terça-feira, 18 de outubro de 2022


“E a costela (צֵלָע) que o Senhor Deus tomara ao homem, transformou-o numa mulher...” Esta afirmativa de Gn.2:22 tem prerrogativa literal ou simbólica (“relato poético”, Wenham)?


       Neste ensaio, investigaremos Gn.2:21,22, de modo que, possamos ter uma ideia interpretativa quanto ao significado literal ou metafórico desta passagem. Esta tarefa não é nenhum momento simples, porquanto alguns desafios são postos principalmente, no que diz respeito as justificativas para as conclusões (exegese crítica). Entretanto, alguns estudiosos serão importantes para as demandas presentes no texto (Wenham, Ross, Waltke e outros). A defesa passará por considerações que nos levarão ao entendimento de que a criação da mulher em Gn.2:21,22 tem valor metafórico.

    A narrativa de Gn.2:18-24 tem fundamentações que funcionam para delimitar algumas questões. Assim, a criação da mulher da costela do homem supre o que faltava para sua perfeita felicidade. Além disso, cinco cláusulas curtas nos vs.21-22 descrevem a obra de Deus e completam a descrição da tarefa de encontrar uma companheira para o homem iniciada no v.18. Seu sucesso é aclamado com entusiasmo na explosão poética presente no v.23 (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Tudo isso culmina em 2:24 e assim, a criação do primeiro casal leva naturalmente à sua relação expressa através do casamento. Uma vez que cabe ao casal procriar e subjugar a terra (1:28, MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.222). Este fluxo da narrativa corrobora com nossa compreensão da questão nevrálgica que veremos neste ensaio.

       O processo descrito em Gn.2:21,22 tem algumas considerações a serem destacadas: “então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado (profundo) sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;  E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão”. Inicialmente, תַּרְדֵּמָה   (tardemah) é usado, segundo Nahum Sarna, para o sono anormalmente pesado, induzido divinamente [Is. 29:10; 1 Sm 26:12]. Tem aqui a dupla função de tornar o homem insensível à dor da cirurgia e alheio a Deus em ação (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.22). Wenham corrobora ao destacar que muitas vezes  aparece também como ocasião para a revelação divina (Gn.15:12; Jó.4:13). Possivelmente é mencionado aqui, porque os caminhos de Deus são misteriosos, e não para as observações humanas ou [porque] imaginar o homem consciente durante a operação destruiria o encanto da história. Certamente a observação de fechar a carne depois deve ser atribuída à preocupação do narrador com a beleza da ocasião (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Em suma, este “sono profundo” (tardemah) que Adão experimenta e o procedimento que se segue, funciona como algo iniciado e realizado exclusivamente por Deus. O homem nem é um espectador consciente (1:28, MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.216). Assim, parece que estes caminhos chancelam a absolutização da vontade de Deus em relação ao misterioso ocorrido.  

    Depois de observar o protagonismo de Deus em relação a “cirurgia”, focaremos na forma como se deu: “... tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;  E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher” (Gn2:22). Neste caso, “a costela” (צֵלָע - lê-se: tsela aparece 47 vezes no AT) do homem funcionou como meio para a realização divina. Keil e Delitzsch trabalham com a ideia de que a tradução de “tsela” seja “o lado e, como parte do corpo humano, a costela” (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament, vol.1:55-56). Tal perspectiva acaba por considerar a visão fenomenológica do narrador e dos narratários (sem nomenclaturas científicas). Além disso, pelo contexto histórico do texto, neste caso o uso da “tsela” de Adão, pode-se encontrar certa iluminação na língua suméria. A palavra (suméria) para costela é “ti” e de interesse é o fato de que “ti” significa “vida”, assim como Eva (3:20, Matthews, V. H., Chavalas, M. W., & Walton. The IVP Bible background commentary: Old Testament, Gn.2:22).[1] Com estes considerandos avançamos um pouco na argumentação, por meio da fala de Nahum Sarna: “o mistério da intimidade entre marido e mulher e o papel indispensável que ela idealmente desempenha na vida do homem são descritos simbolicamente em termos de sua criação fora de seu corpo” (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.22). Aqui está o ponto em voga para nossa análise.

   Numa hermenêutica de “senso comum” comumente se lê sem o conhecimento das devidas justificativas para as conclusões. Entretanto, a questão é mais complexa. Existem certos dispositivos a serem observados para o trato exegético. Primeiramente, o público alvo, ou seja para quem o narrador dirige suas afirmativas. Waltke vê esta questão da seguinte forma: “depois do êxodo, o povo de Israel viaja pelo deserto. Deixa o Egito, lugar saturado de mitologia pagã, e se dirige a Canaã, outro lugar saturado de mitologia pagã. Os mitos pagãos da época envolviam, em grande parte, ritos e rituais que serviam. de reencenações anuais de uma criação original. O objetivo disso era garantir a estabilidade da criação e a continuação da vida no ambiente dessa mesma criação” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.196,197). Neste cenário a narrativa da criação serve a um propósito definido: “[a narrativa da Criação] tem o propósito de ridicularizar esses mitos” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.198). Esse ponto mostra o papel do narrador (fora da história) e o conteúdo do ponto de vista fenomenológico transmitindo suas informações. Juntamente com isto num tom apologético chancelando a superioridade do Deus de Israel em relação ao panteão egípcio e o cananeu. Assim, podemos reafirmar a tese em foco pela fala de Mathews: “o significado simbólico da ‘costela’ é que o homem e a mulher estão aptos um para o outro como companheiros sexual e socialmente” (MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.217). Portanto, qual é o foco explicativo para a criação da mulher, a luz da metáfora exposta?

     Anteriormente, começamos a observar isto, entretanto, agora seremos mais exaustivos. Inicialmente Waltke destaca: “nessa metáfora, atribui-se a Deus, com o arquiteto, a origem do belo projeto que é a mulher, e à carne e aos ossos de Adão atribui-se sua origem imediata, o que a torna igual a ele. Esses relatos apresentam verdade teológica no linguajar do antigo Oriente Médio. Eles não têm o objetivo de descrever em linguagem científica como isso aconteceu. Ensinam a verdade, a fim de moldar a cosmovisão de Israel em sua relação de aliança com Deus” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.114). Além disso, Keil e Delitzsch corroboram: “a mulher foi criada, não do pó da terra, mas de uma costela de Adão, porque foi formada para uma inseparável unidade e comunhão de vida com o homem, e o modo de sua criação foi estabelecer o fundamento real para a moral ordenança do casamento. Assim como a ideia moral da unidade da raça humana exigia que o homem não fosse criado como um gênero ou pluralidade, a relação moral das duas pessoas que estabelece a unidade da raça exigia que o homem fosse criado primeiro, e então a mulher do corpo do homem” (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament, vol.1:55-56). Finalmente, Wenham postula em sua afirmativa: “aqui está sendo retratado o ideal de casamento como era entendido no antigo Israel, uma relação caracterizada pela harmonia e intimidade entre os parceiros. A destruição desse relacionamento é descrita nos capítulos seguintes, mas, como outros aspectos da existência do homem estabelecidos em Gênesis 1-2, os primeiros dias do (primeiro) casamento continuam sendo uma meta à qual Israel esperava retornar quando as promessas a Abraão fossem cumpridas. A história, portanto, precisa ser lida com atenção, pois em sua fraseologia muitas vezes poética são expressas algumas das convicções fundamentais do Antigo Testamento sobre a natureza e o propósito do casamento” (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69).   

     Depois desta sintética investigação conseguirmos encontrar algumas justificativas para a leitura metafórica. Longe de ser exaustivo o ensaio tem pretensões limitadas, a mais considerável passa pela necessidade de uma “leitura fechada” do texto. Tal metodologia faz com que fujamos da tautologia (“é porque é”). Assim, afirmamos a necessidade da hermenêutica para todos os leitores-intérpretes da Bíblia Sagrada.    



[1] Wenham se mostra contrário a esta percepção: “a ideia de que a mulher foi feita da costela do homem, porque “costela”, (ti)  “vida”, (til), são palavras sumérias de som semelhante, mas parece improvável e pressupõe um conhecimento extraordinário do sumério por um hebreu” (WENHAM, G. J. Vol. 1: Word Biblical Commentary: Genesis 1-15. Dallas: Word, Incorporated, 2002, p.69).


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