“E houve tarde e manhã um [...] dia”: o “YOM”
(יוֹם) de Gn.1 visto descronologicamente (“as
estruturas de um arcabouço literário...”)
Neste ensaio, observaremos,
introdutoriamente, a expressão “...e houve tarde e houve manhã um dia...” (וַֽיְהִי־עֶ֥רֶב וַֽיְהִי־בֹ֖קֶר
י֥וֹם) presente em Gn.1. Faremos isto conscientes da
complexidade desta análise por algumas questões, uma delas destacada por Vern
Poythress, quando descreve o “caráter incomum dos seis dias em Gn.1 , pois
apresentam certas dificuldades na forma que os vemos (Poythress. Time in Genesis 1).[1] Alguns estudiosos terão papeis fundamentais na
construção dos nossos argumentos no trato desta questão. A defesa exposta neste
ensaio está fundamentada no que Bruce Waltke chama de: “estruturas de um arcabouço literário
designadas a ilustrar a natureza ordenada da criação divina e a capacitar o
povo pactual a imitar o Criador” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.71).
Inicialmente,
constatamos o uso da expressão, “...e houve tarde e houve manhã um/o dia...” (וַֽיְהִי־עֶ֥רֶב וַֽיְהִי־בֹ֖קֶר
י֥וֹם) pela coesão
lexical, já que aparece algumas vezes em Gn.1,
todas elas na conclusão das obras da criação (1:5,8,13,19,23,31), fechando a
atividade de cada dia. O desafio hermenêutico em voga tem seu fundamento na
compreensão, a partir da intenção do Autor/autor de seu significado, por isso, como entendê-la? Na
história da interpretação, alguns
autores trouxeram percepções, estabelecendo linhas hermenêuticas distintas
nesta questão. Agostinho de Hipona (354-430) pensa este ponto, fazendo uma
conexão entre os dias da criação: “antes de serem criados os luzeiros, talvez se
interpretasse, sem qualquer absurdo, como o término da obra realizada, e a
manhã, como a significação de uma futura operação” (AGOSTINHO. Gênesis, p.38). De outro lado, Calvino
(1509-1564) contribui ao afirmar a existência de uma linguagem de acomodação: “... o próprio Deus tomou o espaço
de seis dias, com a finalidade de acomodar essas obras à capacidade dos homens”
(CALVINO
João. The Ages Digital Library Commentary
– Commentary on Genesis, p.34). Numa síntese pedagógica Derek Kidner apresenta
outras possibilidades interpretativas quanto a simetria do esquema de Gn.1
(cronologicamente ou de outra forma):
[1] os seis dias vistos uma sequência de dias de instrução dada ao autor, não
(dias) da criação propriamente dita; [2]
o esquema de dias poderia explicar um interesse litúrgico, se pudesse
evidenciar que este “ hino” da criação foi composto para a celebração de uma
semana do Festival do Ano Novo em Israel, [3] a ordem pertence à forma
poética da passagem, e não deve ser salientada demais, visto que o interesse do
autor é expor-nos o mundo visível como obra das mãos de Deus, e não
informar-nos de que este aspecto é mais antigo do que aquele (KIDNER Derek. Gênesis, p. 51).
Depois
de pensarmos estes apontamentos, passemos para a análise
literária. Em primeiro
lugar, pela fórmula que envolve “os sete elementos”, descrevendo cada
estágio da criação, descritos por Wenham: Anúncio, (“Deus disse...”), comando (“haja luz”),
realização (“e houve luz”), execução, (“luz” criada com finalidade), aprovação,
("viu Deus que a luz era boa”), palavra subsequente, (“Deus chamou a luz
dia e as trevas noite”) e o número do dia. De fato, somente em Gn.1:3-5 todos
os sete elementos estão presentes numa sequência simples (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15,
2002, p.17). Por esta percepção entendemos de forma holística, de forma
estrutural, os ocorridos textuais nos dias da criação. Em segundo lugar, nessa dinâmica, observamos uma disposição
quiástica em Gn.1:5, de maneira que a ligação do verbo com objeto direto aparece
em sua construção:
וַיִּקְרָ֙א
לָאוֹר֙ וְלַחֹ֖שֶׁךְ קָ֣רָא
“[A] chamou [B] à luz [B] às trevas [A] chamou”.
Wenham explica que este “uso expressa a unidade dos dois
atos de nomear”. (WENHAM. Word
Biblical Commentary: Genesis 1-15, 2002, p.17). Em terceiro lugar, a ordem do
dia constitui numa problemática, pois começa com a “tarde” e depois vem a “manhã
um dia primeiro”. Como entender isto?
Waltke pensa a tradução possível desta expressão como: “veio à tarde, e então a
manhã ...” Desta forma, “a ideia, como expressa pelo hebraico, é que o primeiro
dia termina, quando as trevas da tarde se dissipam pela luz da manhã” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.71). Quanto a
justificativa deste uso, segundo Wenham, passa, “provavelmente pela percepção
judaica de que o dia começa a tarde, e não pela manhã” (WENHAM.
Word Biblical Commentary: Genesis 1-15,
2002, p.17). De outro lado, Victor
Hamilton nega a ordem em foco como apontamento para a delimitação do dia de um,
ao outro pôr do sol. A evidência, neste caso, sugere, fortemente que
este “dia” começava ao nascer do sol (cf. Gn.19:33,34; Jz.6:38; 21:4). Similarmente,
a expressão “dia e noite” é usada, mais frequentemente do que “noite e dia”.[2]
(HAMILTON P Victor. The
New International Commentary on The Old Testament, 1990, p.121). Portanto, a formatação dual (noite/dia ou dia/noite) observada tem
parâmetros constitutivos num viés definido, mas, quando reduza para a
proposta deste ensaio, a fala de Hamilton corrobora: (“veio à tarde, e então a manhã ...”) “parecem definir
não a computação dos dias, mas o tempo existente até ao amanhecer, o início do
dia para o próximo ato do Criador” (HAMILTON
P Victor. The New International
Commentary on The Old Testament, 1990, p.121). Nessa
mesma dinâmica Mathews usa o termo “retórico”,
pois esta expressão “estabelece o esquema literário da semana da criação,
distinguindo seis unidades ou dias” (MATHEWS. Genesis 1-11, NAC, logos Library System).
Assim, a natureza literária pode receber mais ênfase, mas não negando a
historicidade do evento da criação.
A relação entre os dias da criação
destaca o aspecto progressivo dos atos da criação e serve de substrato para as “estruturas
de um arcabouço literário”. Como ilustração, pensemos a relação
reduzida entre o primeiro e o quarto dia. Bruce Waltke traz um gráfico
instrutivo, para entendermos esta questão:
Este gráfico expõe o movimento e
desenvolvimento de cada tríade, as quais revelam uma progressão dentro da
criação. Neste viés, a primeira tríade separa o caos informe nas três esferas
estáticas. Na segunda tríade, as esferas casa e proteção da vida são
completadas com as formas de movimento do sol, lua e criaturas viventes. Os
habitantes da segunda tríade governam as esferas correspondentes: o sol e a lua
governam as trevas, enquanto a humanidade (cabeça sobre tudo) governa a terra. Dentro
da primeira tríade, há movimento simples de luz para trevas, de firmamento e
mares para vegetação que cresce. Dentro da segunda tríade, há uma erupção de
energia cinética. Sol e lua cruzam o céu; aves e peixes enxameiam o ar e mar;
animais terrestres vagueiam pelo solo. O padrão de movimento na segunda tríade
ocorre progressivamente. As luzes seguem um padrão premeditado e estruturado.
Os animais vagueiam em níveis limitados de liberdade, restringidos por seus
padrões instintivos de migração e habitação. Os seres humanos têm liberdade
mais ampla, limitada só pela própria terra. Todo o relato é unificado por uma
estrutura básica de um tempo semanal. A estrutura afirma a consonância e
simetria, a harmonia e equilíbrio no mundo de Deus (WALTKE Bruce. Gênesis, p. 71). Este aspecto
progressivo para Kidner tem sua importância declarada, pois depois de descrever
as possibilidades de interpretação, destaca que “talvez, uma ou outra dessas
sugestões justifique a intenção do capítulo. Entretanto, para o presente
escritor, a marcha dos dias é um avanço progressivo majestoso demais para não
incluir nenhuma ideia de sequência ordenada” (KIDNER Derek. Gênesis, pp.
51,52).
Com
esta percepção observaremos mais um substrato para “as estruturas de um
arcabouço literário”: o composto que envolve a אוֹר (‘or, “luz”, 1:3-5) e מָאוֹר (ma’vor,
“luzeiro ou luminar”, 1:14-19). A problemática em voga, neste caso, expõe: como
pensar em dias literais de 24 horas sem os luminares? Podemos afirmar que esta
correlação existia na intenção de Moisés?
Vern
Poythress observa um “caráter incomum nos seis dias, pois apresentam certas
dificuldades na forma que os vemos, além disso, alguns dos ritmos, os quais não
existiam até um ponto posterior na sequência deles. O ciclo da luz maior (o
sol) não existia até o quarto dia” (Poythress Time in Genesis 1).[3] Em suma, a correlação
exposta (מָאוֹר -אוֹר) quanto a tradução parece ser melhor vista
com o termo equivalente a “luminar(es)” (vs.14,16), do que propriamente “luzes”.
Desta forma, esses objetos devem ser
considerados transmissores, e não geradores de luz. Isso e o fato de o sol e a
lua não serem citados pelo nome mostra que há uma diminuição intencional da sua
importância numa época em que eram adorados quase no mundo todo. Esse ponto
de vista não contradiz a afirmação frequente de que a obra do quarto dia é
paralela à do primeiro (BRUCE. F.F. Comentário
Bíblico NVI, p.157). Entretanto, não podemos negar a fala daqueles que
afirmam a inexistência da conexão entre a luz do dia e o sol pelo background de
Gênesis (cf. MATHEWS; CHALAVAS; WALTON. The
IVP Bible Background Commentary, s.Gn.1:5). Entretanto, a partir de 1:14, a
relação do sol com a luz se torna uma realidade. Desta forma, os três primeiros
dias alternavam entre luz e trevas, segundo a vontade de Deus (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15,
2002, p.40). Esta questão pode ser vista também por uma dinâmica gramatical, isto
por causa da ausência do artigo no יוֹם. Este uso
em questão, segundo Waltke mostra que, “o narrador sugere, sutilmente uma
descronologização ao falar de cada um dos primeiros cinco dias como ‘um dia’,
não ‘o dia’” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.90). Essa construção pode ser
vista em Gn.1:5,8,13,19,23,31. Portanto, diante de todas as
complexidades existentes quanto a harmonização cronológica entres os dias da
criação, talvez seja possível observar esta questão de forma descronologizada.
Assim, podemos ressaltar a proeminência em voga, apontando para a
apresentação da criação através destes “dias”, revelando, desta forma, a
soberania de Deus, ordenando a criação e a preocupação divina em acomodar-se à
humanidade em termos finitos e compreensíveis (WALTKE Bruce. Gênesis, p. 71).
A última questão da tese em foco envolve
um caráter mimimético, pois a atividade criadora nos seis dias seguidas de
descanso no sétimo trará consolidações posteriormente. Em 2:1-3 a seguinte
estruturação favorece a proeminência em foco (4 linhas):
1. “Deus completou no dia sétimo a obra que
fizera
2. e descansou no dia sétimo de toda obra que fizera
3. e abençoou o dia sétimo e o santificou,
4.
porque descansou de
toda que como Criador fez”.
As consolidações a partir deste
verso quanto ao “YOM” tem delimitações a serem observadas, como destaca Waltke:
“nos primeiros seis dias, subjuga-se espaço; no sétimo, santifica-se
tempo” (WALTKE Bruce. Gênesis, p.79). Para isto devemos levar em conta
a paráfrase constitutiva quanto a clara afirmação: “quando o sétimo chegou,
Deus havia terminado Seu trabalho”( REYBURN; FRY. A handbook on Genesis, Logos System). Neste “dia” as evoluções argumentativas mudam
em perspectiva em relação as ações do Senhor na criação. Assim, este “dia
sétimo” (י֣וֹם
הַשְּׁבִיעִ֔י)[4]
por um viés temporal tem consolidações prescritivas no pentateuco, numa importância
mimimética (Êx.20:8,10,11). Como afirma Wenham: “ao observar o sétimo dia como
santo, o homem está imitando o exemplo de seu Criador” (WENHAM.
Word Biblical Commentary: Genesis 1-15,
2002, p.40).
Este ensaio tem pretensões limitas
em seu alcance, pois seu proposito objetiva, introdutoriamente a necessidade de
se pensar em outras alternativas exegéticas para entendermos os dias da
criação. Foi possível analisar a coesão lexical, alguns testemunhos na história
da interpretação e observar pontos quanto a análise literária. Os substratos
para a tese defendida teve alguns Centramentos: 1) a definição da expressão
“houve tarde e manhã um dia” não como computação deste “dia”, mas apontando
para o início de uma nova atividade do Senhor (efeito retórico); 2) a relação
entre os dias pela ênfase no aspecto progressivo que parece destacar como
proeminência o exercício soberano de Deus em criar, e não a cronologia, 3) o
aspecto gramatical pela ausência do artigo no “YOM” (um dia) destacando a
descronologização e 4) a relação com 2:1-3 onde o “YOM” tem conotação
mimimética e temporal.
[1]
Disponível em: http://faculty.wts.edu/wp-content/uploads/2018/03/Time-in-Genesis-1.pdf.
Acesso em 23/04 as 19:58.
[2]
Lv.23:32
[3]
Disponível em: http://faculty.wts.edu/wp-content/uploads/2018/03/Time-in-Genesis-1.pdf.
Acesso em 23/04 as 19:58.