sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

 

 O ENIGMÁTICO666” de Ap.13:18 ANALIZADO EXEGÉTICAMENTE

 


                             A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]

 

Talvez nenhum versículo da Bíblia tenha sido objeto de maior especulação do que Ap.13:18. O número da besta esteve relacionado ao longo dos séculos com, literalmente, centenas de possibilidades diferentes (OSBORNE. Comentário Exegético Apocalipse, p.582).

 

    O número 666 tem sido tratado de forma enigmática ao extremo. Corrobora com isso, certas escolas de interpretação que entendem o Apocalipse literalmente. Por esta razão, se fala na “marca da besta” como algo que será implantado num período futuro. Entretanto, devemos pensar outra alternativa exegética que lê o 666, com pressupostos hermenêuticos distintos. Não podemos negar a dificuldade presente nesse trato, desafiando uma exaustiva identificação. Nesse ensaio será defendido: [1] o fundamento simbólico do “666”, a partir do aspecto formal do gênero literário apocalíptico e da análise exegética do verbo “σημαίνω (semaíno) em Ap.1:1; [2] o desenvolvimento progressivo do contexto de 13:18, reduzido a 12:1 e [3] o modo de leitura, a partir da forma histórico-redentora de idealismo modificado” (Eclético) como pressuposto na abordagem de interpretação.    

     Antes de trabalharmos com a identificação do 666 presente em Ap.13:18, devemos nos posicionar quanto a definição de seu uso ser simbólico ou literal. A resposta passa pela identificação das abordagens de interpretação, pois nelas temos quadros de referência singulares defendidos. Assim, nestas percepções interpretativas “preterista, futurista, historicista, idealista e eclética” (ou “forma histórico-redentora de idealismo modificado”) os símbolos (como o 666) serão pensados de maneiras distintas. Além disso, os aspectos formais do gênero apocalíptico resumem-se basicamente a relatos de visões, mediadores de outro mundo e linguagem simbólica (KOSTENBERGER; PATTERSON. Convite a Intepretação Bíblica, p.482).[2] Por esta razão, quando lemos a descrição de Cristo exposta em Ap.1:10-17 ou em 5:1-14 devemos pensa-las simbolicamente e o mesmo deve ocorrer com os outros relatos deste livro. Beale corrobora com esta tese, quando explica que o próprio verbo usado em 1:1 (σημαίνω - semaíno) traz a ideia de uma “comunicação por símbolos”. Essa percepção está baseada na direção do “ἀποκάλυψις (apokálypsis – “revelação”) e na forma de transmiti-lo:

 DIREÇÃO/PROPÓSITO DA REVELAÇÃO: Αποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ [...] δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ [Revelação de Jesus Cristo [...] para mostrar aos seus servos]

MODO DE ENTREGA DA REVELAÇÃO: καὶ ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃ [e enviando por meio de seu anjo comunicou ao seu servo João]. 

    Além disso, Beale vê o paralelo com o AT no uso simbólico de “σημαίνω (semaíno) em Dn.2 (2:15,23,30,45 - LXX), definindo o uso em Ap.1:1. Neste caso, como referência a uma comunicação simbólica e (σημαίνω - semaíno), não meramente um transporte geral de informações (BEALE: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p. 51).

    Com o pressuposto que afirma o aspecto simbólico do Apocalipse, nos voltemos a identificação do “666”. Para tal tarefa observemos o contexto de 13:18. Nesse caso, a delimitação do discurso usada nesse ensaio é reportada a identificação das máximas oriundas de Ap.12, sendo tratadas progressivamente até 13:18. Beale as define assim: [A] como resultado da vitória de Cristo sobre o diabo, Deus protege a comunidade messiânica contra a ira diabólica (12:1-17) – [B] Os crentes são exortados a discernir sobre falsidade e a não participar do culto falso, propagado pelo diabo e seus aliados mundanos, de modo a manter sua fé (12:18-13:18 - BEALE: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, xiii). Essa transição do cap.12 para o 13 é a questão em foco, por esta razão, de forma mais pormenorizada olharmos para a tratativa de David Aune:

A mulher, o dragão e a criança (11:19-12:17)

a.    Manifestações divinas introdutórias (11:19)

b.    Introdução do dramatis personae: a mulher grávida e o dragão (12:1-4a)

c.    A primeira estágio do conflito: o nascimento e a fuga da criança e o voo da mulher (12:4b-6)

d.    O segundo estágio do conflito: a derrota do dragão e seus efeitos positivos e negativos (12:7-12)

e.    O terceiro estágio do conflito: o dragão persegue a mulher e sua prole (12:13-17)

Visão das duas bestas (12:17-13:18)

a.    Transição introdutória: o dragão ficou na areia do mar (12:17)

b.    O surgimento da primeira besta do mar (13:1-10)

c. Outra besta brota da terra (13:11-18 [AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 6-16, p. 657-660,722]).

   Nossa questão é justamente essa transição do cap.12 para o 13, pois “as bestas” a serviço do dragão têm como objetivo atacar a igreja. Nesse sentido, o povo de Deus é desafiado em 13:16-18 num contexto de religiosidade marcada por sua malignidade (13:1-15), pois sem a “marca” (χάραγμα khápagma) que é “ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ (eksakósioi eksékonta éks 666) ninguém pode “comprar ou vender”. Diante disso, observemos os apontamentos de 13:18: Ὧδε ἡ σοφία ἐστίν. ὁ ἔχων νοῦν ψηφισάτω τὸν ἀριθμὸν τοῦ θηρίου, ἀριθμὸς γὰρ ἀνθρώπου ἐστίν, καὶ ὁ ἀριθμὸς αὐτοῦ ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ.(“aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem e o seu número é seiscentos e sessenta e seis). O grau de oposição a igreja é notório e o ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ (eksakósioi eksékonta éks - 666), segundo Kistemaker indica “incompletude” (diferente do sete) e “juízo” (sexto selo, trombeta e taça). Embora o diabo tenha tentando eliminar todo o povo de Deus desde a morte de Abel até o presente nunca foi bem sucedido. Em conclusão o número 666 pertence a Satanás, e não a um indivíduo em particular que faz a obra do diabo na história (KISTEMAKER. Apocalipse, p.514 – ABORDAGEM IDEALISTA). De outro lado, com o pressuposto da gematria[3] Bratcher afirma que tem sido amplamente aceito que o 666 representa o imperador romano Nero. Escrito em letras hebraicas, o valor numérico das letras do nome (latino) “Neron Caesar” soma 666 (BRATCHER; HATTON: A Handbook on the Revelation to John, p. 20 – ABORDAGEM PRETERISTA). Osborne que trabalha numa abordagem futurista, define esse tempo como “período da tribulação final da história” [...] mesmo assim, afirma especificamente sobre o 666: “somente os leitores do primeiro século sabiam, ainda que seja difícil afirmar quanto disso eles sabiam (OSBORNE. Comentário Exegético Apocalipse, p.584).

   É importante observar que existe algo de proeminência maior sendo tratado (a perseguição, oposição e imperativo idólatra), uma dinâmica de resposta descrita no Apocalipse neste quesito. Observamos isso, em 15:2, de maneira que  João vê “os vencedores da besta, do número do seu nome e de sua imagem, entoando o cântico de Moisés”, já em 20:4 “as almas dos decapitados que não adoraram a besta”, numa contraposição em 14:11; 19:20 a condenação está em foco dirigida aos adoradores da besta. Essa dinâmica que descreve a diferença entre a comunidade dos santos e os ímpios o que não pertence a um período histórico distinto, pois está limitada temporalmente ou figuradamente ao tempo da escatologia futura. Por essa razão, a abordagem Idealista parece ser a melhor resposta, evitando as personificações. Entretanto, de outro lado parece claro que a perseguição dirigida a igreja tinha nomes relacionados claramente. Por esta razão, a limitação reducionista (preterista, futurista) dos eventos descritos no Apocalipse não reproduz seu propósito. Assim, quando lemos o 666 simbolicamente na “FORMA HISTÓRICO-REDENTORA DO IDEALISMO MODIFICADO”,[4] identificamos uma descrição da perseguição presente no 1º século (talvez por causa do culto ao imperador), mas também em tantas outras sofridas nos “últimos dias”. O local da marca (χάραγμα khápagma) nos ajuda nesse sentido, pois “a testa” representa um compromisso ideológico e a “mão”, as consequências deste compromisso (Êx.13:16; Dt.6:8; 11:18), isso visto em antítese a 7:2,3 (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.1375). Essa dualidade é definida primeiramente pela eleição (Ap.13:8; 17:14; 14:11; 19:20) e posteriormente por seus efeitos,  definindo as respostas supracitadas que são fundamentos imutáveis.

     Portanto, em primeiro lugar, o 666 nada tem a ver com uma marca literal. Sua questão é simbólica e aponta para o compromisso ou descompromisso com a religião apóstata (baseada no critério da eleição) que nos “últimos dias” (1ª a 2ª vinda de Cristo) estará sempre presente como inimiga da igreja. A dinâmica do 666 foca o ataque ao povo de Deus, exigindo um compromisso fiel e exclusivo que pode ser dirigido unicamente ao Senhor. É verdade também que a identificação de modo exaustivo numa visão preterista (ligado aos leitores originais) não é possível. Entretanto, é certa percepção que nos une, independentemente do tempo, ou seja, os imperativos divinos descritos na Palavra de Deus. Nossos irmãos foram ameaçados com isso e nós também. Por isso, o “666” como convite antagônico a vontade do Senhor esteve, está e estará diante da igreja até a volta de Cristo. A falsa religiosidade antagônica ao verdadeiro evangelho é a arma do diabo para convencer, destruir e desviar o homem do grande Deus. Aqui encontramos a marca da besta: “666”.


[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

[2] Essa é uma parte quanto ao gênero, pois os estudiosos atribuem três ao Apocalipse: epistolar, profético e apocalíptico.

[3] 666 também poderia ser concebido como um contraste com 888, o valor numérico por gematria do nome "Jesus".

[4] Uma versão mais viável e modificada da perspectiva idealista reconheceria uma consumação final na salvação e no julgamento. Talvez seja melhor chamar essa quinta visão de "ecletismo". Portanto, nenhum evento histórico profetizado específico é discernido no livro, exceto para a vinda final de Cristo para entregar e julgar e estabelecer a forma final do reino em uma nova criação consumada - embora existam algumas exceções a esta regra. O Apocalipse retrata simbolicamente eventos ao longo da história, entendidos como sendo sob a soberania do Cordeiro como resultado de sua morte e ressurreição. Ele guiará os eventos retratados até que eles finalmente emitam no último julgamento e no estabelecimento definitivo de seu reino. Isso significa que eventos específicos ao longo da idade que se estendem da primeira vinda de Cristo para o segundo deles podem ser identificados com uma narrativa ou símbolo. Podemos chamar essa era inaugurada pela primeira vinda de Cristo e concluída por sua aparição final "a era da igreja", "a era interadvenual" ou "os últimos dias". A maioria dos símbolos no livro são transtemporais no sentido de que eles são aplicáveis aos eventos ao longo da "era da igreja" (veja a seção abaixo sobre "Interpretação do simbolismo"). Portanto, os historicistas às vezes podem estar certos em suas identificações históricas precisas, mas errados ao limitar a identificação apenas a uma realidade histórica. O mesmo veredicto pode ser passado na escola preterista do pensamento, especialmente a versão romana, pois certamente há profecias do futuro na Revelação. A tarefa crucial e problemática do intérprete é identificar através da exegese cuidadosa e contra o contexto histórico original esses textos que pertencem respectivamente ao passado, ao presente e ao futuro. BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans;  Paternoster Press, 1999, pp.48,49.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

 

       A “Verdade” (ἀλήθεια) em seu caráter ontológico exposta no evangelho de João: Algumas Considerações Conceituais.

   



       Este ensaio trará certos apontamentos conceituais sobre a “verdade” (ἀλήθεια) em seu caráter ontológico delimitados pelo evangelho de João. Tal análise passa pela importância epistemológica/pedagógica do conceito em foco num tempo em que a “pós- verdade” faz parte da chancela de alguns pensadores. A “verdade” tem recebido tratos distintos, porquanto tem sido vista simplesmente como uma metáfora, uma forma de imposição ou uma manipulação hermenêutica do texto bíblico (ver THISELTON. Interpreting God and Postmodern on meaning, manipulation and promisse, pp.3-9) As falas dos ateus literários partem de negações metafísicas quanto a presença pessoal de Deus como consolidador, produtor de significado e desta forma, soberano sobre a verdade. A problemática em voga passa pelo caráter ontológico desta “verdade” ligada a Cristo (ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια), pois como entendê-la?  

      O substantivo ἀλήθεια (lê-se: alétheia) aparece 109 vezes no NT (muitas outras na LXX). Em seu background ἀλήθεια (lê-se: alétheia) ligada ao uso do grego antigo, funciona como uma forma privativa derivada dos verbos: λανθάνω/ λήθω (“ocultar algo de alguém, estar oculto”). Em síntese podemos pensar em algumas traduções (grego clássico), inicialmente como: “verdade em oposição a mentira ou mera aparência, posteriormente [verdade] também realidade” (Liddell., Scott & McKenzie. A Greek-English lexicon, p. 63). Desta forma, refere-se às coisas como são, mas sempre aquilo expresso; falar em ἀλήθεια (lê-se: alétheia)  era afirmar em algo “como é”. Desta forma, neste período clássico, pode ser vista como a revelação do estado de coisas que se exibem por si mesmas e, portanto, percebidas em sua realidade; além disso, e em completa continuidade com o uso antigo, poderia indicar a realidade e a essencialidade ou correção da afirmação do discurso revelador. Assim, na medida em que ἀλήθεια (lê-se: alétheia)  revela a disposição do falante, significa veracidade (Balz & Schneider. Exegetical dictionary of the New Testament, Vol.1, p.58).

     Num segundo momento precisamos observar pelo viés do AT. Neste viés, denota uma realidade que é firme, sólida, obrigatória e, portanto, verdadeira. Com referência a pessoas, caracteriza sua ação, fala ou pensamento e sugere integridade. Na lei, a palavra é usada para a verdade real de uma causa ou processo conforme mostrado pelos fatos (cf. Dt. 22:20; 1Rs.10:6; Dn.10:1). Apenas raramente há um uso mais abstrato, por exemplo, em Gn.4:16 (“se é como diz” ou “se há alguma verdade em ti”). Normalmente, os fatos estabelecem uma questão além da objeção, como também no caso da palavra de Deus (cf. 1 Rs.17:24; Jr.23:28). A consideração pelos fatos é indispensável para a distribuição correta da justiça (Zc.7:9; 8:16). Além disso, pode ser vista como uma extensão desse uso é para fatos mais gerais que exigem reconhecimento por todas as pessoas como realidade, como o estado normal correspondente à ordem divina e humana. O uso religioso corre paralelo ao legal, mas não é apenas uma aplicação figurativa dele. Muitas vezes denota uma realidade religiosa que não precisa ser explicada pelo uso forense. Os justos baseiam sua atitude para com Deus na verdade incontestável e praticam a veracidade como o próprio Senhor é verdadeiro (cf. Sl. 51:6). Aqueles que estão qualificados para “habitar no monte de Deus falam a verdade no coração”, ou seja, têm a mente voltada para isso (Sl.15:2). A verdade está ligada ao conhecimento de Deus (Os.4:1). Se é fundamentalmente uma atitude, o elemento racional no uso legal o vincula à instrução na lei, ou seja, nas Escrituras (Sl 119:160), pois as ordenanças de Deus são verdadeiras (Sl 19:9). Assim, andar na verdade pode ser ensinado (Sl 86:11). A verdade também pode ser colocada em oposição ao engano (cf. Ml. 2:6; Pv. 11:8; 12:19). Expressões poéticas têm verdade brotando do chão ou caindo na rua (Sl. 85:11; Is. 59:14), mas quando é dito que foi lançado ao chão em Dn. 8:12 parece ser igualado à verdadeira religião. Em linhas semelhantes, diz-se que Deus é o verdadeiro (ou seja, o único em 2 Cr. 15:3). No entanto, uma frase paralela em Sl. 31:5 refere-se ao Senhor como “confiável”, assim, acrescenta uma dimensão ética pela qual Ele garante padrões morais e legais. Deus pratica a verdade (Neemias 9:33), dá leis verdadeiras (Neemias 9:13), dá ordens válidas (Salmos 111:7), jura a verdade (Salmos 132:11) e mantém a norma da veracidade para sempre (Sl 146:6). O elemento de confiança, baseado no caráter de Deus, encontra expressão plena em 2Sm. 7:28: “Tu és Deus, e as tuas palavras são verdadeiras” (Kittel, Friedrich, & Bromiley. Theological dictionary of the New Testament, p.37).

  ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (14:6)

     Com estas perspectivas em foco observemos um caso presente em João em que o caráter ontológico da verdade aparece. O contexto de Jo.14:6 traz apontamentos quanto a identificação de Jesus como “o caminho”. Como destaca Beasley Murray: “a passagem continua o chamado para crer presente no v.1 e a garantia dada nos vs. 2–3, desenvolvendo o pensamento do caminho para o objetivo da ‘ida’ e ‘vinda’ de Jesus” (Beasley-Murray. Vol. 36: Word Biblical Commentary: John. Word Biblical Commentary, p.251). Nesta dinâmica argumentativa da narrativa o Senhor Jesus afirma: ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (“eu mesmo sou a verdade...” 14:6). Mas, como entender esta “verdade”? Observemos alguns pontos explicativos.

      Em primeiro lugar, Köstenberger afirma: “conhecer a verdade e ter vida além da sepultura uma das grandes aspirações da humanidade. Como João nos diz, somente em Jesus esses anseios humanos mais profundos podem ser realizados. Pois ele em sua própria essência é verdade e vida (KÖSTENBERGER. John. Baker Exegetical Commentary on the New Testament, p.429). Em segundo lugar, Jesus é a verdade, porque encarna a revelação suprema de Deus - ele mesmo 'narra' Deus (1:18), diz e faz exclusivamente o que o Pai lhe dá para dizer e fazer (5:19; 8:29), de fato ele é propriamente chamado de Deus (1:1,18; 20:28). Ele é a auto-revelação graciosa de Deus, sua Palavra, feita carne (1:14). Jesus é a vida (1:4), aquele que tem “a vida em si mesmo (5:26), a ressurreição e a vida' (11:25), o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1 Jo. 5:20). Somente porque é a verdade e a vida, Jesus pode ser o caminho para que outros cheguem a Deus (Carson. The Gospel According to John, p.491). Em terceiro lugar, “verdade e vida” correspondem aos papéis de Jesus neste Evangelho como revelador e doador (de vida). Somente Deus é “verdade e vida”, e quando nossa rebelião nos separou d’Ele, mergulhamos na ignorância e na morte. Segue-se que o caminho para o Pai, requerendo tanto revelação, devido à nossa ignorância, quanto vida, devido à nossa morte. Essa ideia é clara no Antigo Testamento e foi abordada pela entrega da Torá e pela atividade dos legisladores, profetas e sábios. Mas, este versículo mostra como o cumprimento de Jesus dos papéis de revelador e doador de vida é único. A unidade de Jesus com o Pai significa que ele não é apenas um legislador, profeta ou sábio que transmite a verdade de Deus, mas, como Deus, ele é a verdade. Da mesma forma, não é simplesmente alguém por meio de quem o Senhor resgata seu povo. Em vez disso, foi o agente da criação de toda a vida (1:3-4), e o Pai deu a ele para ter vida em si mesmo, como o próprio Deus (5:26). Aqui Jesus, como o próprio Deus, é verdade e vida, mas permanece distinto d’Ele e é o caminho para Ele (WHITACRE. Vol. 4: John. The IVP New Testament commentary series, p.351). Em quarto lugar, Bernard é sintético em postular: “tanto a exclusividade quanto a inclusão (cf. Cl. 2:3) da reivindicação ἐγώ εἰμι ἀλήθεια (“eu mesmo sou a verdade”) que são completamente joaninas. Isso é dizer muito mais do que admitir, como os fariseus fizeram, que Jesus ensinou τὴν ὁδὸν τοῦ θεοῦ ἐπʼ ἀληθείας (“o caminho sobre a verdade”, Mc. 12:14, Mt. 22:16, Lc. 20:21; BERNARD. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. John, Vol.2, p.537). Finalmente, Westcott expõe: “[a verdade] na qual se resume tudo o que é eterno e absoluto nos fenômenos mutáveis do ser finito” (8:32, 1:14, 1:17; 1 Jo.5:6 em conexão com o cap. 14:26; Ef. 4:21; Westcott. The Gospel According to St. John Introduction and notes on the Authorized version. 1908, p.202).

    Esta pequena trajetória tem finalidade limitada em sua proposta. Entretanto, podemos ver nela um aspecto importante da verdade vista pela exegese como algo ontológico (verdade encarnada). Tal perspectiva tem considerações de significado expostas em dinâmicas construídas por alguns estudiosos. Assim, para o cristianismo a “verdade” não é só uma proposição, mas uma pessoa que expressou, encarnou e pregou a verdade.  

terça-feira, 18 de outubro de 2022


“E a costela (צֵלָע) que o Senhor Deus tomara ao homem, transformou-o numa mulher...” Esta afirmativa de Gn.2:22 tem prerrogativa literal ou simbólica (“relato poético”, Wenham)?


       Neste ensaio, investigaremos Gn.2:21,22, de modo que, possamos ter uma ideia interpretativa quanto ao significado literal ou metafórico desta passagem. Esta tarefa não é nenhum momento simples, porquanto alguns desafios são postos principalmente, no que diz respeito as justificativas para as conclusões (exegese crítica). Entretanto, alguns estudiosos serão importantes para as demandas presentes no texto (Wenham, Ross, Waltke e outros). A defesa passará por considerações que nos levarão ao entendimento de que a criação da mulher em Gn.2:21,22 tem valor metafórico.

    A narrativa de Gn.2:18-24 tem fundamentações que funcionam para delimitar algumas questões. Assim, a criação da mulher da costela do homem supre o que faltava para sua perfeita felicidade. Além disso, cinco cláusulas curtas nos vs.21-22 descrevem a obra de Deus e completam a descrição da tarefa de encontrar uma companheira para o homem iniciada no v.18. Seu sucesso é aclamado com entusiasmo na explosão poética presente no v.23 (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Tudo isso culmina em 2:24 e assim, a criação do primeiro casal leva naturalmente à sua relação expressa através do casamento. Uma vez que cabe ao casal procriar e subjugar a terra (1:28, MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.222). Este fluxo da narrativa corrobora com nossa compreensão da questão nevrálgica que veremos neste ensaio.

       O processo descrito em Gn.2:21,22 tem algumas considerações a serem destacadas: “então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado (profundo) sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;  E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão”. Inicialmente, תַּרְדֵּמָה   (tardemah) é usado, segundo Nahum Sarna, para o sono anormalmente pesado, induzido divinamente [Is. 29:10; 1 Sm 26:12]. Tem aqui a dupla função de tornar o homem insensível à dor da cirurgia e alheio a Deus em ação (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.22). Wenham corrobora ao destacar que muitas vezes  aparece também como ocasião para a revelação divina (Gn.15:12; Jó.4:13). Possivelmente é mencionado aqui, porque os caminhos de Deus são misteriosos, e não para as observações humanas ou [porque] imaginar o homem consciente durante a operação destruiria o encanto da história. Certamente a observação de fechar a carne depois deve ser atribuída à preocupação do narrador com a beleza da ocasião (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69). Em suma, este “sono profundo” (tardemah) que Adão experimenta e o procedimento que se segue, funciona como algo iniciado e realizado exclusivamente por Deus. O homem nem é um espectador consciente (1:28, MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.216). Assim, parece que estes caminhos chancelam a absolutização da vontade de Deus em relação ao misterioso ocorrido.  

    Depois de observar o protagonismo de Deus em relação a “cirurgia”, focaremos na forma como se deu: “... tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;  E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher” (Gn2:22). Neste caso, “a costela” (צֵלָע - lê-se: tsela aparece 47 vezes no AT) do homem funcionou como meio para a realização divina. Keil e Delitzsch trabalham com a ideia de que a tradução de “tsela” seja “o lado e, como parte do corpo humano, a costela” (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament, vol.1:55-56). Tal perspectiva acaba por considerar a visão fenomenológica do narrador e dos narratários (sem nomenclaturas científicas). Além disso, pelo contexto histórico do texto, neste caso o uso da “tsela” de Adão, pode-se encontrar certa iluminação na língua suméria. A palavra (suméria) para costela é “ti” e de interesse é o fato de que “ti” significa “vida”, assim como Eva (3:20, Matthews, V. H., Chavalas, M. W., & Walton. The IVP Bible background commentary: Old Testament, Gn.2:22).[1] Com estes considerandos avançamos um pouco na argumentação, por meio da fala de Nahum Sarna: “o mistério da intimidade entre marido e mulher e o papel indispensável que ela idealmente desempenha na vida do homem são descritos simbolicamente em termos de sua criação fora de seu corpo” (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.22). Aqui está o ponto em voga para nossa análise.

   Numa hermenêutica de “senso comum” comumente se lê sem o conhecimento das devidas justificativas para as conclusões. Entretanto, a questão é mais complexa. Existem certos dispositivos a serem observados para o trato exegético. Primeiramente, o público alvo, ou seja para quem o narrador dirige suas afirmativas. Waltke vê esta questão da seguinte forma: “depois do êxodo, o povo de Israel viaja pelo deserto. Deixa o Egito, lugar saturado de mitologia pagã, e se dirige a Canaã, outro lugar saturado de mitologia pagã. Os mitos pagãos da época envolviam, em grande parte, ritos e rituais que serviam. de reencenações anuais de uma criação original. O objetivo disso era garantir a estabilidade da criação e a continuação da vida no ambiente dessa mesma criação” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.196,197). Neste cenário a narrativa da criação serve a um propósito definido: “[a narrativa da Criação] tem o propósito de ridicularizar esses mitos” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.198). Esse ponto mostra o papel do narrador (fora da história) e o conteúdo do ponto de vista fenomenológico transmitindo suas informações. Juntamente com isto num tom apologético chancelando a superioridade do Deus de Israel em relação ao panteão egípcio e o cananeu. Assim, podemos reafirmar a tese em foco pela fala de Mathews: “o significado simbólico da ‘costela’ é que o homem e a mulher estão aptos um para o outro como companheiros sexual e socialmente” (MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.217). Portanto, qual é o foco explicativo para a criação da mulher, a luz da metáfora exposta?

     Anteriormente, começamos a observar isto, entretanto, agora seremos mais exaustivos. Inicialmente Waltke destaca: “nessa metáfora, atribui-se a Deus, com o arquiteto, a origem do belo projeto que é a mulher, e à carne e aos ossos de Adão atribui-se sua origem imediata, o que a torna igual a ele. Esses relatos apresentam verdade teológica no linguajar do antigo Oriente Médio. Eles não têm o objetivo de descrever em linguagem científica como isso aconteceu. Ensinam a verdade, a fim de moldar a cosmovisão de Israel em sua relação de aliança com Deus” (WALTKE. Teologia do Antigo Testamento, p.114). Além disso, Keil e Delitzsch corroboram: “a mulher foi criada, não do pó da terra, mas de uma costela de Adão, porque foi formada para uma inseparável unidade e comunhão de vida com o homem, e o modo de sua criação foi estabelecer o fundamento real para a moral ordenança do casamento. Assim como a ideia moral da unidade da raça humana exigia que o homem não fosse criado como um gênero ou pluralidade, a relação moral das duas pessoas que estabelece a unidade da raça exigia que o homem fosse criado primeiro, e então a mulher do corpo do homem” (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament, vol.1:55-56). Finalmente, Wenham postula em sua afirmativa: “aqui está sendo retratado o ideal de casamento como era entendido no antigo Israel, uma relação caracterizada pela harmonia e intimidade entre os parceiros. A destruição desse relacionamento é descrita nos capítulos seguintes, mas, como outros aspectos da existência do homem estabelecidos em Gênesis 1-2, os primeiros dias do (primeiro) casamento continuam sendo uma meta à qual Israel esperava retornar quando as promessas a Abraão fossem cumpridas. A história, portanto, precisa ser lida com atenção, pois em sua fraseologia muitas vezes poética são expressas algumas das convicções fundamentais do Antigo Testamento sobre a natureza e o propósito do casamento” (WENHAM. Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.69).   

     Depois desta sintética investigação conseguirmos encontrar algumas justificativas para a leitura metafórica. Longe de ser exaustivo o ensaio tem pretensões limitadas, a mais considerável passa pela necessidade de uma “leitura fechada” do texto. Tal metodologia faz com que fujamos da tautologia (“é porque é”). Assim, afirmamos a necessidade da hermenêutica para todos os leitores-intérpretes da Bíblia Sagrada.    



[1] Wenham se mostra contrário a esta percepção: “a ideia de que a mulher foi feita da costela do homem, porque “costela”, (ti)  “vida”, (til), são palavras sumérias de som semelhante, mas parece improvável e pressupõe um conhecimento extraordinário do sumério por um hebreu” (WENHAM, G. J. Vol. 1: Word Biblical Commentary: Genesis 1-15. Dallas: Word, Incorporated, 2002, p.69).


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

 

A Monogamia da CRIAÇÃO (supracultural) e a Poligamia POSTERIOR (cultural) em Antítese vistas por uma relação com a GRAÇA DE DEUS: Alguns Apontamentos introdutórios sobre esta questão.


      O presente ensaio exegético tem como objetivo trabalhar a relação antitética existente entre a monogamia e a poligamia. A metodologia para tal investigação passará pela compreensão de dois textos que servirão de laboratório (Gn.2:24; Gn.16). Em suma, a ideia fundante passará pela relação TESE-ANTÍTESE ou o elemento supracultural e cultural visto nas informações textuais. Tal perspectiva tem conotação pedagógica, de modo que, tenhamos diante de nós a clareza quanto a intertextualidade. Finalmente, veremos a graça o funcionamento da graça de Deus nesta dinâmica.   

      De forma categórica lemos em Gn.2:24 o estabelecimento do casamento monogâmico/heterossexual. O texto acaba por funcionar numa dinâmica contextual em que alguns elementos são descritos. De forma, mais reduzida observamos o estabelecimento da mulher num viés distinto (2:21,22). Logo depois foi traga ao homem que disse:esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada” (2:22). Nossa questão está fundamentada no comentário do narrador em 2:24: 

   “portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne” (דָבַ֣ק בְּאִשְׁתּ֔וֹ וְהָי֖וּ לְבָשָׂ֥ר אֶחָֽד׃). 

  Esta primeira expressão (“...e apegar-se-á à sua mulher”) sugere que tanto a paixão quanto a permanência devem caracterizar o casamento. O amor de Siquém é descrito como “sua alma apegou-se a Diná” (Gn 34:3). As tribos de Israel têm a certeza de que manterão sua própria herança; isto é, será deles permanentemente (Nm 36:7-9). Israel é repetidamente exortado a “se apegar ao Senhor” (Dt 10:20; 11:22; 13:5, etc.). O uso dos termos “abandonar” e “pegar” no contexto da aliança de Israel com o Senhor sugere que o AT via o casamento também como uma espécie de aliança (WENHAM. Vol. 1: Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.71). Assim, percebemos que o casamento heterossexual/monogâmico sempre foi visto como a norma divina desde o início da criação. A instrução mosaica mostra esforços consideráveis para salvaguardar esse ideal contra sua dissolução, esclarecendo o que é “família”. A sexualidade foi fundamental para definir o que era uma família em Israel; a abolição das fronteiras sexuais ameaçava a identidade dessa instituição social central. Sem limites apropriados, a “família” cessou, e a consequência foi a ruína de Israel como nação, o mesmo destino sofrido por seus predecessores (Lv 18:24-30). Fortes proibições contra ofensas sexuais muitas vezes prescreviam a pena de morte, como no caso dos pecados hediondos de assassinato e idolatria (MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.224). Assim, o preceito em voga pode ser visto num viés paradigmático para o estabelecimento do casamento com gêneros diferentes e um só cônjuge, algo que acaba por expor o princípio da exclusividade.  

     A primeira antítese ao padrão aparece em 4:19, quando o narrador fala de Lameque (4:19), entretanto, talvez a questão mais problemática seja a postura de Sara e Abraão em Gn.16. Algo que inicialmente é descrito num cenário em que  “Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos (depois de 10  anos que Abrão estava morando em Canaã, 16:3), e ele tinha uma serva egípcia, cujo nome era Agar” (16:1). Desta forma, observamos que Sarai teve uma ideia para resolver a dificuldade em foco, mas tal percepção estava em antítese a Gn.2:24? Porquanto Abrão teve relações com Hagar (16:4).  

   Para entender esta questão, passemos, incialmente pelo background do texto. Assim, a plausibilidade da postura de Sarai passa fato de que as escravas eram consideradas propriedades e extensões legais de sua amante. Além disso, as concubinas não tinham o status pleno de esposas, mas eram meninas que chegavam ao casamento sem dote e cujo papel incluía ter filhos. Como resultado, o concubinato não seria visto como poligamia. Em Israel, como na maior parte do mundo antigo, esta monogamia era geralmente praticada. A poligamia não era contrária à lei ou aos padrões morais contemporâneos ao tempo do texto, mas geralmente não era economicamente viável. A principal razão para a poligamia seria que a primeira esposa era estéril. Na Bíblia, a maioria dos casos de poligamia entre os plebeus ocorre antes do período da monarquia (MATTHEWS, CHAVALAS, & WALTON, J. H. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament, Gn 16:4). Esta perspectiva nos ajuda na compreensão do fundamento influenciados que os personagens tinham.

    A forma como se via a ausência de filhos funcionou como fundamento para a poligamia. Era um assunto sério para um homem não ter filhos no mundo antigo, pois isso o deixaria sem herdeiro. Mas, era ainda mais calamitoso para uma mulher: ter uma grande prole de filhos era a marca do sucesso como esposa; não ter nenhum era um fracasso ignominioso. Assim, em todo o antigo Oriente, recorreu-se à poligamia como meio de evitar a falta de filhos. Mas, as esposas mais ricas preferiam a prática da maternidade de aluguel, por meio da qual permitiam que seus maridos tivessem relações sexuais com suas empregadas, um eufemismo para estas relações sexuais (cf. 6:4; 30:3; 38:8, 9; 39:14). A amante podia então sentir que o filho de sua empregada era seu e exercer algum controle sobre ele de uma maneira que não poderia, se seu marido simplesmente tivesse uma segunda esposa. Assim, Sarai expressa aqui a esperança de que pudesse “ter filhos por meio dela”. “O verbo como está só pode significar “eu serei edificado” (WENHAM. Vol. 2: Word Biblical Commentary: Genesis 16-50. Word Biblical Commentary, p.7). Entretanto, a questão em foco passa pela identificação do narrador quanto a aprovação ou desaprovação quanto a avaliação do ato de Abrão e Sara.

   Neste quesito Waltke afirma que Sarai, inicialmente reconhece o Senhor como o Criador da vida; entretanto, não interpreta sua infertilidade em termos da promessa de Deus. Sua queixa a condena por tirar a iniciativa das mãos dele. Sem uma palavra de Deus a autorizar seu plano, Sarai se faz culpada de sinergismo. Seu plano de lidar com o problema se compara ao de Abraão em 12.11-13 (WALTKE. Gênesis, p.306). Dados os costumes sociais do antigo Oriente Próximo, a sugestão de Sarai foi um curso de ação perfeitamente adequado e respeitável. Portanto, é compreensível quando alguns comentaristas supõem que o autor de Gênesis aprovava sua ação. No entanto, uma leitura atenta do texto sugere o narrador considera sua ação um grande erro. Em primeiro lugar, há a consideração geral de que a proposta de Sarai parece ser a resposta humana normal ao problema da falta de filhos no mundo antigo, enquanto a promessa de um herdeiro real em Gn.15:4 sugere que algo anormal aconteceria. Segundo, a maneira como Sarai toma a iniciativa de resolver um problema em vez de esperar pela intervenção do Senhor lembra a abordagem de Abrão em 12:10-20, onde em uma situação difícil ele chamou Sarai de sua irmã. Em terceiro lugar, muita atenção aos vs.2-3, porquanto sugerem a desaprovação do narrador, pois ele claramente alude a Gênesis 3 (WENHAM. Vol. 2: Word Biblical Commentary: Genesis 16-50. Word Biblical Commentary, p.7). Com estes sintéticos apontamentos percebemos o lado da influência cultural dos personagens definindo suas posturas, entretanto, o elemento supracultural que advém da teologia da criação.

       Ao observar essa relação TESE-ANTÍTESE pode gerar alguma dificuldade, pois pode-se questionar: como Sarai e Abrão mesmo cometendo esse pecado, tiveram acesso as ações de Deus? No contexto de Gn.16 o Anjo do Senhor afirma a Hagar que deveria voltar a sua dona (Gn.16:9), além disso, a narrativa no seu macro deixa claro que o Senhor continuou firme em Sua imutabilidade quanto a promessa, ainda que as atitudes de Abrão e Sarai tenham sido antagônicas ao padrão divino. Tal perspectiva acaba por gerar muita dificuldade para o legalista. Entretanto, aqui temos claro diante de nós a importância da GRAÇA DE DEUS como substrato inicial do aspecto relacional entre o homem e o SENHOR.  

      Vogt analisa esta questão, a partir do Gênesis em alguns ocorridos no livro. Em primeiro lugar, na rebelião de Adão e Eva (algo que gerou a perturbação do Shalom), pois Deus poderia ter destruído suas criaturas e começado de novo, entretanto, Ele escolheu permitir que suas criaturas teimosas vivessem. Com certeza esta é uma clara manifestação da Sua graça. Talvez, a maior manifestação desta graça, segundo Vogt, venha do chamado de Abrão (12:1-3). Tal perspectiva passa pelas afirmativas de todo o Gênesis, onde os patriarcas são mostrados como criaturas frágeis, pequena e propensas (como todos os humanos) a pecar. Apesar desta infame disposição dos personagens, YHVH reitera Sua promessa de abençoar os descendentes de Abraão para abençoar todas as nações e restaurar a criação à sua glória almejada (VOGT. Interpretação do Pentateuco, p.77).

    Longe de pretensões exaustivas este ensaio procurou consolidar um modelo de diálogo antitético entre a monogamia e a poligamia em construtos exegéticos. Foi possível ver que o “fato social” funcionava como elemento direcionador. Tal direcionamento trazia considerações culturais, entretanto, vistas numa contracultura pelo padrão presente na estrutura oriunda da teologia da criação. Este exercício deve ser expandido para outros momentos do AT, de modo que tenhamos uma ideia da antítese exposta.     

 

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...