domingo, 26 de abril de 2020



“E houve tarde e manhã um [...] dia”: o “YOM” (יוֹם) de Gn.1 visto descronologicamente (“as estruturas de um arcabouço literário...”) 

    Neste ensaio, observaremos, introdutoriamente, a expressão “...e houve tarde e houve manhã um dia...” (וַֽיְהִי־עֶ֥רֶב וַֽיְהִי־בֹ֖קֶר י֥וֹם) presente em Gn.1. Faremos isto conscientes da complexidade desta análise por algumas questões, uma delas destacada por Vern Poythress, quando descreve o “caráter incomum dos seis dias em Gn.1 , pois apresentam certas dificuldades na forma que os vemos (Poythress. Time in Genesis 1).[1]  Alguns estudiosos terão papeis fundamentais na construção dos nossos argumentos no trato desta questão. A defesa exposta neste ensaio está fundamentada no que Bruce Waltke chama de: “estruturas de um arcabouço literário designadas a ilustrar a natureza ordenada da criação divina e a capacitar o povo pactual a imitar o Criador” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.71).
Inicialmente, constatamos o uso  da expressão, “...e houve tarde e houve manhã um/o dia...” (וַֽיְהִי־עֶ֥רֶב וַֽיְהִי־בֹ֖קֶר י֥וֹם) pela coesão lexical, já que aparece algumas vezes em Gn.1, todas elas na conclusão das obras da criação (1:5,8,13,19,23,31), fechando a atividade de cada dia. O desafio hermenêutico em voga tem seu fundamento na compreensão, a partir da intenção do Autor/autor de seu significado, por isso, como enten-la? Na história da interpretação, alguns autores trouxeram percepções, estabelecendo linhas hermenêuticas distintas nesta questão. Agostinho de Hipona (354-430) pensa este ponto, fazendo uma conexão entre os dias da criação: “antes de serem criados os luzeiros, talvez se interpretasse, sem qualquer absurdo, como o término da obra realizada, e a manhã, como a significação de uma futura operação” (AGOSTINHO. Gênesis, p.38). De outro lado, Calvino (1509-1564) contribui ao afirmar a existência de uma linguagem de acomodação: “... o próprio Deus tomou o espaço de seis dias, com a finalidade de acomodar essas obras à capacidade dos homens” (CALVINO João. The Ages Digital Library Commentary – Commentary on Genesis, p.34). Numa síntese pedagógica Derek Kidner apresenta outras possibilidades interpretativas quanto a simetria do esquema de Gn.1 (cronologicamente ou de outra forma):

[1] os seis dias vistos uma sequência de dias de instrução dada ao autor, não (dias) da criação propriamente dita;  [2] o esquema de dias poderia explicar um interesse litúrgico, se pudesse evidenciar que este “ hino” da criação foi composto para a celebração de uma semana do Festival do Ano Novo em Israel, [3] a ordem pertence à forma poética da passagem, e não deve ser salientada demais, visto que o interesse do autor é expor-nos o mundo visível como obra das mãos de Deus, e não informar-nos de que este aspecto é mais antigo do que aquele (KIDNER Derek. Gênesis, p. 51).

Depois de pensarmos estes apontamentos, passemos para a análise literária. Em primeiro lugar, pela fórmula que envolve “os sete elementos”, descrevendo cada estágio da criação, descritos por Wenham:  Anúncio, (“Deus disse...”), comando (“haja luz”), realização (“e houve luz”), execução, (“luz” criada com finalidade), aprovação, ("viu Deus que a luz era boa”), palavra subsequente, (“Deus chamou a luz dia e as trevas noite”) e o número do dia. De fato, somente em Gn.1:3-5 todos os sete elementos estão presentes numa sequência simples (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.17). Por esta percepção entendemos de forma holística, de forma estrutural, os ocorridos textuais nos dias da criação. Em segundo lugar, nessa dinâmica, observamos uma disposição quiástica em Gn.1:5, de maneira que a ligação do verbo com objeto direto aparece em sua construção:

           וַיִּקְרָ֙א לָאוֹר֙  וְלַחֹ֖שֶׁךְ קָ֣רָא
   [A] chamou [B] à luz [B] às trevas [A] chamou”.

Wenham explica que este “uso expressa a unidade dos dois atos de nomear”. (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.17). Em terceiro lugar, a ordem do dia constitui numa problemática, pois começa com a “tarde” e depois vem a “manhã um dia primeiro”. Como entender isto? Waltke pensa a tradução possível desta expressão como: “veio à tarde, e então a manhã ...” Desta forma, “a ideia, como expressa pelo hebraico, é que o primeiro dia termina, quando as trevas da tarde se dissipam pela luz da manhã” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.71). Quanto a justificativa deste uso, segundo Wenham, passa, “provavelmente pela percepção judaica de que o dia começa a tarde, e não pela manhã” (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.17). De outro lado, Victor Hamilton nega a ordem em foco como apontamento para a delimitação do dia de um, ao outro pôr do sol. A evidência, neste caso, sugere, fortemente que este “dia” começava ao nascer do sol (cf. Gn.19:33,34; Jz.6:38; 21:4). Similarmente, a expressão “dia e noite” é usada, mais frequentemente do que “noite e dia”.[2] (HAMILTON P Victor. The New International Commentary on The Old Testament, 1990, p.121). Portanto, a formatação dual (noite/dia ou dia/noite) observada tem parâmetros constitutivos num viés definido, mas, quando reduza para a proposta deste ensaio, a fala de Hamilton corrobora: (“veio à tarde, e então a manhã ...”) “parecem definir não a computação dos dias, mas o tempo existente até ao amanhecer, o início do dia para o próximo ato do Criador” (HAMILTON P Victor. The New International Commentary on The Old Testament, 1990, p.121). Nessa mesma dinâmica Mathews usa o termoretórico”, pois esta expressão “estabelece o esquema literário da semana da criação, distinguindo seis unidades ou dias” (MATHEWS. Genesis 1-11, NAC, logos Library System). Assim, a natureza literária pode receber mais ênfase, mas não negando a historicidade do evento da criação.
A relação entre os dias da criação destaca o aspecto progressivo dos atos da criação e serve de substrato para as “estruturas de um arcabouço literário”. Como ilustração, pensemos a relação reduzida entre o primeiro e o quarto dia. Bruce Waltke traz um gráfico instrutivo, para entendermos esta questão:




Este gráfico expõe o movimento e desenvolvimento de cada tríade, as quais revelam uma progressão dentro da criação. Neste viés, a primeira tríade separa o caos informe nas três esferas estáticas. Na segunda tríade, as esferas casa e proteção da vida são completadas com as formas de movimento do sol, lua e criaturas viventes. Os habitantes da segunda tríade governam as esferas correspondentes: o sol e a lua governam as trevas, enquanto a humanidade (cabeça sobre tudo) governa a terra. Dentro da primeira tríade, há movimento simples de luz para trevas, de firmamento e mares para vegetação que cresce. Dentro da segunda tríade, há uma erupção de energia cinética. Sol e lua cruzam o céu; aves e peixes enxameiam o ar e mar; animais terrestres vagueiam pelo solo. O padrão de movimento na segunda tríade ocorre progressivamente. As luzes seguem um padrão premeditado e estruturado. Os animais vagueiam em níveis limitados de liberdade, restringidos por seus padrões instintivos de migração e habitação. Os seres humanos têm liberdade mais ampla, limitada só pela própria terra. Todo o relato é unificado por uma estrutura básica de um tempo semanal. A estrutura afirma a consonância e simetria, a harmonia e equilíbrio no mundo de Deus (WALTKE Bruce. Gênesis, p. 71). Este aspecto progressivo para Kidner tem sua importância declarada, pois depois de descrever as possibilidades de interpretação, destaca que “talvez, uma ou outra dessas sugestões justifique a intenção do capítulo. Entretanto, para o presente escritor, a marcha dos dias é um avanço progressivo majestoso demais para não incluir nenhuma ideia de sequência ordenada” (KIDNER Derek. Gênesis, pp. 51,52).
Com esta percepção observaremos mais um substrato para “as estruturas de um arcabouço literário”: o composto que envolve a אוֹר  (‘or, “luz”, 1:3-5) e   מָאוֹר  (ma’vor, “luzeiro ou luminar”, 1:14-19). A problemática em voga, neste caso, expõe: como pensar em dias literais de 24 horas sem os luminares? Podemos afirmar que esta correlação existia na intenção de Moisés? Vern Poythress observa um “caráter incomum nos seis dias, pois apresentam certas dificuldades na forma que os vemos, além disso, alguns dos ritmos, os quais não existiam até um ponto posterior na sequência deles. O ciclo da luz maior (o sol) não existia até o quarto dia” (Poythress Time in Genesis 1).[3] Em suma, a correlação exposta (מָאוֹר  -אוֹר) quanto a tradução parece ser melhor vista com o termo equivalente a “luminar(es)” (vs.14,16), do que propriamente “luzes”. Desta forma, esses objetos devem ser considerados transmissores, e não geradores de luz. Isso e o fato de o sol e a lua não serem citados pelo nome mostra que há uma diminuição intencional da sua importância numa época em que eram adorados quase no mundo todo. Esse ponto de vista não contradiz a afirmação frequente de que a obra do quarto dia é paralela à do primeiro (BRUCE. F.F. Comentário Bíblico NVI, p.157). Entretanto, não podemos negar a fala daqueles que afirmam a inexistência da conexão entre a luz do dia e o sol pelo background de Gênesis (cf. MATHEWS; CHALAVAS; WALTON. The IVP Bible Background Commentary, s.Gn.1:5). Entretanto, a partir de 1:14, a relação do sol com a luz se torna uma realidade. Desta forma, os três primeiros dias alternavam entre luz e trevas, segundo a vontade de Deus (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.40). Esta questão pode ser vista também por uma dinâmica gramatical, isto por causa da ausência do artigo no   יוֹם. Este uso em questão, segundo Waltke mostra que, “o narrador sugere, sutilmente uma descronologização ao falar de cada um dos primeiros cinco dias como ‘um dia’, não ‘o dia’” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.90). Essa construção pode ser vista em Gn.1:5,8,13,19,23,31. Portanto, diante de todas as complexidades existentes quanto a harmonização cronológica entres os dias da criação, talvez seja possível observar esta questão de forma descronologizada. Assim, podemos ressaltar a proeminência em voga, apontando para a apresentação da criação através destes “dias”, revelando, desta forma, a soberania de Deus, ordenando a criação e a preocupação divina em acomodar-se à humanidade em termos finitos e compreensíveis (WALTKE Bruce. Gênesis, p. 71).  
A última questão da tese em foco envolve um caráter mimimético, pois a atividade criadora nos seis dias seguidas de descanso no sétimo trará consolidações posteriormente. Em 2:1-3 a seguinte estruturação favorece a proeminência em foco (4 linhas):

1.    “Deus completou no dia sétimo a obra que fizera  
2.    e descansou no dia sétimo de toda obra que fizera
3.    e abençoou o dia sétimo e o santificou,
4.    porque descansou de toda que como Criador fez”.

As consolidações a partir deste verso quanto ao “YOM” tem delimitações a serem observadas, como destaca Waltke: “nos primeiros seis dias, subjuga-se espaço; no sétimo, santifica-se tempo” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.79). Para isto devemos levar em conta a paráfrase constitutiva quanto a clara afirmação: “quando o sétimo chegou, Deus havia terminado Seu trabalho”( REYBURN; FRY. A handbook on Genesis, Logos System).  Neste “dia” as evoluções argumentativas mudam em perspectiva em relação as ações do Senhor na criação. Assim, este “dia sétimo” (י֣וֹם הַשְּׁבִיעִ֔י)[4] por um viés temporal tem consolidações prescritivas no pentateuco, numa importância mimimética (Êx.20:8,10,11). Como afirma Wenham: “ao observar o sétimo dia como santo, o homem está imitando o exemplo de seu Criador” (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.40).     
Este ensaio tem pretensões limitas em seu alcance, pois seu proposito objetiva, introdutoriamente a necessidade de se pensar em outras alternativas exegéticas para entendermos os dias da criação. Foi possível analisar a coesão lexical, alguns testemunhos na história da interpretação e observar pontos quanto a análise literária. Os substratos para a tese defendida teve alguns Centramentos: 1) a definição da expressão “houve tarde e manhã um dia” não como computação deste “dia”, mas apontando para o início de uma nova atividade do Senhor (efeito retórico); 2) a relação entre os dias pela ênfase no aspecto progressivo que parece destacar como proeminência o exercício soberano de Deus em criar, e não a cronologia, 3) o aspecto gramatical pela ausência do artigo no “YOM” (um dia) destacando a descronologização e 4) a relação com 2:1-3 onde o “YOM” tem conotação mimimética e temporal.   




[2] Lv.23:32
[4] Na LXX aparece como dia sexto: καὶ συνετέλεσεν ὁ θεὸς ἐν τῇ ἡμέρᾳ τῇ ἕκτῃ...

sexta-feira, 10 de abril de 2020


O JEJUM, A LUZ DO NT: SOMENTE PARTICULAR? OU: PÚBLICO E PARTICULAR?



            Neste ensaio, procuraremos analisar o jejum como prática particular, pública ou ambas. Faremos isto, associando as construções da tradição, oriundas da teologia de João Calvino (1509-1564), com o trato exegético de alguns textos do NT (Mt.6:16-18; At.13:1-3; 14:23). Para tal análise trabalharemos esta questão passando por quatro momentos: [1] as considerações de Calvino sobre o Jejum particular e público; [2]  a exegese pelos considerandos lexicais e de coesão (lexical), envolvendo o verbo νηστεύω (lê-se: nesteýo) e o substantivo νηστεία (lê-se: nesteía); [3] a interpretação de Mt.6:16-19, focando πατήρ σου ὁ βλέπων ἐν τῷ κρυφαίῳ (“o Pai que vê em secreto...”) e [4] a análise de At.13:1-3 tendo como objetivo identificar o pronome αὐτῶν (“eles”) de At.13:2, delimitando assim, quem estava jejuando.  
         A questão da prática do jejum é trabalhada por João Calvino em alguns momentos.[1] Para atender nossa redução, focaremos no Livro IV das Institutas, quando o Reformador tratou da “Disciplina Eclesiástica”, estabelecendo uma virada neste assunto, pois passa do “poder das chaves” (jurisdição espiritual) para o jejum. Inicialmente, é importante entender que o Exegeta da Reforma[2] defendia o jejum particular e público. Os desenvolvimentos desta tese passam por alguns substratos.
Em primeiro lugar, Calvino entende a convocação ao jejum ligada a algum ocorrido grave na igreja (At.13:2,3), ou seja, “segundo a necessidade dos tempos”.  Além disso, a mesma razão se dá para os outros exercícios com os quais se pode incitar o povo a cumprir com seu dever, ou manter em suas obrigações e na obediência. Deles temos exemplos a cada passo nas histórias sagradas, os quais não se faz necessário coligir. Desta forma, quando houver controvérsias de várias formas possíveis, “os pastores devem exortar o povo ao jejum público e orações extraordinárias” (CALVINO João. As Institutas Livro IV, p.234).   
Em segundo lugar, Calvino descreve três finalidades para o jejum: “macerar e sujeitar a carne, para que não se refestele, ou para que estejamos melhor preparados às orações e santas meditações, ou para que seja testemunho de nossa humilhação diante de Deus, enquanto queremos confessar nossa culpa perante ele” (CALVINO João. As Institutas Livro IV, p.234). A primeira não ocorre no jejum público, mas a segunda e a terceira tanto no público como no particular. Neste viés, quando o jejum funciona como “sinal de humilhação”, tem uso mais frequente em público do que entre pessoas em particular, ainda que possa ser uma realidade em ambas as situações. Portanto, no que tange à disciplina, sempre que houver necessidade de suplicar acerca de algum assunto importante, seria conveniente, juntamente com a oração, prescrever jejum (At.13:3; 14:23). Quando os antioquenos impõem as mãos sobre Paulo e Barnabé, para que recomendassem melhor a Deus seu ministério, que era de tanta importância, associam jejum à oração [At 13.3]. O mesmo ocorria no momento em que ministros eram constituídos às igrejas, costumavam orar com jejum [At 14.23]. Indubitavelmente, isto provém da experiência: “com estômago cheio, a mente não é capaz de elevar-se a Deus, para orar com ardente afeto e perseverante na oração” (CALVINO João. As Institutas Livro IV, p.235).
            Em terceiro lugar, ao observar a prática do jejum nas ocasiões de calamidade pública, o Reformador descreve, novamente a imperativa postura dos pastores em conclamar a igreja para o jejum, “para que simplesmente se desvie a ira do Senhor”. Entretanto, nosso interesse neste momento passa pela afirmação de Calvino quanto ao não cancelamento do jejum realizado pelo Senhor Jesus. Na verdade, foi ao contrário, como no AT, ainda hoje o jejum é um ótimo auxílio aos fiéis, uma útil advertência para despertar a si mesmos, de sorte que, por sua demasiada confiança pessoal e negligência, não provoquem mais e mais a Deus, quando forem castigados por seus açoites. Daí, quando Cristo justifica a seus apóstolos por não jejuarem, não diz que o jejum fora anulado, mas o destina aos tempos calamitosos e o associa ao luto: “Virá o tempo”, diz ele, “quando o Noivo lhes será tirado” como vemos em: Mt 9.15; Mc 2.20; Lc.5.35 (CALVINO João. As Institutas Livro IV, p.236).
Por estes considerandos percebemos os postulados levantados pelo Reformador quanto a dualidade que envolve a prática do jejum. Passaremos, agora por analisar alguns textos do NT com certas delimitações para entendermos a dimensão interpretativa da teologia. Nesta dinâmica, nosso primeiro ato passará por alguns apontamentos lexicais e de coesão (lexical). O verbo νηστεύω (lê-se: nesteýo) aparece 12 vezes no NT, somente nos evangelhos e no livro de Atos (Mt.4:2; 6:16-18; 9:14,15; Mc.2:18-20; Lc.5:33-35; Lc.18:12; At.13:2,3), e pode ser traduzido pelo domínio “Atividades Religiosas”, tendo como subdomínio: “jejuar”. Neste mesmo viés (Domínio e Subdomínio), o substantivo νηστεία (lê-se: nesteía) aparece 5 vezes no NT (Lc.2:37; At.14:23; 27:9; 2Co.6:5; 11:27). A tradução estabelecida por Louw Nida para estes termos: “ficar sem comer por um tempo determinado como observância religiosa – jejuar, jejum” (LOUW Johannes; NIDA Eugene. Léxico Grego- Português Baseado em Domínios Semânticos, p.483). Observaremos, agora, os usos textuais vistos, exegeticamente.
Em primeiro lugar, analisaremos Mt.6:16-19 que afirma o jejum particular de forma imperativa. O co-texto desta porção é delimitada na extensão que envolve 6:1-18. Carson a intitula de: “Hipocrisia religiosa: sua descrição e subversão” (CARSON. O Comentário de Mateus, p.200). Nesta dinâmica temos o princípio em 6:1 e três exemplos em 6:2-18, dentre estes, aparece o jejum. Assim, em 6:16-18 temos o continuísmo exposto, numa dialética inversa, quanto a fórmula que vai do negativo (“não toques, 6:2 [...] não sereis, 6:5 [...] não vos mostreis 6:16) para o positivo (“tu porém 6:3; [...] tu porém 6:6 [...] tu porém 6:17”). Desta forma, em 6:16 a proibição é destacada pela dualidade: imperativo negativo/explicação:
Ὅταν δὲ νηστεύητε μὴ γίνεσθε ὡς οἱ ὑποκριταὶ σκυθρωποί (“quando jejuardes, não [vos] mostrai como os hipócritas contristados...”) 
ἀφανίζουσιν γὰρ τὰ πρόσωπα αὐτῶν ὅπως φανῶσιν τοῖς ἀνθρώποις νηστεύοντες (“porque desfiguram o rosto, para que aos homens pareça que jejuam”).
Assim, como nos dois exemplos anteriores de piedade, “os hipócritas” (6:2) são caracterizados pelo desejo de “serem vistos pelos outros” (cf. 23:5). Nesse caso, eles desejam, somente deixar claro para todos que estão envolvidos na atividade justa do jejum e que são, portanto, homens santos. Consequentemente, eles se esforçam, para se tornarem visíveis, quando jejuam. Em vista, aqui, está a prática voluntária do jejum privado, e não o (jejum) prescrito associado aos grandes festivais do Dia da Expiação e do Ano Novo (HAGNER, Donald A. Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, 2002, p. 153). Em antítese a esta postura hipócrita, os que seguem a Jesus jejuam de tempos em tempos, mas o Senhor nada diz nada sobre frequência, ocasião ou método. Ele está preocupado apenas com a motivação por trás do jejum. Principalmente com a exigência de que seja feito secretamente, como uma questão entre a pessoa e Deus (MORRIS, Leon: The Gospel According to Matthew, 1992, p.151). Por isso, os imperativos do v.17 (λειψαί σου τὴν κεφαλὴν [“unge a tua cabeça”] καὶ τὸ πρόσωπόν σου νίψαι [“e lave o te rosto”]) são cruciais e sua finalidade no v.18 (ὅπως). Entretanto, nosso foco está na ação do “Pai que vê em secreto [e] te recompensará” (ὁ πατήρ σου ὁ βλέπων ἐν τῷ κρυφαίῳ ἀποδώσει σοι). O termo grego κρυφαῖος (lê-se: krýfaîos) aparece somente aqui no NT (hápax) e descreve que o jejum deve ser conhecido somente pelo Pai, assim, Aquele que não pode ser visto, é Aquele que “vê” tudo feito “em segredo” (ὁ βλέπων ἐν τῷ κρυφαίῳ), Somente esse tipo de conduta receberá uma verdadeira recompensa (HAGNER, Donald A. Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, 2002, p.154).
Por esta passagem temos a constatação exegética da prática do jejum realizada de forma particular. Portanto, a questão tratada passa não somente pela constituição desta prática em sua devida motivação, pois descreve também a forma. Esta dualidade motivação/forma nos serve, pedagogicamente para pensarmos no jejum pelas prescrições do Senhor Jesus.    
Veremos ainda, At.13:1-3; os qual parece chancelar o aspecto público do jejum (um texto usado repetidamente por Calvino). Neste capítulo, percebemos as singularidades da igreja de Antioquia, pois foi a primeira congregação cristã a testemunhar aos gentios em sua própria cidade (11:19), a primeira que enviou missionários e a primeira igreja que teve uma visão quanto a “missões estrangeiras” (POLHILL, John B. Acts NAC, 2001, p. 288). O composto apresentado por 13:1 chancela a presença dos líderes da igreja (“profetas e mestres”) seguidos de cinco nomes (Barnabé, Simeão, Lucio Manaém e Saulo). Lucas nada explica sobre a diferença entre estes ministérios, nem se todos os cinco exerciam ambos (os ministérios) ou se os três primeiros eram profetas e os últimos dois mestres (STOTT John. A Mensagem de Atos, p.242). Nosso foco é a questão que envolve o jejum público.
Para tal análise pensemos a construção oriunda do grego. O diagrama traz o ponto nevrálgico que será objeto de nossa análise: a relação entre os particípios e o pronome (a ordem do texto foi mudada):  
      δὲ αὐτῶν
                |
             Λειτουργούντων τῷ κυρίῳ
                |
           καὶ νηστευόντων
Os dois particípios presentes (Λειτουργούντων, νηστευόντων) usados aqui, segundo Robertson podem ser vistos como “Genitivos Absolutos” (ROBERTSON, A.T.: Word Pictures in the New Testament, 1997, S. At 13:2). Eles atendem as caracterizações estruturais e semânticas deste tipo de Genitivo. Assim, parece que a tradução, neste caso, estabelece um viés temporal da seguinte forma: “enquanto eles serviam ao Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo...” Entretanto, a extensão dos que praticavam estas ações descritas pelo pronome αὐτῶν (lê-se: aytôn), corrobora com a fundamentação do jejum público? Este pronome denota somente os cinco ou toda a congregação?
Alguns autores fazem associação entre jejum, culto (serviço divino) e oração (STOTT John. A Mensagem de Atos, p.243), envolvendo toda a comunidade. Entretanto, na percepção de Barret isto não tem legitimidade, pois contextualmente os líderes parecem realizar esta ação. Assim, seria muito difícil dar a αὐτῶν (eles) uma aplicação mais ampla, de maneira que a referência em questão dos particípios alcançasse mais do que os profetas e mestres do v.1. Embora a maioria dos comentaristas faça isso, quando dizem que a presença da comunidade não é mencionada, mas é pressuposta. Além disso, este jejum em andamento não era uma questão que se relacionava, simplesmente ao período durante o qual os líderes estavam reunidos para adoração (BARRETT, C. K.: A Critical and Exegetical Commentary on the Acts of the Apostles, 2004, p. 604). Os particípios presentes podem legitimar isto. Portanto, o serviço realizado (λειτουργέω) em 13:2 visto como algo praticado pelos líderes, funciona como algo semelhante aos sacerdotes do Antigo Testamento, uma vez que a palavra é usada na Septuaginta nesse sentido como em: Êx.28:35,43; 29:30 (NEWMAN, Barclay Moon; NIDA, Eugene Albert: A Handbook on the Acts of the Apostles, p.244). Desta forma, o substrato desta tese funciona com relevância pelo contexto lógico. Dissociar os genitivos do v.2 dos nominativos do v.1 parece ser algo complexo.  
Em conexão com esta percepção está o co-texto posterior (13:3), de maneira que as três ações ali descritas parecem estar ligadas aos profetas e mestres: “jejuando, orando e impondo as mãos sobre eles” (Barnabé e Saulo). A ligação pode ser feita com a nomeação de presbíteros em 14:23, entretanto, a questão aqui não parece ser uma ordenação rabínica. Assim, esta “imposição de mãos” fala num “reconhecimento da ação divina” (BARRETT, C. K.: A Critical and Exegetical Commentary on the Acts of the Apostles, 2004, p. 606), “num ato de benção” (MARSHALL. Atos, p.206) ou “numa consagração solene a grande tarefa missionária” (ROBERTSON, A,T. Word Pictures in The New Testament, s.At.13:3).   
Este ensaio tem pretensões limitas em suas abordagens, pois objetiva o início da discussão sobre o jejum particular e público. A dificuldade inicial neste trato passa pela estatística dos aparecimentos dos termos gregos (νηστεύω, νηστεία) em seus poucos usos no NT. Esse componente limita nossas ações, para que possamos trazer afirmações mais exaustivas sobre o tema teológico em foco. De outro lado, realça a necessidade de se respeitar a suficiência da Escritura e assim, não defendermos o que está somente no campo da especulação. Portanto, duas proposições podem ser destacadas, a luz do diálogo observado: o jejum particular defendido por João Calvino tem sua base exegético-teológica firmada em Mt.6:16-19, entretanto, o jejum público (também defendido pelo Reformador), quando fundamentado em At.13:1-3 parece não funcionar desta forma. O uso pronominal observado pelo contexto parece descrever uma ação dos líderes, e não da igreja no momento do culto.


[1] Como em: CALVINO João. As Institutas Livro III, p.87.
[2] Dockery entende que Calvino (1509-1564) “foi o maior exegeta da reforma, mais do que qualquer outro estabeleceu a tendência ao uso do histórico-gramatical como fundamento para o desenvolvimento da mensagem espiritual baseada no texto”. DOCKERY S. Davies. Hermenêutica Contemporânea a luz da Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005, p.154 (grifo meu). Paulo Anglada segue esta linha de reconhecimento do trabalho hermenêutico do Reformador de Genebra: “Calvino é reconhecido como maior intérprete da reforma e um dos maiores de todas as épocas. Foi ele, sem dúvida, quem melhor praticou a exegese gramatical e histórica”. ANGLADA Paulo. Introdução a Hermenêutica reformada, p.87. 

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