sexta-feira, 22 de outubro de 2021

        O “NOVO” versus o “VELHO”: Análise Exegética de Mc.2:21¾22 (Mt.9:14¾17; Lc.5:33¾39).

“Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; [...]  Ninguém põe vinho novo em odres velhos;” (Mc 2:21, 22 ARA)


        Neste ensaio a delimitação exposta tem foco textual definido. Tal investigação parte da necessidade de certas compreensões tanto no nível exegético como teológico. Algo complexo, neste quesito, passa pela impressão oriunda de uma primeira leitura de Mc.2:21¾22 (estrutura de superfície), expondo a dificuldade quanto as definições conceituais que emanam do texto, a partir de seus desdobramentos. Em suma, podemos afirmar que os adjetivos “novo” e “velho” trazem discussões quanto ao continuísmo ou descontinuísmo entre o AT e o NT. A estrutura da análise proposta nos levará por alguns caminhos: [1] Mc.2:21¾22 na harmonia dos evangelhos; [2] Mc.2:21¾22 em sua abordagem contextual; [3] Mc.2:21¾22 explicado, a partir de suas parábolas.

     A primeira atividade investigativa passa pelo viés da harmonia dos evangelhos. Este tipo de análise produz alguns desdobramentos que trazem certas referências, mas nosso objetivo passa, somente pela comparação redacional.  

 21 Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior a rotura (Mc.2:21). Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo tira parte da veste, e fica maior a rotura (Mt.9:16). 36 Também lhes disse uma parábola: Ninguém tira um pedaço de veste nova e o põe em veste velha; pois rasgará a nova, e o remendo da nova não se ajustará à velha (Lc.5:36).

22 Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres; e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos. (Mc.2:22). Nem se põe vinho novo em odres velhos; do contrário, rompem-se os odres, derrama-se o vinho, e os odres se perdem. Mas põe-se vinho novo em odres novos, e ambos se conservam (Mt 9:17). E ninguém põe vinho novo em odres velhos, pois o vinho novo romperá os odres; entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão. 38 Pelo contrário, vinho novo deve ser posto em odres novos e ambos se conservam. 39 E ninguém, tendo bebido o vinho velho, prefere o novo; porque diz: O velho é excelente. (Lc.5:37¾39).

    

       Em suma, Robert e Gundry entendem que esta harmonia descrevem a seguinte síntese: “Jesus defende os seus discípulos com três parábolas por eles estarem festejando em vez de jejuar” (THOMAS, GUNDRY. Harmonia dos Evangelhos, p.36). As pequenas mudanças textuais que ocorrem nestas partes expostas serão vistas com de forma mais pormenorizada na explicação dos conceitos.

        O segundo ato foca a abordagem contextual, antes de pensarmos nestes conceitos. É comum os estudiosos pensarem a proeminência de Mc.2:18¾22, envolvendo o jejum. Vemos isto em Brooks (Mark, The New American Commentary, p.63), Guelich (Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.106) e outros, Entretanto, a temática de Grant Osborne destoa, pois entende a questão, descrevendo “o novo verso o antigo” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.6), algo presente também na percepção de R.T France: “Velho e novo na observância religiosa” (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.136). Além das temáticas expostas se faz necessário pontuar a progressividade argumentativo presente no contexto.

      Inicialmente percebemos que Mc.2:18¾22 está situado em uma série de narrativas de conflito. Os elementos usuais do cenário, ação, pergunta e resposta aparecem em 2:18,19. Mas, a última (resposta) continua em 2:19b-20, com base nos temas de 2:19a, e em 2:21,22, com duas parábolas construídas paralelamente (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.107). Em suma, as cinco histórias em 2:1¾3:6 mostram uma constante intensificação do conflito entre Jesus e os líderes religiosos, particularmente os escribas e fariseus. Na primeira história (2:1¾12), o antagonismo permaneceu em grande parte não falado. Nos três seguintes (2:13¾17, 18¾22, 23¾28), o conflito resulta em confrontos verbais. Na história final (3:1¾6) se irrompe uma conspiração contra a vida de Jesus. Em cada encontro, a autoridade de Jesus acentua as fórmulas e categorias nas quais as pessoas o pressionariam (EDWARDS. The Gospel According to Mark. The Pillar New Testament commentary, p.86). A redução tratada pode ser vista em três partes: os dois grupos (2:18), o questionamento (2:18) e a resposta de Jesus (2:19¾22).

      Em Marcos 2:18 é feita menção dos discípulos de João (Lc.7:18; Mt. 14:12; Lc.11:1; Jo.1:35,37; 3:25) e dos Fariseus (Lc.5:33). Osborne afirma que “esses dois grupos representam a antiga ordem, que ainda observa as práticas tradicionais” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.48). Assim, os “discípulos” mencionados aqui aparentemente voltaram à vida normal na Galileia, em vez de continuar numa comunidade no deserto na área do ministério de batismo de João. Como um grupo de “renovação”, não é surpreendente que eles, como os fariseus, adotassem um código de observância religiosa mais exigente, seguido pela maioria dos judeus na época (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.138). Brook traz uma importante consideração sobre a tradução: “a expressão ‘discípulos dos fariseus’ tem sua dificuldade declarada, porque os fariseus não tinham discípulos, mas eram eles próprios discípulos dos escribas. Talvez a ideia seja ‘admiradores’ ou ‘companheiros de viagem’  que simpatizavam com o partido farisaico, mas não eram membros” (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.64)

       Nesta cena, o questionamento aparece (feito pelos discípulos de João, Mt.9:14): “Por que jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, e não jejuam os teus discípulos?” (Mc.2:18). Para compreender esta questão se faz necessário observar a prática do Jejum pelo viés da Torá. Desta forma, observamos que a Lei exigia jejum apenas no Dia da Expiação (Lv.16:29¾34), mas muitos outros jejuns foram acrescentados por judeus religiosos, especialmente por grupos como os fariseus (muitos dos quais podem ter jejuado sem água duas vezes por semana, especialmente na estação seca, Lc 18.12,). O jejum era uma prática importante para se juntar à oração ou penitência, então seria incomum para os discípulos evitá-lo completamente. Naquele tempo, um mestre era considerado responsável pelo comportamento de seus discípulos (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Mc 2:18-19). Sobre os outros jejuns, na verdade, estavam associados as experiências traumáticas vividas por Israel (Zc 7.5;8.19)  ligadas ao Exílio).  Em geral, os jejuns representavam arrependimento dos pecados ou tristeza por morte ou enfermidade (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.49). Para entendermos esta questão precisamos pontuar estas diferenciações, para que tenhamos a conotação prescritiva assimilada.

      A resposta do Senhor aparece, primeiramente com uma contra pergunta algo comum nas disputas rabínicas e de acordo com Marcos, Jesus frequentemente a usava (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.64). Além disso, numa analogia o Senhor traz elementos do casamento judaico para explicar a questão. Na verdade, as festas de casamento exigiam sete dias de festa e não era permitido jejuar ou envolver-se em outros atos de luto ou trabalho difícil durante elas (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Mc 2:18-19). Corroborando com isto, pela estrutura de plausibilidade percebe-se que 2:19 é uma declaração sobre a presença da “nova era” incorporada na presença e companhia do noivo, 2:20 é essencialmente uma predição da perda do noivo. O “velho” e o “novo” são mutuamente exclusivos (cf. 2.21-22). Portanto, 2:19b,20a muda o foco de 2:19a, mas não o significado. Ambos lidam com o jejum, mas de forma mais metafórica do que principalmente com referência ao ministério terreno de Jesus, o outro com referência à sua morte (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.114).

      Finalmente, chegamos a questão deste ensaio, pois as parábolas de Mc.2:21,22 estão em foco. Como entender “o novo versus o velho”? Inicialmente, Osborne destaca que “a mensagem é a incompatibilidade entre a nova e a antiga aliança. A roupa velha já encolheu e não mudará mais de tamanho. O retalho de pano novo costurado a ela encolherá quando for lavado e a linha rasgará o manto velho e também o retalho novo. Ambos serão destruídos. O mesmo se aplica à mensagem de Jesus acerca do novo reino.” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.49). Além disso, a ênfase no “novo” no ministério de Jesus que “rasga a roupa velha” e é “colocado em odres novos”, traz elementos, realçando o motivo da paixão de 2:19,20, ou seja, a retirada do noivo (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.115). Assim, as parábolas gêmeas ensinam a antagonismo do antigo (judaísmo dos escribas) e do novo (cristianismo). Neste viés, o judaísmo é a “roupa velha e o odre velho”. O cristianismo é a nova vestimenta (implícita), o “odre novo e o vinho novo” (no último, Jo.2:1-11, especialmente v.10). A questão não é que o “velho” seja errado ou mal, mas que seu tempo já passou (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.65).

      Esta sintética jornada investigativa passou por algumas considerações fundantes. A partir delas, temos uma perspectiva inicial. Nossa questão passou pela relação do “novo versus  velho” em Mc.2:21,22. Parecer ser real a conclusão hermenêutica que envolve a relação entre as perspectivas judaicas e o cristianismo inaugurado por Cristo. O contexto da passagem analisada corrobora com alguns exemplos em que os diálogos do Senhor trazem interpretações autoritativas (2:15-17, 23-27; 3:1-6). Com isto podemos falar num aspecto cristocêntrico num viés prospectivo e retrospectivo em relação ao AT. Para ser mais claro, a hermenêutica cristológica se tornou a régua para entendermos o AT, olhando para trás e para entendermos a progressividade do AT, olhando para a frente.  


domingo, 3 de outubro de 2021


Caos Total, Mal Natural” e o “Vento de Deus”: Algumas Discussões Exegéticas presentes em Gn.1:2.



        Neste ensaio trabalharemos alguns pontos vistos numa abordagem exegética, oriundos de discussões exegéticas presentes em Gn.1:2. Tal tarefa traz consigo considerável complexidade, de maneira que, este espaço dedicado a análise em voga passa por pretensões introdutórias. A trilogia “caos total, mal natural” e “vento de Deus” condicionará  a  estrutura deste ensaio quanto a sua investigação de Gn.1:2. O elemento adicional a esta trilogia passará pela observância da relação existente entre Gn:1:1 e Gn.1:2, a qual tem papel de grande importância para a s consolidações argumentativas convertidas em teses hermenêuticas. Alguns estudiosos corroborarão com nossa percepção de tais questões, entretanto, dois principalmente: Bruce Waltke e Gordon Wenham.

Gn.1:1,2: 

“No princípio criou Deus os céus e a terra

                                                         “E a terra.

         A junção dos versos 1,2 é nossa primeira tarefa de análise. Esta abordagem contextual passa pela repetição da palavra “terra” com a conjunção (הָאָֽרֶץ׃ וְהָאָ֗רֶץ). É constatável que as versões em português divergem na tradução desta conjunção, pois algumas a veem como aditiva (“e” ACF, ARC), outras como adversativa (“porém”, ARA, TB), entretanto, um número maior a desconsidera em sua tradução (NAA, NVI, BJ, NVT).    Wenham nos faz ver uma fórmula aqui construída pela conjunção + substantivo, indicando que o v.2 funciona como uma cláusula disjuntiva. Desta forma, 1:1 é uma cláusula principal que descreve o primeiro ato da criação já os vs. 2,3 descrevem as fases subsequentes na atividade criadora de Deus. Esta é a visão tradicional adotada em nossa tradução. Lembrando que o v.2 descreve o estado da terra antes do primeiro mandamento divino presente no v.3, construções semelhantes, encontramos em Gn.3:1; 4:1 (WENHAM. WBC, p.11). A “terra” é descrita pela primeira vez em seu estado primitivo no início da criação, antes de ser transformada numa habitação adequada para a vida humana. Seis “dias” de criação são descritos, a partir da perspectiva terrestre de uma pessoa observando a transformação (MATHEWS. Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.130).

  Esta abordagem traz uma questão aparentemente óbvia, mas que produz certa complexidade. Neste caso, a construção do v.2 indicando como explica Waltke: “o caos  [o “mal natural”]  não existe independemente de Deus, mas o texto não explica a ligação entre Ele e o caos” (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203). Numa percepção judaica presente em The JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna esta percepção funciona de outra forma, pois: “o fato de Deus criar matéria desorganizada, apenas para reduzi-la à ordem, não apresenta mais problema do que o fato de que Ele levou seis dias para completar a criação, em vez de produzir instantaneamente um universo perfeito” (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Vern S. Poythress trabalha esta questão em seu artigo no Westminster Journal (Genesis 1:1 is The first event, not a summary), expondo as três possibilidades de se ver a questão (Gn1:1 ligado a Gn1:2): (1) De acordo com a interpretação tradicional, Gn.1:1 descreve o evento inicial entre os atos de Deus da criação. O v.2, então, dá informações circunstanciais sobre o estado de a terra em um ponto inicial. (2) De outro lado, Gn.1:1 pode ser visto como um resumo de toda a sequência de atos divinos descritos nos vs. 2–31. Assim, Gn.1:1 não descreve o primeiro evento que levou à criação da terra e seu estado sem forma no v.2.[1] Parece ser complexo pensar na dissociação destes versos, pensando no papel de “Elohim”, pois trará amplas complicações, dentre elas, o fundamento da soberania do Senhor na criação.  


Þ    “Caos total, Mal natural”.

  Incialmente nossa análise de Gn.1:2 passa pelos termos “tohu, vohu (“sem forma e vazia” תֹ֙הוּ֙- בֹ֔הוּ) e “choshekh” (“trevas” חֹ֖שֶׁךְ ). Os dois primeiros são vistos com certa dificuldade (presentes também em Is.34:11; Jr.4:23) em sua sua  tradução, entretanto Wenham os define como: “caos total”, funcionando em Hendíadis (WENHAM. WBC, p.15). De outro lado, Skinner  trabalha também com esta tese, mas afirma que “talvez seja impossível unir as características desta descrição numa única imagem”. Ainda assim, a tendência exegética tem sido enfatizar o último aspecto e se aproximar da noção grega de caos como espaço vazio. Mas nosso guia mais seguro talvez seja a visão de Jeremias do Caos (4:23-26), algo que simplesmente aponta para uma terra escurecida e devastada, da qual a vida e a ordem fugiram. A ideia aqui é provavelmente semelhante. (SKINNER. A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p.16). Finalmente, Mathews destaca que não há consenso sobre o significado preciso destes termos, nem como devem ser entendidos, quando ocorrem em conjunto (MATHEWS. Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.130). Keil e Delitzsch fazem uma observação semelhante, partindo da ideia de que a etimologia destes substantivos está perdida (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament Vol,1:30). Este ponto quando visto em The JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna traz elementos que seguem a mesmas linhas expostas, porquanto afirma que tohu/vohu descreve o estado inicial e caótico da terra (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Finalmente, pelo background histórico se percebe que nas visões egípcias das origens, existia o conceito de “não existente” que pode ser muito próximo ao que é expresso aqui no Gênesis. Algo visto como aquilo que ainda não foi diferenciado e não tem função atribuída. Nenhum limite ou definição foi estabelecido. O conceito egípcio, entretanto, também carrega consigo a ideia de potencialidade e uma qualidade de ser absoluto (MATTHEWS. CHAVALAS & WALTON. The IVP Bible background commentary: Old Testament, Gn 1:2).

       Já o “choshek” (חֹ֖שֶׁךְ) passa por uma linha de ambiguidade, segundo Wenham.  Desta forma, se a “luz” simboliza Deus, as “trevas” evocam tudo o que é anti-Deus: “os ímpios (Pv 2:13), o julgamento (Êxodo 10:21) e a morte (Sl 88:13)”. A salvação é descrita para trazer luz aos que estão nas trevas (Is.9:1). Mas, enquanto a escuridão é opaca para o homem é transparente para Deus (Sl.139:12). Na verdade, Deus pode se ocultar nas trevas nos momentos de grande revelação (Dt 4:11; 5:23; Sl 18:12). Entretanto, esta é também uma imagem que afirma o mesmo ponto, ou seja, o caos (WENHAM. WBC, p.16). Waltke pensa nisto como “mal natural” (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203), algo que desafia nossa compreensão, quando pensamos em sua origem.

        Algo também desafiador passa pela menção do complemento das “trevas”, pois: וְחֹ֖שֶׁךְ עַל־פְּנֵ֣י תְה֑וֹם (“e [havia] trevas sobre a face do abismo”). Este  תְּהוֹם (tehom) que se traduz como “abismo” (ARA, ARC, ACF) ocorre 36 vezes no AT e segundo Wenham pode ser traduzido como “águas profundas” (WENHAM. WBC, p.16). Waltke chama este “tehom” de “águas primordiais”, as quais não aparecem ligadas a palavra divina que descreve as ordens para sua criação, entretanto o sumário do v.1 ligado a outros textos bíblicos faz com que vejam este “tehom” (presentes também  em outras cosmogonias do antigo oriente próximo) como uma realidade temporal, só Deus é eterno  (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203).

       A última linha de Gn.1:2 traz algo também complexo, pois envolve a tradução de: וְר֣וּחַ אֱלֹהִ֔ים מְרַחֶ֖פֶת עַל־פְּנֵ֥י הַמָּֽיִם׃. O substantivo “ruah” (רוּחַ) ligado a “Elohim” (אֱלֹהִ֔ים) tem sido traduzido como “Espírito de Deus” (ARA ARC, ACF), entretanto alguns estudiosos advogam outra tradução: “vento de Deus” (SBP, NAB). Wenham destaca que “Elohim” pode ser usado para expressar o superlativo, assim, “grande vento” é preferível na forma de se traduzir (WENHAM. WBC, p.17). Outros elementos são levantados por Bruce Waltke que corroboram com nosso entendimento da questão: [1] “ruah” (רוּחַ) “Elohim” (אֱלֹהִ֔ים) significa “espírito de Deus”, “vento da parte de Deus” ou “vento poderoso” mas, pelo contexto, provavelmente tem o sentido de “vento da parte de Deus”; [2] a justaposição do “espírito de Deus” (entidade não física) se “movendo/pairando” sobre as águas (realidade física) parece incongruente, e “ruah”, na narrativa homológica (i.e., de estrutura semelhante) da recriação após o Dilúvio, tem o claro sentido de “vento” (Gn 8.1); [3] Uma vez que o vento procede de Deus, não faz parte do caos primordial, mas é uma presença dinâmica e criadora (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.205). Este aspecto exposto por Waltke acaba por mostrar não somente a tradução, mas o papel do “ruah” no caos inicial.  Além disso, na JPS encontramos, por um viés judaico, que “vento” é a tradução mais popular da palavra em fontes judaicas antigas e medievais (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Vale uma ressalva, neste quesito, partindo do Grant Osborne chama de “Duplo Significado”, algo que parte de uma ambiguidade intencional da Escritura, assim, o jogo de palavras “vento/espírito” funciona como um bom exemplo (OSBORNE. Espiral Hermenêutica, p.134). 

     Como foi afirmado no início, este ensaio tem pretensões unicamente introdutórias, ainda assim, faz com que pensemos nosso possível “comodismo hermenêutico”. A criação traz consideráveis desafios em suas propostas textuais. Em Gn.1:2 percebemos que a primeira questão passa por sua relação com Gn.1:1. Analisamos isto por algumas propostas, mas parece que a dissociação não funciona como melhor proposta. Além disso, a noção de “caos total” funcionando com Jr.4:23 tem prerrogativas interessantes para uma tese hermenêutica. Juntamente com a ideia de “mal natural” oriunda dos apontamentos históricos expostos. Finalmente, parece ser complexo pensar no “ruah Elohim” como uma entidade física e o contexto não traz fundamentos neste sentido, por isso, “vento de Deus” passa a ser uma provável e interessante.

       

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