quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

 

Pedro cita Paulo e as demais Escrituras (2Pe.3:15,16): o diálogo intratextual do NT e  suas implicações teológicas


      Neste ensaio focaremos no diálogo intratextual promovido por Pedro em relação a Paulo com propósitos definidos. Tal apontamento pode ser visto, a partir de algumas considerações hermenêutico/teológicas que envolvem uma ideia de cânon vista pela evidência interna. Neste caso, como bem coloca Bauckham: “os escritos autorizados, adequados para leitura na adoração cristã [...] “muito antes de haver qualquer cânon fixo do NT” (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.333). A defesa exposta neste ensaio passará pelo reconhecimento da igualdade autoritativa existente entre Pedro, Paulo e “as demais Escrituras”. Além disso, o importante elemento metafísico que descreve o texto escriturado como algo dado, e não advindo somente de particular elucidação.    

       Como bem descreve Schreiner “escatologia e ética estão firmemente unidas em 2 Pedro” (Schreiner, NAC, 1, 2 Peter, Jude, p.338). A passagem que será foco de nossa análise (2Pe.3:15,16), funciona nesta dinâmica, privilegiando posturas imperativas diante da “vinda do Dia de Deus” (2Pe.3:12). Em conexão com isto aparece a forte contradição petrina quanto aos falsos mestres e suas “heresias destruidoras” (2Pe.2:1-22). Desta forma, percebemos estas tônicas, sendo trabalhadas, por meio de vários argumentos expostos. Corrobora com isto, a preocupação com a igreja, porquanto o apóstolo declara: “...acautelai-vos; não suceda que, arrastados pelo erro desses insubordinados, descaiais da vossa própria firmeza” (2Pe.3:17). Assim, ficamos conscientizados de que estas máximas circundam as falas de Pedro quanto a suas abordagens. O ponto nevrálgico para nossa análise passará pelo papel de Paulo nas construções citadas.

    Inicialmente, a constatação textual passa pela afirmativa de que “Paulo escreveu a vós” (Παῦλος [...] ἔγραψεν ὑμῖν, 2Pe 3:15). Tal declaração pode nos fazer questionar o conteúdo (de que cartas o texto fala?) ou a extensão do pronome “vós” (todos cristãos ou uma igreja específica?). Existem algumas pesquisas citadas por alguns estudiosos neste quesito (Ver em: Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.330). Entretanto, focaremos no fato da escrita como elemento direcionador para o diálogo intratextual do NT. Este ponto se mostra de grande relevância quanto a constatação da existência do texto, desempenhando um papel distinto. Desta forma, a incompatibilidade entre as afirmativas do NT acabam por serem comprometidas, por meio desta consciência de Pedro.   A antítese petrina quanto a fala dos falsos mestres (3:3,4) aparece no destaque dado a “longanimidade de Deus” ligada a salvação, algo exposto por Paulo. Desta forma, temos por consolidada a harmonia entre os textos e os argumentos. Esta perspectiva é de grande importância para entendermos a convergência presente nos textos do NT. Assim, nosso conceito de cânon por uma evidencia interna se torna plausível. O ponto em questão passa por linhas hermenêuticas centradas em temáticas expostas, mas todas centradas em Cristo.

     Se faz necessário considerar certo ponto metafísico em voga, pois “Paulo escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada” (Παῦλος κατὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτῷ σοφίαν ἔγραψεν ὑμῖν). A passividade do apóstolo acaba por chancelar que seu texto parte de uma iniciativa divina. Este elemento é de grande relevância, para que a “presença” seja vista como elemento de centralidade. O teísmo ganha status de verificação aqui, porquanto o texto produzido não é suficiente em si e nem no seu autor. Bauckham entende que existe uma equivalência com πνευματικῶς (“sob a inspiração do Espírito”). Isto baseado no fato que δοθεῖσαν (“dado”) é um passivo “divino”, tendo Deus como o agente implícito, por isso, “sabedoria” de Paulo é, portanto, um dom carismático do Senhor. Além disso, o próprio Paulo frequentemente se refere à “graça (χάρις) dada a” ele (Rm 12:3; 15:15; Gl 2:9; 1Co.3:10; Ef 3:2,7; cf. Cl.1:25) , isto é, sua comissão apostólica, a capacitação divina pela qual ele recebe e compreende a revelação do propósito de Deus no evangelho (Ef.3:2–10), e pela qual fala e escreve com a autoridade de quem transmite a mensagem de Deus (Rm.12:3; 15:15–16). A referência de 2Pedro à sua sabedoria carismática implica nem mais nem menos do que isso. A escolha da palavra σοφία (“sabedoria”), em vez do termo geral χάρις (“graça”), é apropriada em referência ao ensino de Paulo em suas cartas (cf. 1Co 2:6–13). Foi com a visão dada por Deus quanto a verdade do evangelho, o carisma da sabedoria, que o apóstolo escreveu suas cartas (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.329). 

   Corrobora com a fala anterior quanto ao diálogo intratextual do NT, a afirmativa de uma heterodoxia hermenêutica citada por Pedro. Inicialmente, tal perspectiva passa pelo reconhecimento de Paulo “fala destes assuntos em todas as suas epístolas, as quais tem certas coisas difíceis de entender” (ὡς καὶ ἐν πάσαις ἐπιστολαῖς λαλῶν ἐν αὐταῖς περὶ τούτων, ἐν αἷς ἐστιν δυσνόητά τινα, 2Pe 3:16). Desta forma, conseguimos perceber certa uniformidade de pensamento. A precisão com que isto é colocado passa reconhecimento de Pedro quanto a complexidade do que Paulo escreveu. O adjetivo grego δυσνόητος (dysnóetos) desempenha o papel de expor isto, pois é uma palavra rara e usada para textos de difícil interpretação (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.331). Essa característica das cartas de Paulo é mencionada com um propósito: explica como podem ser mal utilizadas pelas pessoas. Assim, temos a clara transição para o outro em voga ainda na dinâmica da heterodoxia, mas agora com fundamentos hermenêuticos.

     Pedro cita “os ignorantes” e “instáveis” como os responsáveis pela quebra dos vínculos de harmonia por uma interpretação deficitária das cartas de Paulo. Em suma, este “ignorante” (ἀμαθής) aponta para alguém, “iletrado”, “sem instrução” e é usado principalmente para pessoas que não receberam instrução suficiente na interpretação das Escrituras e que, portanto, são propensas ao erro. De outro, “instável” (ἀστήρικτος) descreve aqueles que não estão firmemente enraizados nos ensinamentos da fé cristã e, portanto, são facilmente enganados (Arichea & Hatton. A handbook on the Letter from Jude and the Second Letter from Peter, p.164). A ação eles era “deturpar” (στρεβλόω, streblóo) algo ligado a incapacidade de se interpretar e ausência de firmeza nos princípios da fé crista. Quanto as possibilidades de deturpação podem ser muitas, a partir dos textos paulinos (ver em: Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.331).  

    Pedro vai além, pois diz que estes fazem isso também com “as demais Escrituras” (ὡς καὶ τὰς λοιπὰς γραφὰς, 3:16). Assim, parece que para o apóstolo existe uma igualdade autoritativa em foco, pois a heterodoxia dos falsos era dirigida aos textos sagrados. Bauckham é detalhista com o grego: “não faria sentido tomar γραφάς no sentido não técnico de “escritos”; o artigo definido (τὰς γραφὰς) exige que lhe demos seu sentido técnico (como sempre no NT) de “escritos inspirados e autorizados”, isto é, “escrituras” (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.333). Além disso, não precisa implicar um cânon da Escritura. A inclusão das cartas de Paulo nesta categoria certamente significa que eram consideradas como escritos inspirados e autorizados classificados ao lado do AT e provavelmente de vários outros livros, incluindo outros escritos apostólicos. Provavelmente a implicação é que são adequados para leitura na adoração cristã. Mas, isso não requer a conclusão de que o autor de 2 Pedro conhece um cânon do NT. Os escritos apostólicos devem ter sido classificados como escritos autorizados, adequados para leitura na adoração cristã, muito antes de haver qualquer cânon fixo do NT (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.333).

    O efeito de tal ação: “para sua própria destruição” (πρὸς τὴν ἰδίαν αὐτῶν ἀπώλειαν). Pedro traz um importante ponto aqui, pois expõe o juízo como consequência da deturpação hermenêutica presente na heterodoxia. Neste caso, esta destruição deve ser entendida não no sentido físico, mas espiritual, e inclui a sujeição ao castigo de Deus. Para sua própria destruição também pode ser expresso como “e assim causar a si mesmos a destruição” ou “e assim causar a si mesmos a sofrer (receber) destruição” (Arichea & Hatton. A handbook on the Letter from Jude and the Second Letter from Peter, p.165). O mau uso das Escrituras pelos falsos mestres e seus seguidores era sério o suficiente para pôr em perigo a salvação deles. Portanto, não era uma questão de pequenos erros doutrinários, mas de usar suas interpretações errôneas para justificar a imoralidade, pois é o ensino consistente de 2Pedro que o julgamento escatológico vinha sobre estes falsos mestres por causa de suas vidas ímpias (Bauckham. WBC: 2 Peter, Jude, p.333).

     Esta pequena jornada interpretativa trouxe alguns considerandos fundantes para nosso embasamento teológico (dimensão teológica da interpretação). A ideia de um vínculo de ideias tem proeminência em nossa análise. Afinal, o ponto descritivo passa pela conexão de “Pedro em Paulo – Pedro em Paulo e as demais Escrituras”. Percebemos que “Paulo escreveu” com contornos argumentativos distintos e sua fala foi vista num antagonismo com as posturas hermenêuticas dos falsos mestres. Portanto, temos diante de nós a ausência de um inclusivismo teológico quanto a qualquer postulado hermenêutico-teológico do NT. Temos aqui um passo introdutório para pensarmos o cânon pelo viés da evidência interna.    

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

 

        Dizimar como imperativo e como algo direcionado em seus usos (elementos indissociáveis): algo datado?


       Comumente os fervorosos pregadores de nosso tempo são enfáticos para falar do dizimar como imperativo. Tal questão acaba por funcionar como um reducionismo, pois o tema em foco tem mais associações textuais expostas. Neste ensaio, focaremos na análise exegética do dízimo e seus desdobramentos, porquanto tal associação não pode ser ignorada. A defesa em foco passa pela conscientização do dizimar como algo datado num viés de contextualização. Na verdade, num tom crítico afirmaremos que muito do que se afirma sobre o ponto em questão nem aparece na Torah. Para tal focaremos em Dt.14 e 26 com suas constituições textuais descritas.  

     Em primeiro lugar, veremos o dizimar como imperativo algo destacado em 14:23: “certamente darás os dízimos...” (עַשֵּׂ֣ר תְּעַשֵּׂ֔ר). Em hebraico, esta é uma ordem enfática, vista numa forma verbal composta: “dízimo, tu deves dizimar”. O “dízimo “significava dar a Deus um décimo da renda bruta de uma pessoa - neste caso, produtos agrícolas” (12.6). Ao lidar com isso, a maneira mais natural de expressar o comando é dizer “reserve um décimo” ou “reserve dez por cento”.[1] Assim como os israelitas deviam santificar seu alimento, por um lado, positivamente pela abstinência de tudo que era impuro, deviam, por outro, fazê-lo, entregando os dízimos e primícias no lugar onde o Senhor colocaria Seu nome para habitar, e realizando refeições festivas na ocasião, e ali regozijando-se diante do Senhor Seu Deus.[2] Além disso, alguns parâmetros se tornam reais, envolvendo a relação entre o dizimista e o seu dízimo. Este dízimo especificado nestes versículos diz respeito somente aos produtos da terra, a saber, cereais, vinho novo e óleo fresco (v. 23; veja também 7.13). O dízimo devia ser levado ao lugar onde Deus escolhesse para estabelecer Seu nome (veja12.5) e comido “diante do SENHOR, seu Deus”. Entregando o dízimo a Ele regularmente, o povo “aprenderia a temer o SENHOR, seu Deus, sempre (v. 23) e saberia que sua prosperidade não dependia da irrigação ou de técnicas agrícolas avançadas, mas da bondade e da provisão de Deus”.[3] Além disso, o problema da distância era resolvido (14:24-26), de maneira que, se o percurso até o santuário central “fosse muito longo” para trazer o dízimo em espécie, os adoradores eram instruídos a “trocá-lo por dinheiro” e desta forma, trazê-lo “ao lugar que o Senhor escolhesse”. Ali poderia “trocar o dinheiro por todos os seus desejos”, isto é, “por bois, ovelhas e vinho” a serem consumidos na reunião do festival; pois “devia comer lá na presença do SENHOR”. O dinheiro era ouro e prata, que “era moldado em anéis, braceletes, lingotes e semelhantes, cujo valor era determinado pela pesagem. . .. Moedas. . . não foram usados em Israel até depois do exílio na Babilônia”.[4]

     Ainda assim, poderíamos questionar: qual era a razão para tal prática? Na verdade, os estudiosos debatem a natureza e o desenvolvimento histórico do “dízimo” no antigo Israel.   Em suma, o propósito propriamente da passagem em foco não é oferecer uma declaração abrangente e detalhada da lei do dízimo, mas antes assegurar que fosse reservado para o propósito que lhe fora designado pelo Senhor. Pelo contexto histórico se percebe que havia o perigo de que as divindades canaanitas fossem honradas no tempo da colheita. Para evitar que isso acontecesse, faz-se aqui referência insistente ao fato de que toda e qualquer cerimônia religiosa associada à colheita e ao dízimo fosse realizada no santuário do Senhor, e não num santuário pagão.[5] Desta forma, Israel pode se regozijar com santa reverência na comunhão de seu Deus.[6] Estas ligações são extremamentes importantes para uma compreensão mais ampla deste tema. Talvez, tenhamos aqui uma excelente síntese sobre a questão do dízimo. Isto se deve diretamente não a prática, mas o que estava por trás dela. Tanto o temor ao Senhor como a rejeição as práticas idolátricas dos cananeus estão em foco.

 Existem duas questões que funcionam como ápices das cenas presentes em Dt.14:23,26. Pormenorizando o narrador fala de “aprender a temer YHVH” e “alegrar-se tu e tua casa”. Desta forma, inicialmente percebemos o composto envolvendo o imperativo e o aspecto litúrgico (lugar de reunião) apontavam para a necessidade de se reverenciar YHVH como soberano sobre tudo. Desta forma, a celebração festiva destacava a generosidade de Deus, ensinando às pessoas a reverência, mantendo-as conscientes de sua dependência d’Ele e impedindo-as de considerar sua prosperidade como algo advindo deles (TIGAY, J. H. Deuteronomy. The JPS Torah Commentary, p.142). Juntamente com isto, o “alegrar-se” individual e com a família também era uma realidade. Podemos traduzir ainda mais naturalmente como “banquete com alegria”, ou “coma e divirta-se” (BRATCHER & HATTON. A handbook on Deuteronomy, p.266).    

Existe outro ponto a ser observado que expõe os usos do dízimo. Neste caso, a contribuição trienal exposta com consolidações distintas, envolvendo as finalidades e os seus destinatários. Os beneficiados eram “o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva” (Dt.14:29). A forma funcionava, diferentemente da anterior (anual), porquanto, “tirarás todos os dízimos da tua colheita no mesmo ano, e os recolherás dentro das tuas portas” (Dt.14:28). Quanto ao levita, a refeição cerimonial era (uma refeição) alegre para toda a família, da qual deveriam participar o ofertante, sua casa e quaisquer levitas que vivessem em sua cidade (o singular levita é, na verdade, um coletivo). Uma comparação entre esta e outras passagens do Velho Testamento revela que o levita tinha pleno direito ao dízimo, embora a natureza exata deste direito fosse expressa de maneiras diferentes. Em Números 18:21-32 são ofertados aos levitas todos os dízimos em Israel por herança, pelo serviço que prestam. Parece que, conforme esta passagem (Números 18:20, 26-30), um décimo do dízimo se destinava aos sacerdotes, isto é, aos descendentes de Arão que oficiavam no santuário central. Não há referência em Números à participação dos levitas na refeição cerimonial. A lei deuteronômica é diferente ou é expressa diferentemente, pois não parece dar aos levitas o pleno direito aos dízimos, mas apenas a participação na refeição familiar, embora a cada ano sua porção fosse provavelmente maior. Outra passagem, Dt.18:1-8, apresenta toda a tribo de Levi, tanto os que oficiavam como sacerdotes como os que eram instrutores e expositores da Lei (classificados com os pobres), como quem recebia as primícias do cereal, do vinho e do azeite, bem como da primeira tosquia das ovelhas.[7] Para sermos mais detalhistas nesta questão, no terceiro e no sexto ano de cada ciclo de sete anos, o dízimo devia ser depositado “nas vossas cidades”, isto é, no local da assembleia local onde era usado para sustentar “o levita. . . o estrangeiro, o órfão e a viúva que está em suas cidades. ” Embora, essa oferta fosse frequentemente chamada de dízimo trienal dos pobres, deve-se notar que “claramente a intenção não é impor um dízimo extra no terceiro ano, mas sim colocá-lo naquele ano para um uso diferente”. A interpretação errônea desta lei dentro do Judaísmo do pós-exílio foi provavelmente o resultado de tentativas de harmonizar a lei aqui com a legislação sacerdotal em Nm.18:21-24, onde o propósito do dízimo é para o sustento dos sacerdotes levíticos.[8]

  Temos mais informações sobre isto em Dt.26:12-15, porquanto certas singularidades aparecem: “Quando acabares de separar todos os dízimos da tua colheita no ano terceiro, que é o ano dos dízimos, então os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas portas, e se fartem...” (Dt.26:12). Assim, uma vez que a distribuição não era feita perante o Senhor (26:12), isto é, como um ritual realizado no tabernáculo ou santuário central (cf. 12:7,12,18; 14:23,26; 15:20; 16:11,16), o israelita tinha que comparecer ao santuário central para declarar que cumprira todas as exigências legais. O tempo em que tal declaração era feita não é designado aqui ou em qualquer outro lugar do Velho Testamento, embora possa ter acontecido durante a festa dos tabernáculos. A conotação do presente contexto parece ser a de que o indivíduo tinha removido total e completamente o dízimo de sua casa e o tinha entregado a Deus para sustento dos necessitados. A confissão prossegue, nada transgredi dos teus mandamentos, nem deles me esqueci.[9] Estas informações delinearam a nobreza do dízimo num aspecto vertical (vontade de Deus) e automaticamente horizontal (benefício dos outros). Temos aqui uma verdade que transcende o tempo de Moisés, pois o benefício para com o semelhante é algo definido como imperativo (1Jo.3:16-18).

Depois desta sintética jornada exegética algumas impressões se tornaram reais. Elas são importantes, pois elucidam de forma introdutória o mandamento em seu registro textual. Inicialmente, a Torah trabalha o  dizimar como imperativo. Isto é exposto com premissas consolidadas e padronizadas. Assim, a ordem tem seu conteúdo expresso. Se faz necessário também recapitular a ideia da refeição comunitária que funcionava num viés litúrgico (centro religiosos). A natureza comunitária da ocasião da oferta é clara a partir da declaração final de que aqueles que prestam tributo ao Senhor devem fazê-lo, pelo menos em parte, como uma festa “na presença do Senhor teu Deus” (v. 26). Essa frase sugere fortemente que o Senhor é mais do que um observador interessado no que está acontecendo. Ele é, de fato, um participante, pois tal era a natureza dos banquetes que acompanhavam a realização e ratificação das relações de aliança, na qual falou de uma nova aliança (Lucas 22:20; cf. 1Co. 11:25), que em tempos escatológicos seria celebrada novamente na “ceia das bodas do Cordeiro” (Ap 19:6–10). Claramente, Deus e a humanidade, em aliança um com o outro, celebram essa unidade, pelo menos misticamente, ao partir o pão juntos. Tudo isso estava relacionado ao necessário aprendizado que envolvia a soberania de Deus. Portanto, teremos dificuldades se desmembrarmos o imperativo de seus condicionantes. Com esta perspectiva teremos dificuldades de falar em dízimo pela Torah, pelo menos no formato que vemos em contexto.

De outro lado, o dizimo trienal tinha usos disntintos como visto. Por esta razão, o imperativo aqui funciona numa cronologia diferente. Comumente, se pensa nesta passagem como contextulizadora, de modo que, o levita (ou sacerdote) funciona como apontamento para o pastor em nosso tempo. Tal conexão parece não ter plausibilidade nenhuma. Ela só funciona numa correspondência imaginária. Desta forma, a contextualização fica prejudicada quando reduzida somente a idealizações pré-concebidas. Na verdade, em primeiro lugar, podemos falar numa relação de continuísmo entre Dt.14:28,29 e 2Co.8-9, quanto a aplicabilidade histórica do elemento prescritivo supracultural, embora sem uma redução de valoração. Em segundo lugar, a descrição do “dízimo trienal” com considerandos exegéticos introdutórios, descrevendo a real e necessária postura para com os necessitados. Em terceiro lugar, numa leitura retrospectiva (do NT para o AT) percebemos o uso de Dt.14:28,29 como possibilidade intertextual. Portanto, não existe uma antítese ou substituição entre a oferta de 2Co,8-9 e Dt.14:28,29.         

 


[1] BRATCHER, R. G., & HATTON, H. A handbook on Deuteronomy. UBS handbook series . New York: United Bible Societies, 2000, p.263.

[2] KEIL, C. F., & DELITZSCH, F. Commentary on the Old Testament. (1:906). Peabody, MA: Hendrickson,2002, p.1:917.

[3] CRAIGIE. Comentário de Deuteronômio. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p.247.

[4] CHRISTENSEN, D. L. (2002). Vol. 6A: Word Biblical Commentary: Deuteronomy 1-21:9, p.304.

[5] THOMPSON J. Deuteronômio, Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p.174,

[6] KEIL, C. F., & DELITZSCH, F. Commentary on the Old Testament. (1:906). Peabody, MA: Hendrickson,2002, p.1:917.

[7] THOMPSON J. Deuteronômio, Introdução e Comentário, p.175.

[8] CHRISTENSEN, D. L. (2002). Vol. 6A: Word Biblical Commentary: Deuteronomy 1-21:9, p.304.

[9] THOMPSON J. Deuteronômio, Introdução e Comentário, p.175.


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