quinta-feira, 31 de maio de 2018



 A PREDESTINAÇÃO POR CALVINO EM SÍNTESE



A doutrina da predestinação tem formatações distintas, concebidas na história do pensamento teológico. Por esta razão, vários teólogos escreveram sobre este tema, exercendo papeis de defensores e opositores. Entre os primeiros destacaremos João Calvino (1509-1564) que trouxe definições profundas e pedagógicas, para que possamos entender a predestinação, biblicamente se falando. Neste sintético texto nosso objetivo é procurar expor as delimitações, chanceladas por Calvino, vistas de forma temática com dinâmicas progressivas quanto ao trato. Assim, será possível chegar a algumas conclusões iniciais que funcionam como norteadores deste princípio teológico.
O trato da predestinação exposto por Calvino (As Institutas, Vol.3, logo depois de tratar a oração) começa de forma simples, pois foca a diferença quanto a receptividade quanto a “pregação do pacto da vida”, a qual está fundamentada na eterna eleição de Deus. Isso nos leva a entender que a esperança da salvação é dada a uns, e a outros é negada. Para evitar especulações os desígnios secretos do Senhor nesse quesito foram revelados pela Palavra. A importância disso, torna-se real, porque sabemos que no momento em que transpusermos os limites assinalados pela Escritura, seremos perdidos fora do caminho entre trevas espessas, no qual teremos necessariamente que vagar, muitas vezes sem rumo, e assim, resvalar e tropeçar” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.385). O oposto disto está presente na percepção daqueles que sepultam qualquer menção da predestinação. Esta ação ignora que “a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não deixa de pôr alguma coisa necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais além do que se precisa saber” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.386). Diante da ligação da predestinação com a Escritura toda e qualquer acusação dirigida a ela, fica sem respaldo e fundamento.
É importante destacar que Calvino trabalha com a dupla predestinação, isso observamos em sua definição desta doutrina (predestinação): “o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois Ele não quis criar todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna; a outros a condenação eterna” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.388). Detectamos isso, na eleição em Israel, de maneira que a seletividade foi exposta no “amei Jacó, porém odiei Esaú” (Rm.9:13).[1] Essa ação soberana do Senhor torna-se concreta, quando os eleitos são chamados, pois “Deus designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, aqueles que ele quer que se salvem, e também aqueles que se percam” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.393). Assim, fica claro que a causa da dupla predestinação não são as obras, mas o decreto de Deus.  
No campo da refutação Calvino combate a subordinação da eleição a presciência. Em suma essa indevida relação (predestinação subordinada a presciência) para o reformador está baseada, “na previsão realizada por Deus dos méritos de cada um, realizando a partir disso a distinção entre homens”. A questão de procedência ganha importância nesse caso, pois “Deus em Sua graça é livre para escolher quem quer”. Entretanto, isso é negado pelo véu da presciência que desvia a verdadeira origem da eleição. O reformador se volta para Ef.1:4,5, para chancelar a ausência dos méritos humanos na predestinação, enfatizando o tempo da eleição, ou seja, “antes da fundação do mundo”.[2] Além disso, o efeito da eleição destaca a negação a presciência, pois “nos elegeu, para que fossemos santos”, e não porque “previa que assim, haveríamos de ser” (2Tm.1:9). Para fechar Calvino evoca também Ef.1:5-9, para nos lembrar que Deus nos escolheu “segundo o propósito de Sua vontade, que propusera em si mesmo”, definindo assim, que “nada fora d’Ele foi levado em conta no seu ato de decretar” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.397).
Os fundamentos textuais continuam em uso, pois Calvino evoca novamente Rm.9 e trabalha também com o evangelho de João. Quanto ao primeiro entende que a eleição não é apenas exposta mais profundamente, mas também expõe mais extensamente o argumento. Em suma o reformador defende que Paulo está negando que sejam israelitas, todos os que foram gerados de Israel, porquanto “ainda que todos fossem abençoados por direito hereditário, a sucessão, entretanto, na passava a todos igualmente” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.397). Jacó e Esaú funcionam como exemplos disto, pois embora fossem filhos de Abraão, o tratamento deles foi diferente (eleição e propósito. Rm.9:11-13). Mais uma vez a refutação a presciência é exposta, nesse caso, onde a ausência de obras torna-se real, no que diz respeito a eleição. Em suma “Jacó é eleito e Esaú repudiado; e são assim, diferenciados pela predestinação divina, aqueles entre os quais não havia diferença alguma quanto aos méritos” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.400).  Quanto ao evangelho de João a premissa em foco é que Deus por uma adoção graciosa, cria aqueles a quem quer como filhos. A causa intrínseca disto, porém está nele próprio, porque não leva em conta nada mais além de seu decreto e singular beneplácito (Jo.6:44).[3]
As refutações levantadas por Calvino envolvem a presciência como causa da predestinação (como foi visto), mas também a tese de Tomás de Aquino (1225-1274), a qual produz uma graça que não é graça. Em suma Aquino entende que a causa da predestinação não são os méritos, no que se refere a Deus, entretanto, quanto a nós somos predestinados, para que com nossos méritos alcancemos a glória. Evidentemente que essa glória por méritos ligada a predestinação faz com que a mereçamos e isso está em oposição a graça. Outra questão nessa dinâmica de correção com a doutrina é a antítese produzida por alguns entre a eleição e a pregação do evangelho. Na verdade as duas questões estão ligadas, pois “pela pregação exterior todos são chamados ao arrependimento e à fé, entretanto, nem a todos é dado o espírito de arrependimento e fé” (CALVINO. As Institutas, Vol.3, 2006, p.405).             
O reformador levanta algumas objeções a predestinação que são respondidas por ele. A primeira delas fundamenta-se na percepção de que Deus seria injusto se Deus condenasse pessoas que não haviam O ofendido. De forma sintética a resposta passa pelo entendimento de que a vontade de Deus é a suprema regra de justiça, de maneira que tudo que quer é sempre justo. A segunda se opõe a reponsabilidade do pecado que não é compatível com a predestinação. A resposta para alguns é a presciência, mas que Calvino refuta, pois [ela] não é e nunca será a causa. Esse papel pertence sempre a vontade de Deus (Pv.16:4). Nessa dinâmica a queda de Adão também deve ser vista desta forma, e não pelo livre arbítrio do primeiro homem. Portanto, separar “vontade” de “permissão” é algo contraditório, pois Deus não permite aquilo que quer? A terceira questiona a ligação da predestinação com o favoritismo e acepção de pessoa (terceiro absurdo). Entretanto, mais uma vez o reformador destaca que o eleito não tem nada que possa servir de fundamento para o favorecimento divino. Logo a diferenciação está fundamentada na misericórdia de Deus (liberação de toda acusação) para com os eleitos, de outro lado, a justiça (dá em paga a pena devida) aparece como causa da reprovação. A última objeção levantada procura estabelecer uma antítese entre a predestinação e a santificação (“há muitos suínos que mancham a doutrina da predestinação com essas impuras blasfêmias”). Calvino responde, usando Ef.1:4,5, pois a advertência dirigida aos eleitos fundamenta-se na santidade. Por isso, se o alvo da eleição é a santidade de vida, somos despertados e estimulados por ela a sua inegociável prática.
Esse caminho investigativo nos leva a entender que a predestinação tem fundamentos definidos em Calvino. A máxima inicial quanto a diferenciação quanto a recepção da pregação do evangelho é um fator extremamente relevante na dualidade eleição/reprovação. Desta base o reformador deixa claro que a vontade de Deus funciona como causa de todas as coisas. Isso não é considerado por deduções lógicas, mas pela Palavra de Deus. Com este entendimento a rejeição ao conhecimento da predestinação funciona também como rejeição a Escritura. Assim, todas as refutações levantadas pelo reformador aparecem sempre como elemento secundário, pois sempre são vistas em subserviência. Deus elegeu para, e não porquê. Em suma o decreto divino é o respaldo do estabelecimento da livre e soberana vontade do Senhor, isso de forma integral.     
            


[1] ... τὸν Ἰακὼβ ἠγάπησα, τὸν δὲ Ἠσαῦ ἐμίσησα. Rm.9:13 na percepção de exegetas modernos: este propósito distintivo de Deus na eleição (v. 11) é ainda confirmado pelas palavras de Ml. 1:2,3, que explica o amor de Deus a Israel como enraizado em Sua livre escolha de Jacó, em vez de Esaú. “Odiado” aqui não pode ser reduzido a “menos amado”, como no contexto de Ml.1:3,4 deixa claro. WHITLOCK, Luder G.;  SPROUL, R. C.;  WALTKE, Bruce K.; SILVA, Moises: Reformation Study Bible, the : Bringing the Light of the Reformation to Scripture: New King James Version. Nashville : T. Nelson, 1995, S. Rm 9:13. A palavra “ódio” provavelmente não deveria ser explicada, seja em Malaquias ou em Romanos, como um exemplo do uso semítico de um oposto direto, a fim de expressar um menor grau de comparação (como, por exemplo, em Gn.29:31; Dt.21:15): “amor” e “ódio” devem ser entendidos como denotando eleição e rejeição, respectivamente. CRANFIELD, C. E. B.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans. London;  New York : T&T Clark International, 2004, p. 480.
[2] καθὼς ἐξελέξατο ἡμᾶς ἐν αὐτῷ πρὸ καταβολῆς κόσμου. Ef.1:4 na percepção de exegetas modernos: Tal linguagem funciona para dar aos crentes a garantia dos propósitos de Deus para eles. Sua força é que a escolha de Deus deles era uma decisão livre, não dependente de circunstâncias temporais, mas enraizada na profundidade de sua natureza. Dizer que a eleição em Cristo ocorreu antes da fundação do mundo é sublinhar que ela foi provocada não por contingência histórica ou mérito humano, mas somente pela graça soberana de Deus. É a noção de preexistência que torna essa formulação possível. LINCOLN, Andrew T.: Word Biblical Commentary  : Ephesians. Dallas : Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 42), p. 23.
[3] οὐδεὶς δύναται ἐλθεῖν πρός με ἐὰν μὴ ὁ πατὴρ ὁ πέμψας με ἑλκύσῃ αὐτόν, κἀγὼ ἀναστήσω αὐτὸν ἐν τῇ ἐσχάτῃ ἡμέρᾳ. Jo.6:44 na percepção de exegetas modernos: Jesus está afirmando a afirmação bíblica básica de que a salvação é sempre devida à iniciativa de Deus. NEWMAN, Barclay Moon; NIDA, Eugene Albert: A Handbook on the Gospel of John. New York : United Bible Societies, 1993], c1980 (Helps for Translators; UBS Handbook Series), p. 203.   

sexta-feira, 18 de maio de 2018



AS “OBRAS DA LEI” (Gl.2:16) VISTAS INTRODUTORIAMENTE SOB O VIÉS DA ABORDAGEM REFORMADA E DA NPP (Nova Perspectiva sobre Paulo)  
Valério Nascimento
O presente ensaio tem como objetivo apresentar de forma introdutória, “as obras da lei” de Gálatas 2:16 sob o viés da abordagem Reformada e da NPP (Nova Perspectiva sobre Paulo), considerando assim, esta temática com esses contornos dialeticamente opostos.   
A questão que envolve as “obras da lei” em Gálatas está ligada ao legalismo ou ao aspecto social? Nossas leituras deste quesito em voga, no evangelicalismo brasileiro, foram dirigidas (quase que unicamente) pela primeira alternativa. Entretanto, com a tradução das obras de James Dunn a segunda possibilidade começou a ser conhecida.[1] Os elementos fundantes que desenvolvem estas teses têm uma gama considerável de informações. Entretanto, não podemos negar que historicamente a visão legalista das ἔργων νόμου (lê-se: érgon nómu, “obras da lei”) nos reporta a Lutero e Calvino, enquanto a social, num considerável hiato, parte das percepções da NPP (New Perspective on Paul), termo usado inicialmente por Dunn em 1982 (Título de sua palestra na “T.W Manson Memorial Lecture” realizada na universidade de Manchester, cf. DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.9). Neste ensaio, trabalharemos dialeticamente a abordagem reformada e da NPP quanto as ἔργων νόμου, reduzidas a Gl.2:16, pensando: 1) o genitivo (ἔργων νόμου), 2) o desenvolvimento contextual de 2:16 e 3) sua relação com os argumentos precedentes e desdobramentos do próprio verso.
A construção genitiva ἔργων νόμου (lê-se: érgon nómu, “obras da lei”) é traduzida de formas disntintas nas versões em português. Nas NVI e BA suas traduções aparecem como “prática da lei”, já nas ARA, ARC, ACF como: “obras da lei”. Em Gálatas ἔργων νόμου aparece seis vezes (2:16; 3:2,5,10; cf Rm.3:28). A tradução e as implicações desta expressão são nossa primeira tarefa neste ensaio, a luz da dialética proposta. James Dunn entende que a melhor forma de traduzir a ἔργων νόμου é como: “serviço da lei ou [serviço] monista” (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.195). Nesse viés, este “serviço”, reduzido a leitura da NPP não é tanto no sentido de atos particulares já realizados, mas no sentido de obrigações estabelecidas pela lei, o sistema religioso determinado pela lei. Assim, a expressão não se refere ao esforço de um indivíduo por um melhoramento moral, mas há um modo de existência religioso, um modo de existência marcado em seu caráter distinto como determinado pela lei,[2] pelas práticas religiosas que demonstram a pertença da pessoa ao povo da lei (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.195).[3]
Na contramão desta percepção temos alguns posicionamentos disntintos (numa ordem antitética de posicionamento, e não cronológica) que focam a prática de lei. Lutero pensava ἔργων νόμου desta forma, num tom adversativo a justificação (e não como caracterização). Para tal, o reformador estabelece uma diferença entre justiça externa e interna. A primeira é proveniente de forças próprias (justiças humanas) produzidas pelas leis civis e eclesiásticas e todo o decálogo (LUTERO. Comentarios de Carta del Apóstol Pablo a los Gálatas, 1519).[4]  Calvino neste mesmo viés foca a total incompatibilidade entre fé e obras, de maneira que ἔργων νόμου funciona, a partir de delineamentos morais (CALVINO. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, 2010, pp.78,79). Damos um salto, para salientar também a percepção de Ernest DeWitt Burton (1856-1925), a qual definia a expressão em foco como: “base de aceitação para com Deus”, neste caso, “atos de obediência e formais oriundos de um espírito legalista,[5] com a expectativa de merecer e assegurar a aprovação divina” (BURTON. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians, 1920, p. 120).[6]  Com estas avaliações introdutórias, investigaremos agora a passagem em seus contextos.  
Ao pensarmos Gl.2:16 em sua dinâmica contextual, observaremos seu lugar nas percepções argumentativas usadas pelo apóstolo. Para Dunn sua compreensão das ἔργων νόμου (citada anteriormente) é a melhor maneira de interpretá-las no contexto em que Paulo as introduz (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.196). Ao voltarmos na delimitação de 2:16, temos algumas possibilidades, pois esta questão é vista de algumas formas entre os estudiosos. Longenecker inicialmente entende a extensão de 2:15-21 num viés retórico de propositio[7] (LONGENECKER. Word Biblical Commentary: Galatians, 2002, p. 80), [8]ou seja, a transição da seção anterior para o corpo principal da carta; estabelecendo a tese que Paulo irá defender na próxima seção (GEORGE. Galatians, The New American Commentary, 2001, p.194). Pensemos agora o contexto anterior, a partir desta redução pressuposta.
Antioquia[9] como marcador de início do discurso em 2:11 funciona numa dinâmica geográfica que vem sendo descrita, de forma repetida com ἔπειτα (lê-se: épeita, “depois de disso”) em conexão com Jerusalém, Síria e Cilícia (1:18,21; 2:1). Quanto ao ocorrido ali (Antioquia), o texto expõe diretamente: Οτε δὲ ἦλθεν Κηφᾶς εἰς Ἀντιόχειαν, κατὰ πρόσωπον αὐτῷ ἀντέστην, ὅτι κατεγνωσμένος ἦν (e[10] quando Cefas[11] veio para Antioquia, o resisti face a face, pois[12] fora feito condenado[13]). O “γάρ (lê-se: gár, “porque”) no início de 2:11, segundo Runge, produz o “material explicativo que fortalece ou dá suporte ao que o precede (RUNGE. Discourse Grammar of the Greek New Testament: A Pratical Introduction for Teaching and Exegesis, 2013, p.54), embasando desta forma a postura de Paulo exposta em 2:12-14. Em suma a atitude de Cefas (“coluna” Gl.2:9) não estava condizente com “a verdade do evangelho” e produzia certa influência sobre os judeus e Barnabé, pois “foram dissimulados” (συνυπεκρίθησαν)[14] ou “caíram na mesma hipocrisia” (LOW; NIDA. Léxico Grego- Português Baseado em Domínios Semânticos, 2013, p.681) junto com ele. Assim, chegamos ao âmago da problemática que funciona em leituras distintas, isso num viés retrospectivo, de  maneira que 2:16 aparece como reação aos postulados descritos. Dunn entende que as controvérsias precedentes dizem respeito “a circuncisão e dietas alimentares”, as quais como “obras da lei”, caracterizam o pertencimento ao povo da aliança. Desta forma, para os cristãos de Jerusalém pertencer ao povo eleito  sem incluir fidelidade as leis alimentares e aos rituais de pureza na mesa de refeição era uma contradição conceitual inconcebível. Pedro e Barnabé concordaram seja com relutância ou não que a ameaça à identidade judaica era demasiadamente grande para ser ignorada. Esse caráter focado pela NPP em seu viés histórico chancela a crise de identidade que o trabalho de Paulo provocou em seus colegas judeus cristãos (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, pp.196,200).[15]  
Para preservar a dialética usada até agora, precisamos descrever a abordagem deste texto oriunda da reforma. Nesse viés, o foco segundo Calvino: “é a subordinação a lei como base da recusa de Pedro em ter comunhão com os gentios” (CALVINO. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, 2010, p.74). Desta forma, a separação hipócrita de Pedro tem sua explicação declarada. Além disso, mesmo depois do concílio de Jerusalém (At.15:19-21), havia o entendimento de que os judeus estavam sob a lei (At.21:18-26).[16] Evidentemente que a negação aos princípios que emanam da lei não estão sendo ignorados aqui, pois a questão é a oposição “a verdade do evangelho” (τὴν ἀλήθειαν τοῦ εὐαγγελίου, a qual aparece também em 2:5.
Com estas questões em foco, pensaremos os elementos textuais constituídos pela dualidade antitética existente em Gl.2:16 entre “obras da lei” e “ser justificado”.[17] A reação de Paulo ao trabalhar com esta distinção teológica (a luz do contexto) nos serve como substrato a problemática em voga. Como entendê-la?
A estrutura do verso apresenta as relações sintáticas, as quais definem as ligações argumentativas e paralelas. Em primeiro lugar, numa síntese, observamos que as ἐξ ἔργων[18] são sempre negadas em 2:16 (οὐ δικαιοῦται ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου [...] οὐκ ἐξ ἔργων νόμου [...] ἐξ ἔργων νόμου οὐ...) diretamente ou indiretamente. Isso associado ao particípio εἰδότες visto como causal (“por esta causa sei...”)[19] desenvolve a máxima próxima anterior: Nós somos judeus por natureza, e não pecadores dentre os gentios” (ARC, 2:15). Como observamos anteriormente, os reformadores pensavam esta questão sob o viés do legalismo. Neste caso, a “base de aceitação para com Deus, os atos de obediência e atos formais oriundos de um espírito legalista, com a expectativa de merecer e assegurar a aprovação divina” (BURTON. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians, 1920, p.120). De outro lado, Dunn entende que “pelo contexto o Nomismo era a razão, para os judeus se separarem de outros crentes, o que era essencial para serem considerados entre os justos. As “obras da lei” eram claramente a circuncisão e as leis alimentares” (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.37).  O paralelo contextual de certa forma destaca isto:

·         Contudo, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se. --- E isto por causa dos falsos irmãos [...] aos quais não nos submetemos, para que A VERDADE DO EVANGELHO permanecesse entre vós (2:3-5)
·         Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando, e se apartou deles, temendo os que eram da circuncisão [...], quando, porem vi que não procediam segundo A VERDADE DO EVANGELHO... (2:12-14).
       
O benefício quanto ao “ser justificado pela fé” é o diferencial que estabelece a oposição ao viés da exclusividade nacionalista. Assim, a redução identificadora da lei não funciona no alcance da redenção de Cristo e seus benefícios. Podemos ainda ampliar a questão para pensarmos, se a justificação ou qualquer benefício soteriológico, em algum momento foi recebido pelas obras? Parece que a reposta neste caso só pode ser negativa (cf.At.15:10,11). Desta forma, a resposta positiva ao legalismo chancela uma compreensão nunca afirmada pelos judeus. George nos lembra isto pela antropologia teológica: “por causa da queda dos seres humanos [...] ‘nenhuma carne’ poderia ser justificada pela observação da lei. Além disso, o próprio Deus sabia e pretendia que fosse assim desde o princípio” (GEORGE. Galatians Logos Library System; The New American Commentary, 2001, p.195). Nesse viés, Vogt afirma que “a graça está presente desde as primeiras páginas de Gênesis” (VOGT. Interpretação do Pentateuco, 2015, p.76).
Realmente não podemos negar a complexidade da questão em voga, pois desmontar um edifício teológico continuado por séculos, é uma tarefa que exige muito do contestador. Dunn conseguiu pelo manos abalar ou provocar certa reflexão. As críticas dirigidas a NPP são redigidas por ele mesmo em sua obra com suas devidas justificativas (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.49). Assim, depois deste levantamento introdutório reduzido a Gl.2:16, observamos a apresentação das teses interpretativas com seus postulados.    


[1] Vale destacar duas obras nesse viés: Dunn James. A Teologia do Apóstolo Paulo: São Paulo: Paulus, 2003,2018. DUNN James. A Nova Perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Paulus, 2011.
[2] Dunn fundamenta sua percepção também nos escritos de Qumran (cf. DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.195).  
[3] Timothy George faz uma crítica a interpretação de Dunn (cf. GEORGE. Galatians. Electronic ed. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 2001 Logos Library System; The New American Commentary, 2001, p. 194).
[4] Disponível em: http://www.semla.org/portal/wp-content/uploads/2011/05/Lutero-Comentario-a-G%C3%A1latas.pdf. Acesso em: 06/05;19 às 16:04. Ver também. LUTERO Martin. Obras de Martin Lutero Comentário de La Carta ao Romanos. Buenos Aires: Asociacón Ediciones La Aurora,  1985, p.1338. 
[5] Broadus é incisivo nisto: “Explosivo em sua natureza, Gálatas é o manifesto de Paulo contra a perversão da graça de Deus. A contínua batalha entre o legalismo e a graça de Deus é definida neste livro. O legalismo é a religião do mundo que escraviza os homens em sua tentativa de alcançar a justiça através do mérito. O evangelho é a graça de Deus em operação, para libertar os homens, dessa escravidão, para uma justiça que é um dom a ser recebido”. BROADUS David Hale. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2002, p. 247.
[6] É importante observar que esta interpretação pressupõe que o judaísmo do 1º século era de cunho legalista. O que Longenecker afirma (cf. LONGENECKER, Richard N.: Word Biblical Commentary: Galatians. Dallas, 2002, p. 86).
[8] Alguns autores usam esta mesma delimitação: BRUCE, F. F. The Epistle to the Galatians : A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans Pub. Co., 1982, p. 136. GEORGE, Timothy: Galatians. electronic ed. Nashville : Broadman & Holman Publishers, 2001, c1994 (Logos Library System; The New American Commentary 30), p. 186. Outros como Pfeiffer delimitam de 11-21, (PFEIFFER Charles F. ;   HARRISON, Everett Falconer: The Wycliffe Bible Commentary: New Testament. Chicago : Moody Press, 1962, S. Gl 2:11)
[9] Sobre o cristianismo em Antioquia: LONGENECKER, Richard N.: Word Biblical Commentary: Galatians. Dallas, 2002, p. 70.  
[10] Existe uma divergência na tradução desta conjunção nas versões em português, pois algumas traduzem com e (ARC,ACF) outras como “mas” (ARA, NVI).
[11] Pela Crítica Textual observamos certa divergência entre o texto Receptus (Byzantine 2005) e o Crítico (Nestle Aland 28ª Edição), pois no primeiro aparece Πέτρος e no outro Κηφᾶς. Metzger afirma que Κηφᾶς tem suporte maior em seus testemunhos. Metzger, Bruce Manning. United Bible Societies: A Textual Commentary on the Greek New Testament, Second Edition a Companion Volume to the United Bible Societies' Greek New Testament (4th Rev. Ed.). London;  New York : United Bible Societies, 1994, p. 523
[12] Parece que ὅτι tem um viés CAUSAL aqui, funcionando como razão daquilo que o precede e introduzindo uma oração dependente. WALLACE Daniel. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento. São Paulo: Batista Regular, 2009, p.460.
[13] Uso PERIFRÁSTICO DO PARTICÍPIO. Fórmula: imperfeito ἦν + perfeito κατεγνωσμένος = mais que perfeito. IBID. 648. Essa fundamentação foi usada pela ARA  em sua tradução, mas sem trazer em sua equivalência o passivo.
[14] συνυποκρίνομαι (lê-se: synypokrínomai) é uma hapax.
[15] James Dunn que ὑπὸ νόμον (“sob a lei”) presente Gl.4:5 funciona nessa mesma dinâmica, ou seja, a lei funcionando como caracterização dos judeus. DUNN James. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, pp.197. Em seu comentário de Rm.3:20 também afirma: “... os primeiros ouvintes romanos provavelmente entenderiam com razão ‘obras da lei’, como se referindo àquelas ações que foram realizadas por mando da lei, a serviço da Torá, isto é, aquelas ações que marcaram os envolvidos como povo da lei, aqueles atos prescritos pela lei pelos quais um membro do pacto se identificou como judeu e manteve seu status dentro dele. DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary: Romans 1-8. Dallas: Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 38A), p. 158.
[16] Ver em: WUEST, Kenneth S.: Wuest's Word Studies from the Greek New Testament: For the English Reader. Grand Rapids : Eerdmans, 1997, c1984, S. Gl 2:12.
[17] Vale observar que o verbo δικαιόω no Corpus Paulinus aparece 27 vezes e tem seu uso reduzido a voz passiva.
[18] A tradução da preposição ἐκ pode ser vista de formas disntintas. Numa abordagem em que o genitivo de fonte se destaca: “para fora das obras”. Ou genitivo de meio: “pelas obras...”
[19] HAUBECK Wilfrid, SIEBENTHAL Von Heinrich. Nova Chave Linguística Novo Testamento Grego, Mateus ־Apocalipse. São Paulo: Hagnos, 2009, p.1085.

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