sexta-feira, 30 de abril de 2021


“A Letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Co.3:6): Uma Análise Exegética da relação entre a “letra” e o “Espírito” na contramão do Uso Não Contextual.  



     Ouvimos afirmações envolvendo 2Co.3:6 com conclusões estranhas ou destoantes, hermeneuticamente se falando. Para muitos a “letra” é a escrita da Bíblia vista sem “iluminações pré-definidas”, justamente aquelas que regem certos credos. Desta forma, questionar se torna uma ação condenável, “coisa de gente que está só na letra”. Realmente, “uma incoerência”! Na verdade, este é mais um dos absurdos presentes no evangelicalismo brasileiro. Em antítese a isto, nossa postura como cristãos deve ser de respeito para com a Palavra de Deus, no que diz respeito a sua interpretação. Algo totalmente antagônico ao que vemos na coerção exercida por alguns líderes ao usarem de forma ilegítima 2Co.3:6. Neste ensaio, procuraremos trabalhar 2Co.3:6 com uma ética do significado sem manipulações ou malabarismos incoerentes. A defesa em foco passa pela compreensão de que a “lei traz a morte”, num viés escatológico para aqueles que não creem na “nova aliança” exposta no evangelho.   

     TRADUÇÃO   Nossa primeira ação quanto a investigação de 2Co.3:6b passa pela divergência nas traduções do texto grego: τὸ γὰρ γράμμα ἀποκτέννει, τὸ δὲ πνεῦμα ζῳοποιεῖ. Tanto a ARA como a ACF, traduzem a palavra πνεῦμα (pneûma) como “espírito”, entretanto, nas ARC, NVI, NAA, BJ: “Espírito”. Assim, nossa primeira problemática passa por este necessário entendimento. Na verdade, a palavra πνεῦμα (pneûma) aparece 7 vezes em 2Co.3 (vs.3,6,8,17,18). Nas versões (ARA, ACF) que traduzem como “espírito” todas as outras o fazem como “Espírito” (o contexto como resposta). Corroborando com esta ideia, Harris é categórico em afirmar que Espírito é mais coerente aqui, porquanto “nos escritos de Paulo, πνεῦμα (pneûma), quando usado para o espírito humano, é contrastado com σῶμα (soma, “corpo”), σάρξ (sarx, “carne”) e νοῦς (nûs, “mente”), mas nunca com “letra” (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians : A commentary on the Greek text, p.273). Para expandirmos nossa discussão, neste quesito, trabalharemos a passagem de forma mais exaustiva em seu contexto.

    CONTEXTO Paulo inicia 2Co.3, expondo dois questionamentos, os quais foram respondidos de forma esplendida, pois os coríntios são chamados de “carta de Cristo” (3:3). Isto trazia implicações inefáveis quanto as suas dimensões (3:2,3). Tal percepção paulina era oriunda da instrumentalidade do Senhor Jesus Cristo (3:4). O efeito imediato disto é o reconhecimento da insuficiência (3:5), por isso Paulo entendeu que “Deus nos habilitou para sermos servos de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito, porque a letra mata , mas o Espírito vivifica” (ὃς καὶ ἱκάνωσεν ἡμᾶς διακόνους καινῆς διαθήκης, οὐ γράμματος ἀλλὰ πνεύματος· τὸ γὰρ γράμμα ἀποκτέννει, τὸ δὲ πνεῦμα ζῳοποιεῖ.).  Esta fala paulina faz com que pensemos na definição desta “nova aliança”.

    Nova Aliança Três termos funcionam numa tríade que descreve as argumentações paulinas: “nova aliança/letra/Espírito”. Quando o apóstolo afirma que “Deus nos habilitou para uma nova aliança”, como entender esta questão?  Esta expressão provavelmente foi tirada da tradição da Última Ceia (1 Co.11:25), em que o cálice significava a ratificação da nova aliança pelo derramamento do sangue de Cristo (Lc.22:20; cf. Mt.26:28; Mc.14:24), embora, em última análise, a expressão venha de Jr. 31:31 (LXX, HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A commentary on the Greek text, p.270). Esta parte tem uma consolidação de compreensão pela obra de Cristo realizada. A parte mais complexa presente neste verso parece estar na relação entre “a letra” e “o Espírito”.

    A “LETRA”  “Não da letra [...] a letra mata”. As formas pelas quais Paulo apresenta a “letra” (γράμμα, grámma) produz indagações. Antes de trabalharmos esta questão, se faz necessário observar que esta “letra” (γράμμα, grámma) aparece 14 vezes no NT, dentre estes usos, nos textos paulinos por 8 vezes (Rm.2:17,29; 7:6; 2Co.3:6,7; Gl.6:11; 2Tm.3:15). Além disso, quanto ao seu significado γράμμα (grámma) pode ser vista, basicamente  como a “letra (do alfabeto)” e, portanto, “o que está escrito (usando letras), um documento escrito”, em 3:6 não se refere à escrita em geral, mas à Lei Mosaica (especialmente o Decálogo) em particular. Em suma, é a “lei escrita”, um sinônimo para νόμος, (nómos, lei) e mais especificamente “(a lei) com seus mandamentos e regulamentos” (ὁ νόμος τῶν ἐντολῶν ἐν δόγμασιν, Ef. 2:15). Em vez do plural, como “ordenanças”  (δόγματα, dógmata) ou “escritos sagrados”  (ἱερὰ γράμματα, hiera grámata; 2 Tm.3:15), Paulo escolheu o singular, provavelmente sob a influência do singular do conjunto com πνεῦμα (pneûma, Espírito). Visto que 3:7 se refere a um código “gravado em letras (ἐν γράμμασιν) na pedra”, γράμμα era uma metonímia (figura de linguagem. Aparece, quando um substantivo é substituído por outro) para “a antiga aliança” que não é explicitamente mencionado até 3:14 ou para o antigo διακονία (“ministério / dispensação” que é caracterizado em 3:7-11(LXX, HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians : A commentary on the Greek text, p.272).

  LETRA/ESPÍRITO Voltemos a funcionalidade da “letra”, neste texto, em conexão com o “Espírito”. Assim, “ministros de uma nova aliança” são descritos numa negação quanto a letra e afirmação quanto ao “Espírito” e a explicação disto exposta, pois, “[A] a letra mata (Rm.2:29; 7:6; 2 Co.3:6), mas [B] o Espírito vivifica”. Talvez, a pergunta mais desafiadora esteja ligada ao papel da “letra” que é expandida pelo v.7 (“ministério da morte gravado em letras de pedra”). Uma primeira ideia procura explicar esta questão, focando a permanência daqueles que rejeitam ou são descrentes em relação a nova aliança. Assim, a morte é a “sentença escatológica” que aguarda aqueles que permanecem nos velhos tempos (4:4, MARTIN. Word Biblical Commentary: 2 Corinthians, p.54). Além disso, o que é qualitativamente melhor sobre a “nova aliança” é que não é uma carta de aliança - isto é, um código externo - mas uma aliança do Espírito, um poder interno. Uma aliança ligada a letra, por natureza, mata, porque faz exigências externas, sem dar o poder interior para a obediência, enquanto aquela (aliança) que é do Espírito em caráter dá vida, porque trabalha internamente para produzir uma mudança de natureza. Paulo descreve essa mudança de natureza em outro lugar (Ef 4:24) como um “novo eu” criado “segundo Deus em verdadeira justiça e santidade” (BELLEVILLE. 2 Corinthians. The IVP New Testament commentary series, 2Co 3:4). Portanto, Paulo provavelmente usou a antítese entre a “letra” e o “Espírito” como “uma fórmula prática que expressa convicções centrais” (GARLAND. 2 Corinthians, The New American Commentary, p.163).

   Esta tese também considera os verbos “vivifica” e “mata” (presente gnômico), representando o que é sempre e o caso em toda parte. Assim, quando Paulo observa aqui que o Espírito “concede vida” ou quando  descreve o Espírito como “vivificante” (Rm.8:2; cf. Gl.5:25), ele está afirmando essa característica, talvez a principal d’Ele (Espírito), ou seja, que Ele perpetuamente concede a vida física e espiritual da qual é a fonte. No pensamento paulino, há três etapas nesta obra vivificadora do Espírito: regeneração, santificação e ressurreição. O processo de salvação começou por meio da “lavagem da regeneração”, que é equiparada à “renovação do Espírito Santo” (Tt.3:5). O segundo estágio de renovação é a transformação progressiva dos crentes à imagem de Cristo, enquanto eles contemplam e então refletem a glória do Senhor, todo este processo sendo obra do Espírito (2 Co.3:18). Esta é uma renovação da mente (Rm.12:2) ou sua atitude (Ef. 4:23) e corresponde ao fortalecimento (Ef.3:16) ou renovação (2 Co.4:16) da pessoa interior pelo Espírito. O estágio três ocorre quando o processo de ser conformado à imagem de Cristo atinge a conclusão em uma transformação de ressurreição efetuada e sustentada pelo Espírito (Rm.8:11,29) e no recebimento da vida eterna do Espírito (Gl.6:8). Em cada estágio desta vivificação, o Espírito trabalha interiormente no personagem ou no corpo, e esta ênfase na interioridade é precisamente o ponto em 3:6, como também nas outras duas passagens onde Paulo usa a antítese Lei/Espírito (Rm.2:28-29; 7:4-6). A inscrição interna nas pessoas, não a escrita externa nas pedras, é a marca da nova aliança (cf. 3:7). Esta “nova aliança” é marcada de forma preeminente pela capacitação divina interior, para que se possa cumprir a vontade de Deus. Para Paulo, a lei de Cristo (Gl.6:2), gravada nos corações dos crentes pela doação de vida oriunda do Espírito, foi o cumprimento da profecia de Jeremias de que, sob a “nova aliança”, Deus escreveria sua lei nos corações de seu povo (Jr 31:33). Para ser enfático nas premissas definidas concluímos que em 3:6 a Lei considerada como mandamentos externos não estão consagrados no coração e desta forma, proferem uma sentença de morte. Por outro lado, o Espírito de Deus que habita nos corações dos crentes efetua sua revitalização tanto na era presente como na vindoura (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A commentary on the Greek text, p.273).

      Depois desta sintética análise percebemos em que sentido “a letra (lei) mata”. Em suma percebemos a importância da “nova aliança” desempenhando um papel singular na salvação. Isto delimitado com uma conexão intrínseca, a qual funciona em associação com o Espírito. Quanto a “letra” (lei) sua funcionalidade sem Cristo se torna improvável em todos sentidos possíveis. O legalismo como efeito disto traz a perdição, e não a salvação.    

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