintes: 1)
o uso da expressão inicial de 20:1 (καὶ εἶδον - “e
vi”) que
aparece em outros lugares do Apocalipse (5:1; 6:1;
8:2; 10:1; 14:1; 15:1; 20:1) numa conotação transicional; 2) “as cenas repetitivas de julgamento” (11:18; 14:14-20;
16:17-21; 19-11-21; 20:11-15), as quais não precisam ser vistas como
cronológicas (KISTEMAKER. Apocalipse, 2014, p.691). Nessa
dinâmica, a frase “vi um anjo descendo do céu” (Καὶ εἶδον ἄγγελον καταβαίνοντα ἐκ τοῦ οὐρανοῦ), como explica Aune, ocorre também com leve variação em 10:1 e 18:1 (AUNE.
Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, S.1081). 3) O
evento (juízo) narrado em 19:11-21 é recapitulado em 20:7-15. Além disso, observamos, mais
estritamente a ligação de 19:19-21 com 20:9,10, pois ambos tratam do
juízo final sobre personagens distintos: no primeiro “a besta, o falso profeta
e seus seguidores”, no segundo “as nações seduzidas e o diabo”. Numa paráfrase
poderíamos afirmar: “depois que o Messias venceu a besta, o falso profeta e
seus soldados, eu vi ...” (BRATCHER. HATTON. A
Handbook on the Revelation to John, 1993, S. 285).
Ao nos voltarmos para o fundamento do AT, num viés que envolve promessa/cumprimento, associamos Ap.20-21 a Ez.37-48 num sentido quádruplo: 1) a ressurreição do povo de Deus (20:4a; Ez.37:1-14); 2) o reino messiânico (20:4b-6; Ez.37:15-28); 3) a batalha final contra Gogue e Magogue (20:7-10; Ez.38-39); 4) a visão final do novo templo a e da Nova Jerusalém, descrita como Éden restaurado e assentado sobre um monte muito alto (21:1-22:5; Ez.40-48). Ao afirmarmos que João usou como base Ezequiel, detectamos a origem da recapitulação, como ocorre em Ez.39, relacionado a Ez.38. Desta forma, parece que João está seguindo a mesma linha (BEALE. CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, 2014, p.1393). Por estas delimitações, o contexto pelo viés desta recapitulação faz sentido e assim, 20:1 funciona anteriormente (temporalmente se falando) a 19:19-21 e 20:7-10. O Milenarismo Inaugurado se encaixa nestes apontamentos exegéticos.
Ao nos voltarmos para o fundamento do AT, num viés que envolve promessa/cumprimento, associamos Ap.20-21 a Ez.37-48 num sentido quádruplo: 1) a ressurreição do povo de Deus (20:4a; Ez.37:1-14); 2) o reino messiânico (20:4b-6; Ez.37:15-28); 3) a batalha final contra Gogue e Magogue (20:7-10; Ez.38-39); 4) a visão final do novo templo a e da Nova Jerusalém, descrita como Éden restaurado e assentado sobre um monte muito alto (21:1-22:5; Ez.40-48). Ao afirmarmos que João usou como base Ezequiel, detectamos a origem da recapitulação, como ocorre em Ez.39, relacionado a Ez.38. Desta forma, parece que João está seguindo a mesma linha (BEALE. CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, 2014, p.1393). Por estas delimitações, o contexto pelo viés desta recapitulação faz sentido e assim, 20:1 funciona anteriormente (temporalmente se falando) a 19:19-21 e 20:7-10. O Milenarismo Inaugurado se encaixa nestes apontamentos exegéticos.
Ao pensarmos no conteúdo da visão, observamos inicialmente: “Καὶ εἶδον ἄγγελον
καταβαίνοντα ἐκ τοῦ οὐρανοῦ ἔχοντα τὴν κλεῖν τῆς ἀβύσσου καὶ ἅλυσιν μεγάλην
ἐπὶ τὴν χεῖρα αὐτοῦ” (E vi
um anjo, descendo do céu, tendo
[modal] a chave[3]
para o abismo[4]
[Genitivo Objetivo] e uma grande corrente na mão dele). O texto destaca o plano
imaterial das questões focadas, pois se trata de uma visão (Gênero Apocalítico).
Isso define o aspecto metafórico da exposição em seus desdobramentos. As
figuras da “chave (κλείς) do abismo” e da “grande corrente” (ἅλυσιν μεγάλην) são usadas, para “segurar” (κρατέω) e “prender” (δέω) “o diabo”, ou seja, “a antiga serpente” (ὁ ὄφις ὁ ἀρχαῖος), “satanás” (σατάν). O período de sua prisão é de “mil anos” (χίλια ἔτη). Todos estes termos tem seus devidos significados nesta
passagem
Quanto a “chave” (κλείς), numa coesão lexical, aparece seis vezes no NT
(Mt.16:19; Lc.11:52; Ap.1:18; 3:7; 9:1; 20:1), sendo que destas, quatro somente no Apocalipse.
Portanto, como em 6:8, 9:1-2 em 20:1-3, segundo
Beale: “aponta para o reino satânico que está sob a autoridade de Cristo,
executado por um anjo mediador, embora agora (20:1) somente o diabo esteja sob
a autoridade deste anjo” (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the
Greek Text, 1999, S.984). Essa percepção
interpretativa está fundamentada em Is.24:21,22 (esta conexão também é sugerida
em Is.27:1) e encontra seu cumprimento aqui (BEALE.
CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento,
2014, p.1393). Tudo isso, para mostrar
que o abismo é a prisão do diabo e nisto, Deus está no controle absoluto (OSBORNE
Grant. Apocalipse Comentário Exegético,
2014, p.782).
De
outro lado, “a antiga serpente” (ὁ ὄφις ὁ ἀρχαῖος) vista em conexão a 2Rs.18:4[5] ou
Gn.3[6] tem o
tempo de detenção decretado: “mil anos”. Mas, ao que se refere? A tese
do simbolismo nos serve de parâmetro, desta forma a expressão χίλια[7] ἔτη (“mil
anos”) é vista aqui desta forma (o que não é diferente do restante do livro).
Ainda assim, fica a questão: para que este simbolismo aponta? Esta ideia
pode ter se originado da reflexão no Sl.90:4 (passagem que está por trás de
2Pe.3:8).[8] Beale
chama este período de “era da igreja”, e explica que é importante lembrar o gênero do Apocalipse, ao lermos
20:1-6. Especialmente a natureza programática de Ap.1:1, a qual afirma o
simbolismo geral da comunicação do anjo mediador passado a João. Além disso, o
introdutório repetido “eu vi” (ou expressões semelhantes) ao longo do livro descrevem
as visões simbólicas (4:1; 12:1-3; 13:1-3; 14: 1). Uma vez que “eu vi” (εἶδον) introduz tanto 20:1-3 como 20:4-6, podemos supor que há
pelo menos três níveis de comunicação nessa passagem: (1) visionário, consistindo na experiência excêntrica
e real que João teve ao ver as pessoas ressuscitadas e os outros objetos de
sua visão, (2) referencial,
incidindo na identificação histórica particular das pessoas
ressuscitadas e dos outros objetos vistos na visão, e (3) simbólico, definindo o que os símbolos (na visão) significam
sobre seus referentes históricos (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the
Greek Text, 1999, p.973). Essa abordagem busca a totalidade,
para definir essa passagem a luz do contexto do livro.
O objetivo da prisão do diabo é exposto da
seguinte forma: “... ἵνα μὴ πλανήσῃ ἔτι τὰ ἔθνη ἄχρι τελεσθῇ τὰ χίλια ἔτη” (“... para que não enganasse ainda as nações, até que
completasse os mil anos”). Em primeiro lugar, devemos entender a
restrição determinada sobre satanás como resultado da ressurreição de Cristo. Sua vitória funcionando como marco inaugurador do “End Time”, o “reino messiânico”
(BEALE. A New Testament Biblical Theology,
2011, p.901). Se assim
for, a ligação, a expulsão e a queda de Satanás podem ser vistas em outras
passagens do NT, as quais afirmam com os mesmos termos (“amarrar”, “lançar”,
etc.) a derrota decisiva do demônio, ocorrida na morte e ressurreição de Cristo
(Mt.12:29, Mc.3:27, Lc.10: 17-19; Jo.12: 31-33; Cl. 2:15; Hb.2:14). Mais
precisamente, a ligação provavelmente, foi inaugurada durante o ministério de
Cristo.[9] Outra
tese é usada por Kistemaker, pois explica que a palavra “nação” (ἔθνος) aparece 23 vezes no Apocalipse, destas 16 vezes com
artigo definido e no plural: as nações (τὰ ἔθνη). Ao
reduzirmos mais ainda as últimas três (das 16) referem-se as nações redimidas
em glória (21:24,26; 22:2) e as outras treze a classe daquelas gentias. Assim,
a abrangência (não somente Israel) estabelecida no NT tornou-se uma realidade (KISTEMAKER Simon. Apocalipse, 2014, p.697).
Evidente que as
pretensões deste ensaio são limitadas e não respondem algumas perguntas. Entretanto,
ainda assim, produz certa inquietação com a necessidade de se pensar a teologia
num viés interpretativo (exegese crítica). Ao percorrer Ap.20:1-3 desta forma,
percebemos que contextualmente a tese da Recapitulação faz sentido por questões
vocabulares, envolvendo a fórmula de transição e o encontro dos personagens.
Além disso, pelo viés do AT na associação feita com Ez.38-39. Quanto a
explicação dos conceitos, fundamentados na questão do gênero tivemos linhas
definidas, as quais negam a literalidade em foco (defendida pelos
pré-milenistas). Isso se torna mais explícito, quando entendemos que a
ressurreição de Cristo é a causa da prisão de Satanás, pois o evangelho neste
momento, passa a alcançar todas as nações. Diante de tudo isso, o Milenarismo
Inaugurado funciona com suas devidas bases textuais.
[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por
Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).
[2]
Há três visões predominantes do milênio, embora dentro de cada perspectiva haja
grandes variações de interpretação que não podem ser catalogadas aqui. (1)
Alguns acreditam que o milênio ocorrerá após a segunda vinda de Cristo. Essa
visão é tradicionalmente conhecida como pré-milenismo. (2) O pós-milenismo
sustenta que o milênio ocorre no final da era da igreja e que a chegada do
clímax de Cristo ocorrerá no final do milênio. (3) Outros acreditam que o
milênio começou na ressurreição de Cristo e será concluído em sua vinda final.
Essa visão tem sido chamada de amilenismo, embora seja melhor chamá-la, mais
simplesmente, de “milenarismo inaugurado”, já que o primeiro é mais vago. O
pós-milenismo e o amilenismo têm abordado a passagem de maneira mais
consistente, de acordo com uma interpretação simbólica. Beale, G. K.: The Book of Revelation : A
Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.; Carlisle, Cumbria : W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1999, p. 972.
[3]
Esta palavra aparece 6 vezes no NT, sendo que 4 no Apocalipse: 1:18; 3:7; 9:1;
20:1.
[4]
Esta palavra aparece 9 vezes no NT, sendo que 7 no Apocalipse: 9:1,2,11; 11:7;
17:8; 20:1,3.
[6] DAVIS, Christopher A.: Revelation.
Joplin, Mo. : College Press Pub., 2000 (The College Press NIV Commentary), p.
248
[8] OSBORNE
Grant. Apocalipse Comentário Exegético,
pp.783,784.
[9]
Ibid.985.