domingo, 10 de julho de 2022

 

Apocalipse e a literatura Apocalíptica:  Como ler o Livro das Revelações, a partir do Gênero Literário?

 


      A leitura do Apocalipse passa pela necessidade de compreensão dos seus tipos ou gêneros literários (“apocalíptico, profético e epistolar”). Tal perspectiva funciona pela aplicabilidade disto na investigação exegética. Entretanto, devemos ser cuidadosos na construção desta tarefa para  não absolutizarmos o leitor, vendo-o como elemento primário. Por isso, as categorias modernas, quando impostas à estrutura bíblica (por exemplo, a biografia ou a ficção atual usadas com o um mecanismo para se compreender os Evangelhos), são enganosas e até mesmo prejudiciais à compreensão real. No entanto, a aplicação de características antigas (e dos mecanismos modernos que completam e desvelam a abordagem histórica) é uma técnica hermenêutica necessária (OSBORNE. Espiral, p.228). Esta percepção controlará as percepções defendidas neste ensaio, de maneira que possamos entender o Apocalipse pela literatura apocalíptica.    

        Inicialmente, observemos alguns elementos introdutórios sobre o gênero literário numa resumida definição. Ele (gênero literário) é concebido, conforme pensamos, como um agrupamento de obras literárias baseadas, teoricamente, tanto na forma exterior (métrica ou estrutura específica) quanto, também, na forma interna (atitude, tom, propósito — grosso modo, assunto e público)”. Além disso, estes tipos literários funcionam em vários níveis: como uma unidade literária maior (o livro do Apocalipse pertence à literatura “apocalíptica”), na seção menor (Lc.15 apresenta uma série de parábolas dentro do Evangelho mais abrangente) ou na declaração individual (At.1.9-11 mostra uma imagem “apocalíptica” na declaração de Jesus). O propósito principal, aqui, é permitir ao leitor perceber as características dos gêneros antigos como uma chave para interpretar os textos bíblicos (OSBORNE. Espiral, p.228). As definições genéricas não devem ser restritas a nenhuma característica particular (como forma, conteúdo, etc.), mas devem ser construídas de forma suficientemente ampla para permitir que se conceba um gênero como um conjunto de (um número limitado de) fatores. O conjunto de traços mapeados pode incluir: intenção autoral, expectativa do público, unidades formais usadas, estrutura, uso de fontes, caracterizações, ação sequencial, motivos primários, cenário institucional, padrões retóricos e similares (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.lxxii). Devemos ainda nos perguntar: como uma pessoa determina o gênero de um livro particular ou passagem? Neste caso, “a semântica da literatura bíblica”, isto é, as características específicas de um dado gênero da Escritura corroboram. A interpretação dos diferentes gêneros que compõem o texto das Escrituras já foi comparada ao ato de jogar diferentes tipos de jogos, como, por exemplo, beisebol, basquete e futebol. Seja qual for o jogo, para jogá-lo é preciso primeiro conhecer suas regras (KÖSTENBERGER Andreas; PATTERSON D. Richard. Convite a Interpretação Bíblica: A Tríade Hermenêutica, pp. 225, 256).

      Reduziremos, agora nossa análise para o Apocalipse. Em primeiro lugar, Osborne afirma (como vimos) que este livro “é composto de três gêneros: apocalíptico, profético e epistolar”. Dentre estes, “o menos importante, apesar de útil, é o fato de ser uma epístola” (OSBORNE. Apocalipse, pp.13,15). Aune explica o uso do gênero epistolar, quando destaca que a compilação final do Apocalipse foi concluída na província romana da Ásia no final do primeiro século d.C. A influência potencial do paulinismo foi um fator a ser considerado. Desta forma, esta influência das dez cartas paulinas, incluindo Efésios (para contá-las separadamente), passou a ser vista na saudação em Apocalipse 1:4. De fato, a composição do Apocalipse serve para estabelecer o terminus ad quem (“Termo a que. Ponto que determina o fim de uma ação”) para a coleta do corpus paulinus (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p. lxxv). Finalmente, existe uma ampla discussão relacional entre profecia e literatura apocalíptica. Assim, o problema da relação entre elas é parte da questão mais complexa do grau de continuidade ou descontinuidade que se pensa existir entre as tradições religiosas e literárias israelitas apocalípticas e antecedentes (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p. lxxv).  Além disso, é impossível fazer uma clara distinção entre profecia e literatura apocalíptica, pois esta é uma extensão daquela. Assim, Apocalipse evidentemente é mais conhecido como obra de gênero apocalíptico (OSBORNE. Apocalipse, p.15). Portanto, a visão mais preferível é que o Apocalipse é “uma profecia moldada num molde apocalíptico e escrita em forma de carta” para motivar o público a mudar seu comportamento à luz da realidade transcendente da mensagem do livro (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek text, p.39). Por esta perspectiva, passemos a entender a literatura apocalíptica em suas descrições.

       O gênero apocalíptico tem certas definições propostas por alguns estudiosos. Köstenberger e Patterson contribuem com esta dinâmica, expondo uma distinção entre “apocalipse, apocalíptico e apocalipsismo”. O primeiro  refere-se a um gênero literário específico, produzido aproximadamente entre 200 a.C. e 200 d.C. Já o segundo (o adjetivo “apocalíptico”) é empregado para especificar o gênero literário ou a visão de mundo expressa nessa literatura. E, finalmente, “apocalipsismo” denota uma cosmovisão, ideologia ou teologia que mistura os objetivos escatológicos de determinados grupos numa arena cósmica e política (KÖSTENBERGER; PATTERSON. A Tríade Hermenêutica, p.481). Corrobora com esta percepção a ideia de que o texto apocalíptico implica a comunicação reveladora de segredos divinos por um ser sobrenatural a um vidente que, por sua vez, apresenta as visões numa estrutura narrativa. As visões conduzem os leitores a um a realidade transcendente, que é superior à situação presente encoraja os leitores a perseverarem em meio às provações. As visões contrariam a experiência normal, ao revelar os mistérios divinos no mundo real e descrever a crise atual com o uma situação temporária, ilusória. Isso se toma possível pela transformação operada por Deus neste mundo em favor do cristão (OSBORNE. Espiral, p.352). 

      Ao partirmos do pressuposto de que a literatura apocalíptica (ou o “Apocalipse”) é um gênero de literatura reveladora com um quadro narrativo, em que uma revelação é mediada por um ser de outro mundo para um destinatário humano, revelando uma realidade transcendente tanto temporal, na medida em que visa a salvação escatológica, como espacial, na medida em que envolve outro mundo sobrenatural  (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek text, p.40). Sendo assim, como leitores deste maravilhoso livro encontramos realidades distintas formatadas numa escrituração sobrenatural. Afinal, o “666, as bestas, o cavalo branco, os 144 mil”, e tantas outras informações presentes no apocalipse devem ser vistos de forma pela gênero literário? Inicialmente pelas argumentações trabalhadas até o presente momento se torna observável que a literalidade deve ser rejeitada. Em suma,  o problema principal de uma abordagem desse tipo é não levar em conta que o próprio gênero literário do texto deve estabelecer as regras para sua interpretação. O sentido do texto está intrinsecamente associado ao gênero. Conclui-se, portanto, que o gênero fornece um contexto estabelecido pelo autor para comunicar o sentido do texto (KÖSTENBERGER; PATTERSON. A Tríade Hermenêutica, pp.510,511).

       Duas informações textuais corroboram com nosso entendimento desta questão. Em primeiro lugar, o verbo ἐσήμανεν (raiz: σημαίνω, “notificou”, Ap.1:1 ARA) destaca que o Senhor “comunicou, por meio de símbolos ao Seu servo João”. A base disto passa pela associação com Dn.2.45 (LXX), a qual mostra a natureza simbólica do sonho do rei da Babilônia (uma estátua que simboliza quatro impérios mundiais). O apelo a essa passagem de Daniel no título e na declaração de conteúdo de todo livro mostra que essa visão simbólica será parte da estrutura subjacente dos meios de comunicação por todo o livro de Apocalipse. Assim, em vez de produzir a expectativa de que a maior parte do livro é “literal” por natureza, esse versículo indica que a maior parte do material deve ser entendida de maneira simbólica (BEALE Gregory; CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.1327). Em segundo lugar, pela expressão: ἐν πνεύματι  (lê-se: em pneúmati, 1:10; 4:1; 17:3; 21:10). Todas as vezes (menos 1:1) que se diz que João está “no Espírito/espírito”, somos informados de que é levado a algum lugar, seja para “o trono de Deus no céu” (4:2) ou para um “deserto” (17:3) ou para uma “montanha muito alta” (21:10) tudo isso mostrado numa visão (MICHAELS. Revelation. The IVP New Testament, Ap 1:12). Assim, ἐν πνεύματι pode ser vista como uma expressão idiomática que se refere ao fato de que as experiências reveladoras de João ocorreram não “no corpo”, mas sim “no espírito”, ou seja, em um transe de visão (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.83). Estas sintéticas descrições exegéticas afirmam a natureza simbólica do livro em seu prólogo e num viés empírico.

    Nesta trajetória observamos algumas questões que envolveram as definições dos tipos textuais (gênero literário), a partir de algumas constituições. Este primeiro ponto tem seu papel destacado. Além disso, passamos por estes tipos textuais presentes no Apocalipse e as devidas ênfases dadas a literatura apocalíptica. Esta consolidação funcionou como redução para nosso entendimento deste tipo de literatura. Tudo isto produziu uma clara convicção sobre a leitura do Apocalipse. Neste caso, a impossibilidade de se antagonizar gênero e exegese. Por esta razão, os literalistas criam abordagens baseadas nos modernos tipos literários e não levam conta o background do texto. Entretanto, tal perspectiva não deve funcionar como elemento metodológico para a constituições de nossas convicções sobre este maravilhoso livro dado aos servos do Senhor. 

sábado, 2 de julho de 2022

 

Os “Anjos das Sete Igrejas” e “o Anjo da Igreja” vistos num viés Exegético da “Representação Corporativa” (Ap.1:20; 2:1,8,12,18; 3:1,7,14).


         Neste ensaio, levantaremos algumas considerações exegéticas sobre os “anjos” (1:20) e “o anjo da igreja” (2:1,8,12,18; 3:1,7,14) e apresentaremos as teses interpretativas existentes. Tal análise está relacionada ao fato de que em nosso contexto evangelical estes “anjos” (1:20; 2:1,8,12,18; 3:1,7,14) têm sido identificados (hermeneuticamente se falando) numa abordagem unilateral, pois comumente são vistos somente como apontamentos direcionados para o pastor (ou líder). Desta forma, a questão se torna definida por uma conclusão pressuposta (hermenêutica de senso comum - funciona sem as devidas justificativas). Entretanto, existem outras percepções expostas com certas fundamentações expostas por alguns estudiosos. A defesa, neste ensaio, está relacionada a tese da “representação corporativa, com seus desdobramento

       Existe um amplo uso de ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) no Apocalipse, pois segundo Aune aparece 77 vezes tanto singular como no plural e apenas oito dessas referências são problemáticas, aquelas que se referem aos “anjos das sete igrejas” (1:20) e as sete ocorrências do termo singular ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) como o destinatário particular de cada uma das sete proclamações às igrejas (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.108). Assim, a argumentação fundamentada num paralelo de significado funciona pela ideia de que a maioria das sessenta e nove ocorrências dos termos ἄγγελος ou ἄγγελοι referem-se a seres sobrenaturais benevolentes que servem como mediadores e mensageiros entre Deus e sua criação, a maioria dos estudiosos, então, presume que as oito referências também devem se referir a seres sobrenaturais benéficos. Entretanto, Aune mostra que este argumento é falho, uma vez que é uma forma de petitio principii, ou seja, assumindo na premissa de um argumento a conclusão que ainda deve ser provada (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.108).

       Passemos para a diferenciação quanto a redação no texto grego existente em sua delimitação morfológica/sintática/lexical:         

      1:20: οἱ ἑπτὰ ἀστέρες ἄγγελοι τῶν ἑπτὰ ἐκκλησιῶν εἰσιν

              “As sete estrelas são os sete anjos das igrejas”

2:1,8,12,18; 3:1,7,14: Τῷ ἀγγέλῳ τῆς [...] ἐκκλησίας γράψον·

                                     “Ao anjo da igreja [...], escreve”

      Os usos nestes versos passam por discriminações distintas, pois ἄγγελοι funciona como nominativo apositivo (1:20), de outro lado, ἀγγέλῳ como dativo de destinatário (2:1,8,12,18; 3:1,7,14). Pensando num viés lexical ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) pode ser visto com certas delimitações. As suas 175 ocorrências são desigualmente distribuídas no NT, sendo a maioria encontrada nos Sinóticos (51; concentrados nas narrativas da infância e nas da visita das mulheres ao túmulo de Jesus e das aparições após a ressurreição), Apocalipse (67) e Atos (21). Na grande maioria das ocorrências o termo é usado para designar o mensageiro (celestial) de Deus, mas também humano (apenas 3 vezes no NT: Lc.7:24; 9:52; Tg. 2:25; cf. também a citação do AT em Mt 11:10; Mc.1:2). Ambos os significados também são encontrados no grego secular (BALZ, & SCHNEIDER. Exegetical dictionary of the New Testament, 1:14). Especificamente, nos usos focados (1:20; 2:1,8,12,18; 3:1,7,14) o BDAG não se posiciona claramente (Arndt, W., Danker, F. W., & Bauer, W. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p.9). No Louw Nida ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) aparece em dois domínios semânticos: “mensageiro, uma pessoa que faz anúncio” e “anjo, um ser natural que está a serviço de um entidade sobrenatural mais elevada ou é mensageiro desta” (LOUW, NIDA. Léxico, p.131, 367).        

        Para pensarmos a temática exposta, passaremos, primeiramente, a considerar algumas implicações específicas de porções relevantes do texto do Apocalipse que devem ser levados em conta em qualquer solução para a identidade e função desses sete anjos. Em primeiro lugar, cada uma das sete proclamações se dirige ao “anjo” de cada igreja diretamente como uma entidade individual completa com pronomes de segunda pessoa do singular e formas verbais. Em segundo lugar, o ἄγγελος de cada igreja é endereçado como, se  fosse a igreja; ou seja, cada um funciona como o outro eu de cada congregação. A igreja-anjo pode ser elogiada por comportamento aceitável (2:2-3,6), mas repreendida por comportamento inaceitável (2:4-5). Em terceiro lugar, várias características importantes desses ἄγγελοι são evidentes em Apocalipse 1:20: [a] O fato de que a primeira ocorrência de ἄγγελοι em 1:20 é anarthro indica que o autor não assumiu que seu público estava familiarizado com essas figuras; [b] Os sete anjos parecem constituir um grupo particular, ao lado de outros grupos de sete anjos em Apocalipse, ou seja, os sete arcanjos que funcionam como anjos da trombeta (8:2) e os anjos das sete taças (15:6). A primeira menção a esses dois últimos grupos é articular, sugerindo que o autor assumia que eles eram conhecidos de seu público (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, pp.108,109).

       Depois de observar estes considerandos, descreveremos as possibilidades hermenêuticas quanto a identificação do “anjo”. Basicamente, seguiremos duas possibilidades, pensando ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) como “seres sobrenaturais ou humanos” (1:20; 2:1,8,12,18; 3:1,7,14). A primeira possibilidade de identificação pode ser dividida em duas partes: [a] anjos guardiões que guiam e protegem a congregação; [b] personificações celestiais semelhantes a comunidade cristã terrena. O desdobramento inicial (“anjos guardiões”) tem suas bases na LXX como visto em Dt.32:8 (ἔστησεν ὅρια ἐθνῶν κατὰ ἀριθμὸν ἀγγέλων θεοῦ - “ele estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos anjos de Deus”). Gabriel que apareceu a Daniel, era o “anjo da guarda” de Dario, o medo (Dn 11:1). Estes “anjos da guarda” são mencionados apenas duas vezes no NT (Mt 18:10; At. 12:15; duas outras passagens às vezes citadas, 1Co 11:10; Hb 1:14, AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.110). Além disso, esta interpretação que vê as “estrelas” como “anjos” das igrejas em v.20b parece confirmar ainda mais a sugestão acima de que (as “estrelas”) são extraídas de Dn.12:3, visto que Miguel é visto como o “anjo” guardião de Israel em Dn.12:1 (cf. Dn.10:21) e está associado diretamente com as “estrelas” de 12:3. Estas “estrelas” (Dn. 12:3) referem-se aos “sábios” de Israel que são recompensados com o status de glória celestial (BEALE. The book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p.218). Osborne traz uma dificuldade para esta interpretação: “a principal objeção a esta interpretação é a de que as cartas nos capítulos seguintes remetem a problemas das igrejas e requerem o arrependimento de muitos de seus membros, o que seria estranho, caso elas fossem endereçadas a anjos literais” (OSBORNE. Apocalipse, p.108).

     De outro lado, o anjo da igreja pode ser visto como uma forma de personificar o espírito predominante desta igreja. Para Mounce esta interpretação é reforçada pelo o fato de que todas as sete cartas são endereçadas a anjos separados, um fenômeno estranho, se elas se referem a qualquer coisa menos que a igreja, uma vez que o conteúdo é obviamente destinado à congregação como um todo (MOUNCE. The Book Of Revelation, p.72). A dificuldade com este tese passa por sua aparência como algo extremamente tênue. Ademais, o outro símbolo, os candelabros, indica igrejas de verdade; portanto, é mais provável que isso aponte para seres reais (OSBORNE. Apocalipse, p.108).

     A segunda possibilidade hermenêutica que procura descrever ἄγγελος (lê-se: á[n]guelos) de 1:20; 2:1,8,12,18; 3:1,7,14, passa pela constatação de que fala de “seres humanos”. Aune explica esta categoria dividida em três partes: “(a) mensageiros ou emissários humanos, (b) profetas cristãos, talvez membros de uma guilda profética representada em cada uma das sete comunidades, mensageiros proféticos enviados por João de Patmos para cada uma das as igrejas ou (c) os bispos ou líderes de cada uma das sete comunidades” (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.111). Isso se encaixaria bem no uso das “estrelas” por todo o mundo antigo (judaico e helenístico) para designar domínio ou soberania (OSBORNE. Apocalipse, p.109). Kistemaker, defensor desta tese, explica que o termo anjo é comum no Apocalipse, ocorrendo sessenta e sete vezes (diferente da estatística colocada por Aune). Mas é impossível sustentar que na literatura joanina uma dada palavra deva ter por toda parte o mesmo significado, a menos que o autor indique uma mudança. Dizer que os anjos devem significar seres etéreos e nunca mensageiros humanos é contrário a outras passagens da Escritura (Mc.1.2 [Ml 3.1]; Lc 7.24; 9.52). De um ponto de vista analítico, por que Jesus instruiria João a escrever cartas a sete anjos individuais? E os anjos santos seriam responsáveis pelos pecados dos membros das sete igrejas? Não seria um sentido preferível, se ele o mandasse escrever a representantes dessas igrejas, os quais eram responsáveis pelo bem-estar espiritual de seus membros? Sabemos que Jesus está segurando as sete estrelas (mensageiros) em sua mão direita (v.16) para enviá-las com autoridade e para protegê-las. A interpretação de que os mensageiros às congregações são seus pastores faz sentido se considerarmos os pastores como enviados e comissionados por Cristo. São responsáveis pelo desenvolvimento espiritual do povo de Deus (KISTEMAKER. Apocalipse, p.142). 

      Para pensarmos esta questão, ainda que de forma sintética, precisamos levar em conta o contexto do livro. Assim, o uso que envolve o “anjo” no Apocalipse torna extremamente improvável que  seja um “mensageiro” humano de qualquer tipo (OSBORNE. Apocalipse, p.109). Tal perspectiva acaba por chancelar a tese da representação corporativa, sugerida pelo reconhecimento de que os seres angélicos são identificados corporativamente com os cristãos como suas contrapartes celestiais em outras partes do livro (o anjo em 19:10 e 22:9 diz: “Sou conservo seu e de seus irmãos”). Além disso, este “anjo” em Apocalipse 8:3–4 parece representar os santos, pois recebe suas orações e as apresenta diante de Deus (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek Text, p.217). Ainda assim, tal perspectiva encontra certa dificuldade, porquanto [1] os santos anjos seriam responsáveis pelos pecados dos membros das sete igrejas? [2] Quais elementos fundantes funcionam para a defesa desta linha hermenêutica? As respostas advém do AT.

           Em primeiro lugar, a problemática levantada quanto a responsabilização dos pecados passa por alguns pontos. A resposta inicial, que é inerente ao conceito de “representação corporativa”, passa pela responsabilização do representante pelo grupo e a responsabilização do grupo pelas ações do representante. Portanto, há algum sentido em que os anjos são responsáveis (por exemplo, responsabilidade de supervisão) pelas igrejas, mas as igrejas também se beneficiam da posição dos anjos (BEALE. The book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p.217). Assim, num certo sentido, os anjos são solicitados a intervir nas necessidades espirituais das igrejas. Por outro lado, representam as próprias igrejas (OSBORNE. Apocalipse, p.109). Os traços textuais parecem corroborar com isto, pois o dativo de destinatário (ao anjo da igreja) é complementado pelo final do texto em que “o Espírito diz as igrejas”. Tal associação parece funcionar nesta dinâmica.

           Em segundo lugar, as “estrelas” são usadas numa dinâmica metafórica para os santos e anjos no AT e no judaísmo. A interpretação formal das “estrelas” como “anjos” das igrejas em 1:20 parece confirmar ainda mais a sugestão acima de que elas (“estrelas”) são extraídas de Dn.12:3, visto que Miguel é visto como o “anjo” guardião de Israel em Dn.12:1 (cf.Dn.10:21) e está associado diretamente com aquelas de 12:3. Estas “estrelas” de Dn. 12:3 referem-se aos “sábios” de Israel que são recompensados com o status de glória celestial. Isso não significa que ἄγγελοι em Apocalipse 1:20 se refira exclusivamente aos líderes humanos das igrejas, mas provavelmente que João também associou as “estrelas” de Daniel com seres celestiais em geral, e a conexão desta metáfora com o conceito de anjos de Daniel. No judaísmo tal associação teria sido facilitada (BEALE. The book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p.218).

       Em terceiro lugar, os anjos aparecem como representantes corporativos de santos no AT, NT e escritos judaicos. Os anjos de Daniel aparecem como as contrapartes celestiais e protetoras das nações terrenas (Dn 10:20-21; 12:1; cf. 7:27; 8:10, 24), e o mesmo fenômeno ocorre geralmente no NT (Mt. 18:10; At. 12:15), os Targuns (por exemplo, Targ. Jerusalém Gen. 33:10; 48:16), e literatura apocalíptica judaica, muitas vezes como um desenvolvimento de Daniel (por exemplo, 1QM 12.1-10 ; 14,9-10; 17,5-9; 1 En. 89:68-90:27). Isso se baseia no conceito de “representação corporativa” em que um indivíduo representa um grupo, tão característico do AT, da apocalíptica judaica e do próprio NT. O dativo de destinatário “ao anjo da igreja” em cada uma das cartas nos caps. 2 e 3 é melhor entendido neste contexto. Algo confirmando ainda mais a identidade corporativa dos dois e o papel representativo dos anjos. A correspondência entre Cristo e o Espírito, respectivamente, no início e no final de cada carta, implica uma correspondência semelhante entre o anjo e as igrejas, respectivamente, endereçadas (no início e no final de cada carta), confirmando ainda mais a identidade corporativa dos dois e dos anjos num viés de papel representativo. A tradição de associar Israel com anjos em todos os textos mencionados acima é colocada em contextos de escatologia inaugurada (Qumran) ou da ressurreição dos últimos dias, o que o torna ainda mais adequado como pano de fundo para o contexto de Apocalipse 1:20, onde as mesmas duas características escatológicas são encontradas (a este respeito, a ressurreição de Cristo é identificada com aquela do Israel escatológico; BEALE. The book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p.218).

      O trato sintético deste ensaio passa pelo seu curto espaço e complexidade da temática proposta. Ainda assim, alguns elementos informativos descritos corroboram com certas elucidações introdutórias. A tese de “representação corporativa” tem seus substratos no Apocalipse e em sua principal fonte: o AT. Assim, o diálogo afirmado pela intertextualidade ou Exegese Contextual Canônica tem seus apontamentos descritivos como interessantes justificativas exegéticas

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