quinta-feira, 25 de junho de 2020



O SIGNIFICADO DO σήμερον (Lc.23:43) VISTO COM MAIS INTENSIDADE NUMA DINÂMICA TEOLÓGICA DO QUE CRONOLÓGICA.  

... καὶ εἶπεν αὐτῷ· ἀμήν σοι λέγω, σήμερον μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ.

 E ele lhe disse: Em verdade, eu lhe digo HOJE: Você estará comigo no Paraíso” (TNM).
“E disse-lhe [Jesus]: Em verdade te digo que HOJE estarás comigo no Paraíso”. (ACF, ARC).

Desta forma, σήμερον numa ênfase teológica aponta para o dia da salvação, pela da morte e ressurreição de Jesus. Embora “como resultado, isso tenha acontecido temporalmente naquele dia, σήμερον na visão de Lucas pertence mais à teologia do que à cronologia (STEIN. Luke, The New American Commentary, 1992, s,593).

Em Lc.23:43 algumas questões hermenêuticas são respondidas antiteticamente, por meio de alguns posicionamentos interpretativos. Por esta razão, as controvérsias que envolvem este texto, dividem os pesquisadores e igrejas em seus pressupostos hermenêuticos. Em suma, reduziremos estas questões complexas de Lc.23:43, para pensarmos a seguinte problemática: o significado de Lc.23:43 funciona com mais intensidade numa ênfase cronológica ou teológica? Para trabalharmos esta questão: 1) analisaremos os pontos que envolvem o texto grego (tradução e sintaxe) da referida passagem; 2) exporemos as percepções cronológicas que envolvem σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) com suas ligações e finalmente, 3) destacaremos a interpretação que fundamenta-se no foco teológico.
A tradução de Lc.23:43 passa inicialmente pela comparação do texto Crítico (Nestle Aland 28 Edição) e Majoritário (Byzantine Text Form, 2005) com suas particularidades. Isto nos leva a entender os fundamentos das versões em português, quanto a suas escolhas na árdua tarefa de traduzir.  
Καὶ εἶπεν αὐτῷ ὁ Ἰησοῦς, Ἀμὴν λέγω σοι, σήμερον μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ. (Byzantine Text Form, 2005).
            Este exercício de comparação destaca que ὁ Ἰησοῦς (lê-se: ho Iesûs) funciona como diferencial entre o Crítico e o Majoritário. As versões em português em sua maioria seguem o texto majoritário (ARC, ACF, NVI, ARA, BA), por isso, traduzem assim: “e disse-lhe Jesus...” Neste caso, parece que o contexto legitima esta tradução em seu fluxo argumentativo, muito mais que o aparato crítico (αὐτῷ S0- î75 a B D L a b ec  f ff2 q >> - Ἰησοῦς A2 69 MT TR >>, cf. The Center for New Testament Textual Studies NT Critical Apparatus). A outra questão que envolve a tradução deste verso é de cunho mais sintático, pois o advérbio σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) altera o verbo λέγω (lê-se: légo, “falo”) ou ἔσῃ (Lê-se: ése, “estarás”)?
      A TNM (tradução novo mundo) em antítese a maioria das versões em português, liga o advérbio ao presente: E ele lhe disse: Em verdade, eu lhe digo HOJE: Você estará comigo no Paraíso”.[1]  As outras  versões (ARC, ACF, NVI, ARA, BA) focam o futuro: “em verdade te digo que HOJE estarás comigo no paraíso”. Quando tratarmos as percepções cronológicas, exporemos os fundamentos explicativos destas traduções. Entretanto, de forma imediata fiquemos com a fala de Robertson: “não está claro se o malfeitor espera uma bênção imediata ou apenas no julgamento (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Lc 23:42).
Como acabamos de observar, a Tradução Novo Mundo (TNM) exprime Lc.23:43, num viés em que o advérbio σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) altera λέγω (lê-se: légo, “falo”), mas por quais razões? Em primeiro lugar, a passagem em foco tem conotação anfibológica por causa da posição do σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) entre os verbos.[2] Isto traz certa complexidade sobre a tradução. Entretanto, esta tradução/interpretação (TNM) quando ligada ao cumprimento da promessa μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ (... estarás comigo no paraíso”), serve de fundamento, pois realmente se deu no mesmo dia da crucificação de Jesus? Albert Timm destaca que, se o propósito de Cristo em Lucas 23:43 fosse prometer ao bom ladrão que este estaria com Ele ‘no paraíso’ naquele mesmo dia, então a promessa acabou não se cumprindo, pois dois dias mais tarde o próprio Cristo afirmou que ainda não subira para Seu Pai” (Jo.20:17, Centro de Pesquisas Ellen White)[3].Desta forma, o caminho interpretativo foca a recompensa dos justos que ocorrerá somente depois da segunda vinda de Cristo. A Bíblia tem vários exemplos registrados disto (Ap.22:12; Mt.16:27; 1Pe.5:4; 2Tm.4:8). Portanto, “a interpretação de Lc.23:43 (que afirma “hoje estarás”) “é um falso pilar, em que se ergue a teoria da imortalidade inata no homem e seu imediato galardão post mortem” (Hoje estarás comigo no paraíso”: Da Apostila Explicação de Textos Difíceis, //downloads.adventistas.org/pt/)[4].
De outro lado, Lc.23:43 em sua tradução/interpretação pode funcionar em antítese ao que foi exposto. Para estabelecer os postulados em questão desta percepção, nos voltemos inicialmente ao contexto lógico de Lc.23:43 que tem como precedente e subsequente a crucificação de Cristo (23:33-38,44-49). Desta forma, 23:39-43 funciona como interlúdio, destacando os posicionamentos dos κακοῦργοι (lê-se: kakûrgoi, “malfeitores” de κακοῦργος) no momento da crucificação (Lc.23:32,33,39, fora dos evangelhos somente em 2Tm.2:9). Em suma 23:39-43 narra duas atitudes em contraste que conduziram a condenação e salvação (passagem exclusiva a Lucas, cf. Mc.15:32; Mt.27:44). Com isto em mente entendemos que os vs.41,42 descrevem o arrependimento (v.41) e pedido/reconhecimento (v.42) do segundo malfeitor, respondido por Jesus (v.43). Assim, parece complicado dissociar o pedido em questão da crucificação de Jesus, pois o malfeitor arrependido (e não “bom ladrão”) interpreta o sofrimento do Senhor como algo salvífico.    
O advérbio σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) alterando ἔσῃ (Lê-se: ése, “estarás”) está presente em algumas versões em português:Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” (ACF, ARA, ARC, NVI). Bock trabalha com esta tese, pois entende que Lc.23:43 foca o presente imediato, pois “o pedido é concedido hoje” (BOCK. Luke Volume 2 Baker Exegetical Commentary on the New Testament, 1996, S. 1857). John Nolland corrobora: “Jesus no momento de sua morte trouxe salvação” (NOLLAND. Word Biblical Commentary: Luke 18:35-24:53, 2002, S.1152). Entretanto, no pensamento de Howard Marshall ocorre uma síntese, pois entende que as duas alternativas (contemporâneo e futuro), podem ser usadas no significado em questão (MARSHALL. The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, 1978, S. 873). Assim, o aspecto cronológico presente é enfatizado como base explicativa. Essas premissas pressupostas precisam estar fundamentadas numa “exegese crítica”, por isso, nos voltemos para suas argumentações basilares.
O advérbio σήμερον (Lê-se: sémeron, “hoje”) aparece quarenta e uma vezes no NT, destas onze vezes somente em Lucas (2:11; 4:21; 5:26; 12:28; 13:32,33; 19:5,9; 22:34; 23:43; 24:21). A tradução em síntese destes usos, reduzido a Lc.23:43 é exposta por Louw e Nida “nas unidades de tempo com referência a outras unidades ou pontos temporais”, nessa dinâmica σήμερον descreve o dia que é o mesmo do discurso ou comunicação” (LOUW; NIDA. Léxico Grego Baseado em Domínios Semânticos, 2013, p.582). Entretanto, além deste viés cronológico trabalhemos as fundamentações explicativas deste verso, pensando primariamente não somente na cronologia, mas também na teologia.
Para tal foquemos na ênfase teológica, partindo do pedido do malfeitor em 23:42: καὶ ἔλεγεν· Ἰησοῦ, μνήσθητί μου ὅταν ἔλθῃς εἰς τὴν βασιλείαν σου (“... e dizia: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares para teu reino”).[5] Nolland entende que “no quadro do pensamento de Lucas, Jesus ‘entrará em seu reino’, por meio de sua passagem pela morte para a exaltação à destra de Deus” (cf. 9:51; 19:12; 24:26, NOLLAND. Word Biblical Commentary: Luke 18:35-24:53, 2002, S.1152). Stein traz um foco distinto, explicando que “esta petição no cenário de Lucas, foi entendida pelos leitores originais como um pedido a Jesus, para que, quando entrasse em seu reinado, através de sua morte-ressurreição-ascensão, deveria lembrar-se dele, isto é, agir para salvá-lo”. Neste viés podemos comparar o verbo μιμνῄσκομαι (lê-se: mimnéskomai, “eu me lembro”)  usado aqui com suas aparições na Septuaginta (Gn.40:10; Sl.74:2; 106:4) (STEIN. Luke, The New American Commentary, 1992, s.592). Assim, parece complicado dissociar o pedido da crucificação de Jesus, pois o malfeitor arrependido interpreta o sofrimento do Senhor como algo salvífico.   
Desta forma, σήμερον numa ênfase teológica aponta para o dia da salvação, pela da morte e ressurreição de Jesus. Embora “como resultado, isso tenha acontecido temporalmente naquele dia, σήμερον na visão de Lucas pertence mais à teologia do que à cronologia. Esse viés está ligado ao uso deste advérbio em Lucas, em 2:11, definindo o “dia da salvação messiânica” e em 4:21, onde é dada ênfase especial ao termo em questão, colocando-o primeiro, no dizer de Jesus. Assim, “agora” (σήμερον) indica a era messiânica, realizada na vinda de Jesus. Portanto, σήμερον não significa literalmente as últimas vinte e quatro horas, mas algo precedente iniciado em 3:1 (STEIN. Luke, The New American Commentary, 1992, s.108,157,593). Esta constatação pode ser definida como “uma declaração jurídica feita por Jesus, o Juiz de vivos e mortos, a qual a caracteriza como novo Adão que inaugura um novo período de salvação, com referência à At.10:42 e 17:31” (CARSON. BEALE. O Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, 2014, p.495). Nolland segue esta linha, explicando a efetividade imediata do perdão, pois “o malfeitor não precisa esperar que Jesus entrasse em seu reino (embora isso ainda não tinha ocorrido), pois, estava lhe concedendo clemência real” (NOLLAND. Word Biblical Commentary: Luke 18:35-24:53, 2002, S.1152). Marshall associa o direito do Rabino com a ação Messiânica de Jesus. O Rabino tinha o direito de fazer sua declaração com base no poder das chaves dos escribas (Mt.23:13), mas, Cristo age como o Messias que tem o direito real de abrir as portas do paraíso, para aqueles que entram em comunhão com ele. A petição do criminoso expressa a esperança de que atingirá a vida na parusia (futuro), mas a resposta do Senhor lhe garante a entrada imediata (presente) no paraíso (MARSHALL. The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, 1978, S. 873). Ainda assim, não negamos a fala de Robertson nesta análise: “não está claro se o malfeitor espera uma bênção imediata ou apenas no julgamento (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Lc 23:42). Desta forma, a questão cronológica tem suas complexidades declaradas, entretanto em associação a declarações teológicas basilares Lc.23:43 funciona soteriológicamente ou numa cristologia aplicada. 
Pelo uso do termo “paraíso” (παράδεισος, lê-se: parádeis[s]os) Plummer afirma que “este malfeitor era judeu, pois esta palavra dificilmente seria pronunciada por um pagão” (PLUMMER. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Luke, 1896, S. 535). Além disso, o lugar em questão aparece num viés futurista μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ (... estarás comigo no paraíso”). παράδεισος, (lê-se: parádeis[s]os) aparece três vezes no NT (Lc.23:43; 2Co.12:4; Ap.2:7). Na literatura judaica tipicamente se contrasta “paraíso” com “Gehenna”, ou “inferno”. Embora os textos judaicos contestassem a localização do paraíso, frequentemente mencionavam isso como a morada dos justos após a morte ou depois da ressurreição. Assim, tanto Jesus como este condenado seguiriam diretamente para a morada dos justos após a morte (KEENER. InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament, 1993, S. Lc 23:43). A consequência desta promessa é uma “escatologia reversa(NOLLAND. Word Biblical Commentary: Luke 18:35-24:53, 2002, S.1152), pois o homem foi expulso do Jardim do Éden (παράδεισος, na LXX, Gn.3:23,24), entretanto agora em Cristo, tem esperança concreta em voltar (Ap.2:7; 22:1-10).
As análises destacas procuraram definir as questões que envolvem Lc.23:43 de algumas formas. Quanto ao grego em sua tradução/interpretação do σήμερον num viés cronológico, algumas questões foram, observadas, entretanto, resolver de forma exaustiva, não parece ser algo possível (“não está claro se o malfeitor espera uma bênção imediata ou apenas no julgamento, ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, s. Lc 23:42). Assim, as delimitações contextuais nos levaram a pensar Lc.23:43 dentro do trato para com a crucificação. Desta forma, este terrível estágio de humilhação vivido por Jesus, ganhou interpretação soteriológica nas palavras do malfeitor. Por esta razão, enfatizamos mais o aspecto teológico do que cronológico, Assim, presente/futuro são intercambiáveis quanto a petição do malfeitor, pois a resposta do Senhor lhe garante a entrada imediata (presente) no paraíso Portanto, parece ser esta a ênfase de Lc.23:43 em suas delimitações.


[2] Uma análise mais completa das bases são encontradas no artigo: Análise Linguística do σήμερον em Lc.23:43. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/24190/17384. Acesso em 16/02 às 04:55.
[4]Disponível em: https://downloads.adventistas.org/pt/  acesso em 11:02 às 23:00
[5] Existe uma discussão no Aparato Crítico neste verso, no que diz respeito a aparição das preposições no texto Crítico e Majoritário: καὶ ἔλεγεν· Ἰησοῦ, μνήσθητί μου ὅταν ἔλθῃς εἰς τὴν βασιλείαν σου (BNT)- Καὶ ἔλεγεν τῷ Ἰησοῦ, Μνήσθητί μου, κύριε, ὅταν ἔλθῃς ἐν τῇ βασιλείᾳ σου (BYZ). Neste ensaio usamos o BNT.

terça-feira, 16 de junho de 2020



Algumas Reflexões sobre o Cântico dos Cânticos (Título, Gênero literário e modelo de interpretação)




Não há livro das Escrituras em que mais comentários tenham sido escritos e mais diversidades de opiniões sejam expressas do que este pequeno poema de oito capítulos (SPENCE. The Pulpit Commentary: Song of Solomon, 2004, p

“Cântico dos cânticos” é  um livro que não está, aparentemente, entre aqueles mais expostos. Em nosso contexto onde a divulgação de vídeos pela internet tem sido maciça não vemos com tanta constância exposições deste livro. Além disso, parece que o método alegórico tem imperado para a interpretação, de maneira que, outros modelos não são tão enfatizados (talvez nem conhecidos). Entretanto, o  cântico dos cânticos está presente no cânon, por isso, o definimos como Palavra de Deus. Devemos, então, olhar para este livro com profundo temor e zelo.     
Neste ensaio trabalharemos, introdutoriamente, algumas questões introdutórias sobre “o mais belo dos cânticos” (“Cântico dos Cânticos”). Basicamente, o título, o gênero literário e as formas de interpretação. Consideraremos também as questões atuais que envolvem tratos mais recentes, levando em conta nosso contexto evangelical brasileiro. Alguns estudiosos (Lasor, Garret, Osborne e outros), corroborarão com nossa pesquisa com suas importantes afirmativas. Neste ensaio defendemos a leitura/interpretação deste livro como cânticos ou poemas de amor.
 שִׁ֥יר הַשִּׁירִ֖ים אֲשֶׁ֥ר לִשְׁלֹמֹֽה׃  WTT    (lê-se: shyr hashyrym asher lishëlomoh)
LXX: ᾆσμα ᾀσμάτων ὅ ἐστιν τῷ Σαλωμων (lê-se: âsma asmátom ho estin tô Salomon)
Este título ganha contornos distintos pelas versões em português nas traduções disntintas: “cântico dos cânticos de Salomão” (ARA, NVI); “cântico de cânticos, que é de Salomão” (ARC, ACF); “este é o cântico dos cânticos de Salomão” (NVT); “o mais belo dos Cânticos de Salomão” (BJ). As distinções observadas nestas traduções têm alguns substratos distintos. Garret entende שִׁ֥יר הַשִּׁירִ֖ים  (lê-se: shyr hashyrym) como superlativo, por isso, a redação da BJ faz sentido. Entretanto, ele afirma que é possível também pensar nesta expressão como “cântico dos cânticos” (GARRETT. Word Biblical Commentary: Song of Songs/ Lamentations, p.124), isso legitima a leitura tanto pela ARA como pela NVI. A ARC e ACF parecem seguir a LXX. Alguns autores como . Ogden e Zogbo entendem que a ideia superlativa se encaixa melhor aqui. Em hebraico, essas construções são usadas para indicar o grau superlativo ou maior. Assim, em Dn 2.7 “o rei dos reis” significa “o maior rei”. No cântico, precisamos perguntar qual recurso está sendo destacado. Ao falar de uma música, focamos em sua beleza, elegância e estilo. Assim,  שִׁ֥יר הַשִּׁירִ֖ים  (lê-se: shyr hashyrym) significa: “A música mais bonita”, ou mais sublime” ou mais elegante”. Os tradutores podem querer dar o tema dessas músicas. Portanto, outros títulos apropriados podem ser “o poema de amor mais elegante” ou “grandes poemas de amor”. Não temos certeza de que essa "música" tenha sido cantada com acompanhamento musical, embora isso seja uma possibilidade. (cf. OGDEN . ZOGBO. A handbook on the Song of songs, p.14).
Existe ainda a fundamentação baseada na questão editorial, desta forma, Ct.1:1 foi colocado a posteriore no texto, como os versículos introdutórios da maioria dos livros do Antigo Testamento. A base deste argumento passa pelo uso do pronomeאֲשֶׁ֥ר  (lê-se: asher) no texto (cf. OGDEN. ZOGBO. A handbook on the Song of songs, p.15). A outra parte do título לִשְׁלֹמֹֽה (lê-se: lishëlomoh) traz a autoria salomônica tradicional, a qual baseia-se em referências ao rei ao longo do livro (1.5; 3.7,9,11), principalmente no título (1.1). “A Salomão”, hebraico לִשְׁלֹמֹֽה (lê-se: lishëlomoh, 1.1), pode indicar autoria. Mas há outras interpretações possíveis: “para” ou “ao estilo de Salomão” (LASOR. Introdução ao Antigo Testamento, p.558).
            Passemos, agora, para pensarmos as questões que envolvem a hermenêutica aplicada a este livro. Assim, inicialmente, questionamos qual é o gênero literário deste livro? Esta informação nos ajudará no trato exegético devido, fundamentado no pressuposto que envolve a necessidade da descoberta da intenção do Autor/autor. Alguns estudiosos afirmam que “o mais belo dos Cânticos de Salomão” (BJ) pode ser visto como poesia (cf. OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, pp.284-308). Esta constatação funciona como diretriz, para pensarmos alguns princípios conceituais que corroboram com a interpretação (cf. KÖSTENBERGER Andreas; PATTERSON D. Richard. Convite a Interpretação Bíblica: A Tríade Hermenêutica, pp.251-291). Neste viés, Grant Osborne identifica este livro numa categoria (ou tipo de poesia): “cânticos de amor” (OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, p.296). Portanto, para interpretarmos, devemos observar os padrões estróficos do poema (elemento primário da poesia hebraica). As traduções ajudam nesta perspectiva:
   Beija-me com os beijos de tua boca
   porque melhor é o teu amor do que o vinho. (1:2) 
   Suave é o aroma dos teus unguentos, 
   como unguento derramado é o teu nome; por isso, as donzelas te amam (1:3)
Depois disto, devemos pensar em todos padrões associados na passagem. Não podemos deixar de observar também a linguagem metafórica presente nos textos poéticos e seus contextos históricos. Esses são apenas alguns apontamentos, para que pensemos, hermeneuticamente, com bases definidas (reitero, ver em: OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, pp.284-308; KÖSTENBERGER Andreas; PATTERSON D. Richard. Convite a Interpretação Bíblica: A Tríade Hermenêutica, pp.251-291).
Finalmente, vejamos os modelos hermenêuticos usados na interpretação do “o mais belo dos Cânticos de Salomão” (BJ). Parece que no contexto evangelical brasileiro este livro tem sido visto, com certa preeminência, num viés alegórico. Na verdade, este é uma das formas, usada pelos judeus (“amor de Deus por Israel”) e pelos pais da igreja (“amor de Cristo pela igreja”).[1] Lasor faz uma crítica a esta percepção:  

São inegáveis os benefícios devocionais das interpretações alegóricas ou tipológicas de Cântico dos Cânticos. Questiona-se, porém, a intenção do autor. Qualquer leitura alegórica é perigosa porque as possibilidades de interpretação são ilimitadas. Estamos mais propensos a descobrir nossas idéias do que a discernir o propósito do autor. Além disso, o texto não fornece indícios de que Cântico dos Cânticos deva ser lido em outro sentido, que não o natural (LASOR. Introdução ao Antigo Testamento, p.563).

Além da alegórica existem ainda outras linhas usadas para a interpretação deste livro. Assim, alguns estudiosos modernos o viram como um midrash pós-exílico sobre o amor divino (semelhante a primeira opção). Além disso, uma visão bem difundida entende o livro com o um drama, em que dois personagens estão envolvidos, uma donzela e seu amado (a visão tradicional), ou, então, três personagens (em que o rei tenta separar a moça de seu amado). A maioria dos críticos atuais não distingue em seu texto qualquer plano estrutural, mas acredita que seja uma coleção de cânticos de amor seculares, talvez modelados em hinos de louvor. Finalmente, alguns acreditam que o livro usa imagens do amor para fins ritualísticos usados nas festas de Israel (OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, p.297). Garret apresenta também não uma interpretação “feminista” única do Cântico dos Cânticos, mas, certas tendências nas análises do Cântico (ver em: (GARRETT. Word Biblical Commentary: Song of Songs/ Lamentations, p.85).
Diante destas alternativas parece que ler “os mais belos dos cânticos de Salomão” como um cântico de amor funciona por alguns substratos. Em primeiro lugar, Osborne destaca que  a característica central é certa entre o amor dos dois. O poema tem apenas uma leve estrutura de enredo, e a relação de amor é tão forte no início quanto no fim. Portanto, independente de qual das três principais visões adotemos, o livro é, sem dúvida nenhuma, um cântico de amor, sendo excelente num curso sobre casamento” (OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, p.297; cf. LASOR. Introdução ao Antigo Testamento, p.564). Assim, a noção de que estes são poemas de diferentes poetas reunidos aleatoriamente, sem nenhuma unidade temática, só pode ser substanciada se alguém puder apontar incompatibilidades estilísticas significativas na música (GARRETT. Word Biblical Commentary: Song of Songs/ Lamentations, p.28). Quase por padrão, somos levados à conclusão de que a música é exatamente o que parece ser, poemas sobre o amor entre um homem e uma mulher. Não temos idéia de que circunstâncias levaram à escrita deste poema. Esse pouco de especulação ociosa serve pelo menos para nos lembrar que o Cântico dos Cânticos poderia ser considerado de várias maneiras e que devemos ter cuidado ao reivindicar mais conhecimento sobre ele do que possuímos. Outras especulações sobre o pano de fundo do poema ganharão vida própria e obscurecerão a questão, em vez de esclarecê-la. Tudo o que temos é um retrato idealizado do amor, a própria música, e é isso que analisaremos (GARRETT. Word Biblical Commentary: Song of Songs/ Lamentations, p.91). Neste viés, pode-se sentir a mensagem de Cântico dos Cânticos no tom da poesia lírica. Embora, o movimento seja evidente, só se vê um esboço nebuloso da trama. O amor do casal é tão intenso no início como no fim; assim, a força do poema não está num clímax apoteótico (ainda que o ponto central seja a cena de consumação, 4.9-5.1), mas nas repetições criativas e delicadas dos temas de amor um amor almejado quando separados (e.g., 3.1-5) e plenamente desfrutado quando juntos (e.g., cap. 7), vivenciado no esplendor do palácio (e.g., 1.2-4) ou na serenidade do campo (7.11ss.) e reservado exclusivamente para o companheiro da aliança (2.16; 6.3; 7.10). É um amor tão forte quanto a morte, que a água não consegue extinguir nem uma enchente, afogar, um amor que se dá de bom grado, a qualquer custo (8.6s. LASOR. Introdução ao Antigo Testamento, p.564,565).
Este ensaio tem pretensões limitadas em seu alcance investigativo. Talvez, a grande questão aqui seja mostrar que o método alegórico não é o única via de interpretação para o cântico dos cânticos. Na verdade, como observamos ele compromete a intenção do autor e enfatiza subjetivismos. Por esta razão, na progressividade estabelecida entendemos o título e sua importância para o livro. Além disso, nos ocupamos com os desdobramentos que envolvem o gênero literário, mostrando a exegese por esse importante substrato. Finalmente, a defesa deste livro, afirmando sua identificação como cânticos (ou poemas) de amor.



[1] Para uma análise mais exaustiva ver em: SPENCE. The Pulpit Commentary: Song of Solomon, 2004, p.ix.

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...