A PREDESTINAÇÃO POR CALVINO EM SÍNTESE
A doutrina da predestinação tem formatações
distintas, concebidas na história do pensamento teológico. Por esta razão,
vários teólogos escreveram sobre este tema, exercendo papeis de defensores e
opositores. Entre os primeiros destacaremos João Calvino (1509-1564) que trouxe
definições profundas e pedagógicas, para que possamos entender a predestinação,
biblicamente se falando. Neste sintético texto nosso objetivo é procurar expor
as delimitações, chanceladas por Calvino, vistas de forma temática com
dinâmicas progressivas quanto ao trato. Assim, será possível chegar a algumas
conclusões iniciais que funcionam como norteadores deste princípio teológico.
O trato da predestinação exposto por Calvino (As
Institutas, Vol.3, logo depois de tratar a oração) começa de forma simples,
pois foca a diferença quanto a receptividade quanto a “pregação do pacto da
vida”, a qual está fundamentada na eterna eleição de Deus. Isso nos leva a
entender que a esperança da salvação é dada a uns, e a outros é negada. Para
evitar especulações os desígnios secretos do Senhor nesse quesito foram
revelados pela Palavra. A importância disso, torna-se real, porque sabemos que
no momento em que transpusermos os limites assinalados pela Escritura, seremos
perdidos fora do caminho entre trevas espessas, no qual teremos necessariamente
que vagar, muitas vezes sem rumo, e assim, resvalar e tropeçar” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.385). O oposto
disto está presente na percepção daqueles que sepultam qualquer menção da
predestinação. Esta ação ignora que “a Escritura é a escola do Espírito Santo,
na qual não deixa de pôr alguma coisa necessária e útil de se conhecer, nem
tampouco se ensina nada mais além do que se precisa saber” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.386). Diante
da ligação da predestinação com a Escritura toda e qualquer acusação dirigida a
ela, fica sem respaldo e fundamento.
É importante destacar que Calvino trabalha com a dupla predestinação, isso
observamos em sua definição desta doutrina (predestinação): “o eterno decreto
de Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca de cada homem quis que
acontecesse. Pois Ele não quis criar todos em igual condição; ao contrário,
preordenou a uns a vida eterna; a outros a condenação eterna” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.388). Detectamos
isso, na eleição em Israel, de maneira que a seletividade foi exposta no “amei
Jacó, porém odiei Esaú” (Rm.9:13).[1] Essa
ação soberana do Senhor torna-se concreta, quando os eleitos são chamados, pois
“Deus designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio,
aqueles que ele quer que se salvem, e também aqueles que se percam” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.393). Assim,
fica claro que a causa da dupla predestinação não são as obras, mas o decreto
de Deus.
No campo da refutação Calvino combate a subordinação da eleição a presciência.
Em suma essa indevida relação (predestinação subordinada a presciência) para o
reformador está baseada, “na previsão
realizada por Deus dos méritos de cada um, realizando a partir disso a
distinção entre homens”. A questão de procedência ganha importância nesse
caso, pois “Deus em Sua graça é livre para escolher quem quer”. Entretanto,
isso é negado pelo véu da presciência que desvia a verdadeira origem da
eleição. O reformador se volta para Ef.1:4,5, para chancelar a ausência dos
méritos humanos na predestinação, enfatizando o tempo da eleição, ou seja,
“antes da fundação do mundo”.[2] Além
disso, o efeito da eleição destaca a negação a presciência, pois “nos elegeu, para
que fossemos santos”, e não porque “previa que assim, haveríamos de ser”
(2Tm.1:9). Para fechar Calvino evoca também Ef.1:5-9, para nos lembrar que Deus
nos escolheu “segundo o propósito de Sua vontade, que propusera em si mesmo”,
definindo assim, que “nada fora d’Ele foi levado em conta no seu ato de
decretar” (CALVINO. As Institutas,
Vol.3, 2006, p.397).
Os fundamentos textuais continuam em uso, pois
Calvino evoca novamente Rm.9 e trabalha também com o evangelho de João. Quanto
ao primeiro entende que a eleição não é apenas exposta mais profundamente, mas
também expõe mais extensamente o argumento. Em suma o reformador defende que
Paulo está negando que sejam israelitas, todos os que foram gerados de Israel,
porquanto “ainda que todos fossem
abençoados por direito hereditário, a sucessão, entretanto, na passava a todos
igualmente” (CALVINO. As Institutas,
Vol.3, 2006, p.397). Jacó e Esaú funcionam como exemplos disto, pois embora
fossem filhos de Abraão, o tratamento deles foi diferente (eleição e propósito.
Rm.9:11-13). Mais uma vez a refutação a presciência é exposta, nesse caso, onde
a ausência de obras torna-se real, no que diz respeito a eleição. Em suma “Jacó
é eleito e Esaú repudiado; e são assim, diferenciados pela predestinação divina,
aqueles entre os quais não havia diferença alguma quanto aos méritos” (CALVINO.
As Institutas, Vol.3, 2006, p.400). Quanto ao evangelho de João a premissa em foco
é que Deus por uma adoção graciosa, cria aqueles a quem quer como filhos. A causa
intrínseca disto, porém está nele próprio, porque não leva em conta nada mais
além de seu decreto e singular beneplácito (Jo.6:44).[3]
As refutações levantadas por Calvino envolvem a
presciência como causa da predestinação (como foi visto), mas também a tese de
Tomás de Aquino (1225-1274), a qual produz uma graça que não é graça. Em suma
Aquino entende que a causa da predestinação não são os méritos, no que se
refere a Deus, entretanto, quanto a nós somos predestinados, para que com
nossos méritos alcancemos a glória. Evidentemente que essa glória por méritos ligada
a predestinação faz com que a mereçamos e isso está em oposição a graça. Outra
questão nessa dinâmica de correção com a doutrina é a antítese produzida por
alguns entre a eleição e a pregação do evangelho. Na verdade as duas questões
estão ligadas, pois “pela pregação exterior todos são chamados ao
arrependimento e à fé, entretanto, nem a todos é dado o espírito de
arrependimento e fé” (CALVINO. As
Institutas, Vol.3, 2006, p.405).
O reformador levanta algumas objeções a
predestinação que são respondidas por ele. A primeira delas fundamenta-se na
percepção de que Deus seria injusto se Deus condenasse pessoas que não haviam O
ofendido. De forma sintética a resposta passa pelo entendimento de que a
vontade de Deus é a suprema regra de justiça, de maneira que tudo que quer é
sempre justo. A segunda se opõe a reponsabilidade do pecado que não é
compatível com a predestinação. A resposta para alguns é a presciência, mas que
Calvino refuta, pois [ela] não é e nunca será a causa. Esse papel pertence sempre
a vontade de Deus (Pv.16:4). Nessa dinâmica a queda de Adão também deve ser
vista desta forma, e não pelo livre arbítrio do primeiro homem. Portanto, separar
“vontade” de “permissão” é algo contraditório, pois Deus não permite aquilo que
quer? A terceira questiona a ligação da predestinação com o favoritismo e
acepção de pessoa (terceiro absurdo). Entretanto, mais uma vez o reformador
destaca que o eleito não tem nada que possa servir de fundamento para o
favorecimento divino. Logo a diferenciação está fundamentada na misericórdia de
Deus (liberação de toda acusação) para com os eleitos, de outro lado, a justiça
(dá em paga a pena devida) aparece como causa da reprovação. A última objeção
levantada procura estabelecer uma antítese entre a predestinação e a
santificação (“há muitos suínos que mancham a doutrina da predestinação com
essas impuras blasfêmias”). Calvino responde, usando Ef.1:4,5, pois a advertência
dirigida aos eleitos fundamenta-se na santidade. Por isso, se o alvo da eleição
é a santidade de vida, somos despertados e estimulados por ela a sua
inegociável prática.
Esse caminho investigativo nos leva a entender
que a predestinação tem fundamentos definidos em Calvino. A máxima inicial
quanto a diferenciação quanto a recepção da pregação do evangelho é um fator
extremamente relevante na dualidade eleição/reprovação. Desta base o reformador
deixa claro que a vontade de Deus funciona como causa de todas as coisas. Isso
não é considerado por deduções lógicas, mas pela Palavra de Deus. Com este
entendimento a rejeição ao conhecimento da predestinação funciona também como
rejeição a Escritura. Assim, todas as refutações levantadas pelo reformador aparecem
sempre como elemento secundário, pois sempre são vistas em subserviência. Deus
elegeu para, e não porquê. Em suma o decreto divino é o respaldo do
estabelecimento da livre e soberana vontade do Senhor, isso de forma integral.
[1]
... τὸν Ἰακὼβ ἠγάπησα, τὸν δὲ Ἠσαῦ
ἐμίσησα. Rm.9:13 na percepção de exegetas modernos: este
propósito distintivo de Deus na eleição (v. 11) é ainda confirmado pelas
palavras de Ml. 1:2,3, que explica o amor de Deus a Israel como enraizado em
Sua livre escolha de Jacó, em vez de Esaú. “Odiado” aqui não pode ser reduzido
a “menos amado”, como no contexto de Ml.1:3,4 deixa claro. WHITLOCK,
Luder G.; SPROUL, R. C.; WALTKE, Bruce K.; SILVA, Moises: Reformation Study Bible, the : Bringing the
Light of the Reformation to Scripture: New King James Version. Nashville : T. Nelson, 1995, S. Rm 9:13. A
palavra “ódio” provavelmente não deveria ser explicada, seja em Malaquias ou em
Romanos, como um exemplo do uso semítico de um oposto direto, a fim de
expressar um menor grau de comparação (como, por exemplo, em Gn.29:31; Dt.21:15):
“amor” e “ódio” devem ser entendidos como denotando eleição e rejeição,
respectivamente. CRANFIELD, C. E. B.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans. London; New York : T&T Clark International, 2004,
p. 480.
[2] καθὼς
ἐξελέξατο ἡμᾶς ἐν αὐτῷ
πρὸ καταβολῆς κόσμου. Ef.1:4 na percepção de exegetas modernos: Tal
linguagem funciona para dar aos crentes a garantia dos propósitos de Deus para
eles. Sua força é que a escolha de Deus deles era uma decisão livre, não
dependente de circunstâncias temporais, mas enraizada na profundidade de sua
natureza. Dizer que a eleição em Cristo ocorreu antes da fundação do mundo é
sublinhar que ela foi provocada não por contingência histórica ou mérito
humano, mas somente pela graça soberana de Deus. É a noção de preexistência que
torna essa formulação possível. LINCOLN, Andrew T.: Word Biblical Commentary :
Ephesians. Dallas : Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 42),
p. 23.
[3] οὐδεὶς
δύναται ἐλθεῖν πρός με ἐὰν μὴ ὁ πατὴρ ὁ πέμψας με ἑλκύσῃ αὐτόν, κἀγὼ ἀναστήσω αὐτὸν
ἐν τῇ ἐσχάτῃ ἡμέρᾳ. Jo.6:44 na
percepção de exegetas modernos: Jesus está afirmando a afirmação bíblica básica
de que a salvação é sempre devida à iniciativa de Deus. NEWMAN,
Barclay Moon; NIDA, Eugene Albert: A
Handbook on the Gospel of John. New York : United Bible Societies, 1993],
c1980 (Helps for Translators; UBS Handbook Series), p. 203.