“E a costela (צֵלָע) que o Senhor Deus tomara ao homem, transformou-o numa mulher...” Esta afirmativa de Gn.2:22 tem prerrogativa literal ou simbólica (“relato poético”, Wenham)?
Neste ensaio, investigaremos
Gn.2:21,22, de modo que, possamos ter uma ideia interpretativa quanto ao
significado literal ou metafórico desta passagem. Esta tarefa não é nenhum
momento simples, porquanto alguns desafios são postos principalmente, no que
diz respeito as justificativas para as conclusões (exegese crítica).
Entretanto, alguns estudiosos serão importantes para as demandas presentes no
texto (Wenham, Ross, Waltke e outros). A defesa passará por considerações que
nos levarão ao entendimento de que a criação da mulher em Gn.2:21,22 tem valor metafórico.
A narrativa de Gn.2:18-24 tem
fundamentações que funcionam para delimitar algumas questões. Assim, a criação
da mulher da costela do homem supre o que faltava para sua perfeita felicidade.
Além disso, cinco cláusulas curtas nos vs.21-22 descrevem a obra de Deus e completam
a descrição da tarefa de encontrar uma companheira para o homem iniciada no v.18.
Seu sucesso é aclamado com entusiasmo na explosão poética presente no v.23 (WENHAM.
Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Tudo isso culmina em 2:24
e assim, a criação do primeiro casal leva naturalmente à sua relação expressa
através do casamento. Uma vez que cabe ao casal procriar e subjugar a terra
(1:28, MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary,
p.222). Este fluxo da narrativa corrobora com nossa compreensão da questão
nevrálgica que veremos neste ensaio.
O
processo descrito em Gn.2:21,22 tem algumas considerações a serem destacadas: “então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado (profundo)
sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a
carne em seu lugar; E da costela
que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão”. Inicialmente,
תַּרְדֵּמָה (tardemah)
é usado, segundo Nahum Sarna, para o sono anormalmente pesado, induzido
divinamente [Is. 29:10; 1 Sm 26:12]. Tem aqui a dupla função de tornar o homem
insensível à dor da cirurgia e alheio a Deus em ação (SARNA. Genesis.
English and Hebrew; commentary in English, p.22). Wenham corrobora ao destacar
que muitas vezes aparece também como ocasião
para a revelação divina (Gn.15:12; Jó.4:13). Possivelmente é mencionado aqui,
porque os caminhos de Deus são misteriosos, e não para as observações humanas ou
[porque] imaginar o homem consciente durante a operação destruiria o encanto
da história. Certamente a observação de fechar a carne depois deve ser
atribuída à preocupação do narrador com a beleza da ocasião (WENHAM.
Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Em suma, este “sono
profundo” (tardemah) que Adão experimenta
e o procedimento que se segue, funciona como algo iniciado e realizado
exclusivamente por Deus. O homem nem é um espectador consciente (1:28, MATHEWS.
Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.216). Assim,
parece que estes caminhos chancelam a absolutização da vontade de Deus em
relação ao misterioso ocorrido.
Depois de observar o protagonismo de Deus em
relação a “cirurgia”, focaremos na forma como se deu: “... tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em
seu lugar; E da costela que o
SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher” (Gn2:22). Neste caso, “a costela”
(צֵלָע - lê-se:
tsela aparece 47 vezes no AT) do homem funcionou como meio para a realização
divina. Keil e Delitzsch trabalham com a ideia de que a tradução de “tsela”
seja “o lado e, como parte do corpo humano, a costela” (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament, vol.1:55-56). Tal perspectiva acaba por considerar a visão
fenomenológica do narrador e dos narratários (sem nomenclaturas científicas).
Além disso, pelo contexto histórico do texto, neste caso o uso da “tsela” de
Adão, pode-se encontrar certa iluminação na língua suméria. A palavra (suméria)
para costela é “ti” e de interesse é o fato de que “ti” significa “vida”, assim
como Eva (3:20, Matthews, V. H., Chavalas, M. W., & Walton. The IVP
Bible background commentary: Old Testament, Gn.2:22).[1] Com estes considerandos
avançamos um pouco na argumentação, por meio da fala de Nahum Sarna: “o
mistério da intimidade entre marido e mulher e o papel indispensável que ela
idealmente desempenha na vida do homem são descritos simbolicamente em
termos de sua criação fora de seu corpo” (SARNA. Genesis. English and
Hebrew; commentary in English, p.22). Aqui está o ponto em voga para nossa
análise.
Numa hermenêutica
de “senso comum” comumente se lê sem o conhecimento das devidas justificativas
para as conclusões. Entretanto, a questão é mais complexa. Existem certos
dispositivos a serem observados para o trato exegético. Primeiramente, o
público alvo, ou seja para quem o narrador dirige suas afirmativas. Waltke vê
esta questão da seguinte forma: “depois do êxodo, o povo de Israel viaja pelo
deserto. Deixa o Egito, lugar saturado de mitologia pagã, e se dirige a Canaã,
outro lugar saturado de mitologia pagã. Os mitos pagãos da época envolviam, em
grande parte, ritos e rituais que serviam. de
reencenações anuais de uma criação original. O objetivo disso era garantir a
estabilidade da criação e a continuação da vida no ambiente dessa mesma criação”
(WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.196,197). Neste cenário a
narrativa da criação serve a um propósito definido: “[a narrativa da Criação]
tem o propósito de ridicularizar esses mitos” (WALTKE. Teologia do Antigo
Testamento, p.198). Esse ponto mostra o papel do narrador (fora da
história) e o conteúdo do ponto de vista fenomenológico transmitindo suas
informações. Juntamente com isto num tom apologético chancelando a superioridade
do Deus de Israel em relação ao panteão egípcio e o cananeu. Assim, podemos
reafirmar a tese em foco pela fala de Mathews: “o significado simbólico da ‘costela’
é que o homem e a mulher estão aptos um para o outro como companheiros sexual e
socialmente” (MATHEWS. Vol.
1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.217). Portanto,
qual é o foco explicativo para a criação da mulher, a luz da metáfora exposta?
Anteriormente,
começamos a observar isto, entretanto, agora seremos mais exaustivos. Inicialmente
Waltke destaca: “nessa metáfora, atribui-se a Deus, com o arquiteto, a origem
do belo projeto que é a mulher, e à carne e aos ossos de Adão atribui-se sua origem
imediata, o que a torna igual a ele. Esses relatos apresentam verdade teológica
no linguajar do antigo Oriente Médio. Eles não têm o objetivo de descrever em
linguagem científica como isso aconteceu. Ensinam a verdade, a fim de moldar a
cosmovisão de Israel em sua relação de aliança com Deus” (WALTKE. Teologia
do Antigo Testamento, p.114). Além disso, Keil e Delitzsch corroboram: “a
mulher foi criada, não do pó da terra, mas de uma costela de Adão, porque foi
formada para uma inseparável unidade e comunhão de vida com o homem, e o
modo de sua criação foi estabelecer o fundamento real para a moral ordenança do
casamento. Assim como a ideia moral da unidade da raça humana exigia que o
homem não fosse criado como um gênero ou pluralidade, a relação moral das duas
pessoas que estabelece a unidade da raça exigia que o homem fosse criado
primeiro, e então a mulher do corpo do homem” (KEIL & DELITZSCH. Commentary
on the Old Testament, vol.1:55-56). Finalmente, Wenham postula em sua
afirmativa: “aqui está sendo retratado o ideal de casamento como era entendido
no antigo Israel, uma relação caracterizada pela harmonia e intimidade entre os
parceiros. A destruição desse relacionamento é descrita nos capítulos
seguintes, mas, como outros aspectos da existência do homem estabelecidos em
Gênesis 1-2, os primeiros dias do (primeiro) casamento continuam sendo uma meta
à qual Israel esperava retornar quando as promessas a Abraão fossem cumpridas. A
história, portanto, precisa ser lida com atenção, pois em sua fraseologia
muitas vezes poética são expressas algumas das convicções fundamentais do
Antigo Testamento sobre a natureza e o propósito do casamento” (WENHAM.
Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69).
Depois desta sintética investigação
conseguirmos encontrar algumas justificativas para a leitura metafórica. Longe
de ser exaustivo o ensaio tem pretensões limitadas, a mais considerável passa
pela necessidade de uma “leitura fechada” do texto. Tal metodologia faz com que
fujamos da tautologia (“é porque é”). Assim, afirmamos a necessidade da hermenêutica
para todos os leitores-intérpretes da Bíblia Sagrada.
[1]
Wenham se mostra contrário a esta percepção: “a ideia de que a mulher foi feita
da costela do homem, porque “costela”, (ti) “vida”, (til), são palavras sumérias de som
semelhante, mas parece improvável e pressupõe um conhecimento extraordinário do
sumério por um hebreu” (WENHAM, G. J. Vol. 1: Word Biblical Commentary:
Genesis 1-15. Dallas: Word, Incorporated, 2002, p.69).