Apocalipse
e a literatura Apocalíptica: Como ler o
Livro das Revelações, a partir do Gênero Literário?
A leitura do Apocalipse passa
pela necessidade de compreensão dos seus tipos ou gêneros literários (“apocalíptico,
profético e epistolar”). Tal perspectiva funciona pela aplicabilidade disto na
investigação exegética. Entretanto, devemos ser cuidadosos na construção desta
tarefa para não absolutizarmos o leitor,
vendo-o como elemento primário. Por isso, as categorias modernas, quando
impostas à estrutura bíblica (por exemplo, a biografia ou a ficção atual usadas
com o um mecanismo para se compreender os Evangelhos), são enganosas e até
mesmo prejudiciais à compreensão real. No entanto, a aplicação de
características antigas (e dos mecanismos modernos que completam e desvelam a abordagem
histórica) é uma técnica hermenêutica necessária (OSBORNE. Espiral,
p.228). Esta percepção controlará as percepções defendidas neste ensaio, de
maneira que possamos entender o Apocalipse pela literatura apocalíptica.
Inicialmente,
observemos alguns elementos introdutórios sobre o gênero literário numa
resumida definição. Ele (gênero literário) é concebido, conforme pensamos, como
um agrupamento de obras literárias baseadas, teoricamente, tanto na
forma exterior (métrica ou estrutura específica) quanto, também, na forma
interna (atitude, tom, propósito — grosso modo, assunto e público)”. Além
disso, estes tipos literários funcionam em vários níveis: como uma unidade
literária maior (o livro do Apocalipse pertence à literatura “apocalíptica”),
na seção menor (Lc.15 apresenta uma série de parábolas dentro do Evangelho mais
abrangente) ou na declaração individual (At.1.9-11 mostra uma imagem
“apocalíptica” na declaração de Jesus). O propósito
principal, aqui, é permitir ao leitor perceber as características dos
gêneros antigos como uma chave para interpretar os textos bíblicos
(OSBORNE. Espiral, p.228). As definições genéricas não devem ser restritas a
nenhuma característica particular (como forma, conteúdo, etc.), mas devem ser
construídas de forma suficientemente ampla para permitir que se conceba um
gênero como um conjunto de (um número limitado de) fatores. O conjunto de
traços mapeados pode incluir: intenção autoral, expectativa do público,
unidades formais usadas, estrutura, uso de fontes, caracterizações, ação
sequencial, motivos primários, cenário institucional, padrões retóricos e
similares (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p.lxxii). Devemos
ainda nos perguntar: como uma pessoa determina o gênero de um livro
particular ou passagem? Neste caso, “a semântica da literatura bíblica”,
isto é, as características específicas de um dado gênero da Escritura corroboram.
A interpretação dos diferentes gêneros que compõem o texto das Escrituras já
foi comparada ao ato de jogar diferentes tipos de jogos, como, por exemplo,
beisebol, basquete e futebol. Seja qual for o jogo, para jogá-lo é preciso primeiro
conhecer suas regras (KÖSTENBERGER Andreas; PATTERSON D. Richard. Convite a Interpretação Bíblica: A
Tríade Hermenêutica, pp. 225, 256).
Reduziremos, agora nossa análise para o
Apocalipse. Em primeiro lugar, Osborne afirma (como vimos) que este
livro “é composto de três gêneros: apocalíptico, profético e epistolar”. Dentre
estes, “o menos importante, apesar de útil, é o fato de ser uma epístola”
(OSBORNE. Apocalipse, pp.13,15). Aune explica o uso do gênero epistolar,
quando destaca que a compilação final do Apocalipse foi concluída na província
romana da Ásia no final do primeiro século d.C. A influência potencial do
paulinismo foi um fator a ser considerado. Desta forma, esta influência das dez
cartas paulinas, incluindo Efésios (para contá-las separadamente), passou a ser
vista na saudação em Apocalipse 1:4. De fato, a composição do Apocalipse serve
para estabelecer o terminus ad quem (“Termo a que. Ponto que determina o
fim de uma ação”) para a coleta do corpus paulinus (AUNE. Word
Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p. lxxv). Finalmente, existe uma
ampla discussão relacional entre profecia e literatura apocalíptica. Assim, o
problema da relação entre elas é parte da questão mais complexa do grau de
continuidade ou descontinuidade que se pensa existir entre as tradições
religiosas e literárias israelitas apocalípticas e antecedentes (AUNE. Word
Biblical Commentary: Revelation 1-5:14, p. lxxv). Além disso, é impossível fazer uma clara
distinção entre profecia e literatura apocalíptica, pois esta é uma extensão
daquela. Assim, Apocalipse evidentemente é mais conhecido como obra de gênero apocalíptico
(OSBORNE. Apocalipse, p.15). Portanto, a visão mais preferível é que o
Apocalipse é “uma profecia moldada num molde apocalíptico e escrita em forma de
carta” para motivar o público a mudar seu comportamento à luz da realidade
transcendente da mensagem do livro (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek
text, p.39). Por esta
perspectiva, passemos a entender a literatura apocalíptica em suas descrições.
O gênero apocalíptico tem certas
definições propostas por alguns estudiosos. Köstenberger e Patterson contribuem com esta dinâmica, expondo uma
distinção entre “apocalipse, apocalíptico e apocalipsismo”. O primeiro refere-se a um gênero literário específico,
produzido aproximadamente entre 200 a.C. e 200 d.C. Já o segundo (o adjetivo
“apocalíptico”) é empregado para especificar o gênero literário ou a visão de
mundo expressa nessa literatura. E, finalmente, “apocalipsismo” denota uma
cosmovisão, ideologia ou teologia que mistura os objetivos escatológicos de
determinados grupos numa arena cósmica e política (KÖSTENBERGER; PATTERSON. A Tríade Hermenêutica, p.481).
Corrobora com esta percepção a ideia de que o texto apocalíptico implica a
comunicação reveladora de segredos divinos por um ser sobrenatural a um vidente
que, por sua vez, apresenta as visões numa estrutura narrativa. As visões
conduzem os leitores a um a realidade transcendente, que é superior à situação presente
encoraja os leitores a perseverarem em meio às provações. As visões contrariam
a experiência normal, ao revelar os mistérios divinos no mundo real e descrever
a crise atual com o uma situação temporária, ilusória. Isso se toma possível
pela transformação operada por Deus neste mundo em favor do cristão (OSBORNE. Espiral,
p.352).
Ao partirmos do pressuposto de que a
literatura apocalíptica (ou o “Apocalipse”) é um gênero de literatura
reveladora com um quadro narrativo, em que uma revelação é mediada por um ser
de outro mundo para um destinatário humano, revelando uma realidade
transcendente tanto temporal, na medida em que visa a salvação escatológica, como
espacial, na medida em que envolve outro mundo sobrenatural (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek
text, p.40). Sendo assim,
como leitores deste maravilhoso livro encontramos realidades distintas
formatadas numa escrituração sobrenatural. Afinal, o “666, as bestas, o cavalo
branco, os 144 mil”, e tantas outras informações presentes no apocalipse
devem ser vistos de forma pela gênero literário? Inicialmente pelas
argumentações trabalhadas até o presente momento se torna observável que a
literalidade deve ser rejeitada. Em suma, o problema principal de uma abordagem desse
tipo é não levar em conta que o próprio gênero literário do texto deve estabelecer
as regras para sua interpretação. O sentido do texto está intrinsecamente
associado ao gênero. Conclui-se, portanto, que o gênero fornece um contexto
estabelecido pelo autor para comunicar o sentido do texto (KÖSTENBERGER; PATTERSON. A Tríade Hermenêutica, pp.510,511).
Duas informações textuais corroboram com
nosso entendimento desta questão. Em primeiro lugar, o verbo ἐσήμανεν (raiz: σημαίνω, “notificou”, Ap.1:1 ARA) destaca que o Senhor
“comunicou, por meio de símbolos ao Seu servo João”. A base disto passa
pela associação com Dn.2.45 (LXX), a qual mostra a natureza simbólica do
sonho do rei da Babilônia (uma estátua que simboliza quatro impérios
mundiais). O apelo a essa passagem de Daniel no título e na declaração de
conteúdo de todo livro mostra que essa visão simbólica será parte da
estrutura subjacente dos meios de comunicação por todo o livro de
Apocalipse. Assim, em vez de produzir a expectativa de que a maior parte do
livro é “literal” por natureza, esse versículo indica que a maior parte do
material deve ser entendida de maneira simbólica (BEALE
Gregory; CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo
Testamento, p.1327). Em segundo lugar,
pela expressão: ἐν πνεύματι (lê-se: em pneúmati, 1:10;
4:1; 17:3; 21:10). Todas as vezes (menos 1:1) que se diz que João está “no Espírito/espírito”,
somos informados de que é levado a algum lugar, seja para “o trono de Deus no
céu” (4:2) ou para um “deserto” (17:3) ou para uma “montanha muito alta”
(21:10) tudo isso mostrado numa visão (MICHAELS. Revelation. The IVP New
Testament, Ap 1:12). Assim, ἐν πνεύματι pode ser vista como uma
expressão idiomática que se refere ao fato de que as experiências reveladoras
de João ocorreram não “no corpo”, mas sim “no espírito”, ou seja, em um transe
de visão (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 1-5:14,
p.83). Estas sintéticas descrições exegéticas afirmam a natureza simbólica do
livro em seu prólogo e num viés empírico.
Nesta trajetória observamos algumas questões que envolveram as definições dos tipos textuais (gênero literário), a partir de algumas constituições. Este primeiro ponto tem seu papel destacado. Além disso, passamos por estes tipos textuais presentes no Apocalipse e as devidas ênfases dadas a literatura apocalíptica. Esta consolidação funcionou como redução para nosso entendimento deste tipo de literatura. Tudo isto produziu uma clara convicção sobre a leitura do Apocalipse. Neste caso, a impossibilidade de se antagonizar gênero e exegese. Por esta razão, os literalistas criam abordagens baseadas nos modernos tipos literários e não levam conta o background do texto. Entretanto, tal perspectiva não deve funcionar como elemento metodológico para a constituições de nossas convicções sobre este maravilhoso livro dado aos servos do Senhor.