Aproximações Exegéticas entre “o Serviço
dos santos” (oferta) de 2Co.8-9 e a prática do Dízimo de Dt.14:28-29 (dízimo).
Neste
ensaio elementos parentéticos serão trabalhados, para pensarmos nas
aproximações exegéticas presentes em Dt.14:28,29 e 2Co.8-9. Desta forma, as
reduções em foco trarão uma discussão introdutória sobre: [1] a relação do AT
com o NT, [2] o aspecto normativo das passagens em voga e [3] o alvo comum do
aspecto prescritivo. A defesa deste ensaio expõe a consonância existente entre
dízimo e oferta quanto as suas construções, de maneira que, não há razão
para a descontinuidade, mas certa continuidade, no que diz respeito ao aspecto
paradigmático da Lei e intertextualidade.
No
viés da genealogia da interpretação, encontramos algumas linhas exegéticas, quanto
a relação do AT com o NT, oriundas de pensadores em tempos distintos. Assim,
não há dúvida da consolidação do debate em torno deste tema teológico. A
questão passa pela seguinte problemática: “em que medida há continuidade ou
descontinuidade entre o sentido original das passagens do AT e o uso que o NT
faz delas?” (BEALE. Manual do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento,
2013, p.21). Esta resposta passa, primariamente, pela compreensão de Calvino,
quando afirma “a igualdade entre os testamentos, tendo administrações
diferentes” (CALVINO. A Instituição da Religião Cristã, 2007, pp.406-440).
Quanto as distinções em foco oriundas dos títulos AT e NT podem ser vistas,
segundo Dyck: “temporalmente (um é cronologicamente anterior ao outro),
qualitativamente (sendo que um é sombra do outro) e teologicamente
(relacionamento obsoleto, novo relacionamento baseado na redenção de Cristo)”.
Esta crença na unidade da Bíblia tinha implicações hermenêuticas diferentes
(DYCK. Hermenêutica, 2012, pp.38,39). Neste viés, trabalharemos com
percepção de Peter Vogt, a partir de sua “Abordagem paradigmática da Lei” (cf.
VOGT. Interpretação do Pentateuco, 2015, pp.25-47) e com “Abordagem
Canônica” que vê o texto em seu próprio mundo histórico e em sua forma final do
cânon (DYCK. Hermenêutica, 2012, p.41). Desta forma, podemos pensar numa
harmonização feita com considerandos teológicos distintos, rejeitando o fantasma
de Marcião de Sínope que tem assolado certos teólogos.
I.
Dt.14:28,29. “As estipulações da aliança” aparecem numa
extensão de Deuteronômio (12:1-26:15) que traz dentre estas, “o tributo ao
soberano” (MERRIL. Deuteronomy, NAC, 2001, p.239). Assim, as
normatizações em voga expõem o comando divino (14:22) quanto: ao lugar em que
comeriam e o objetivo dos dízimos (14:23), a dificuldade da distância com
sua resolução (14:24-26) e o amparo dirigido ao levita, estrangeiro, órfão e viúva
(14:27-29). Assim, dois elementos formavam a constituição do tributo em seu
viés litúrgico e social. Nosso interesse é pelo último: “o dízimo trienal” e
seu objetivo (14:28,29). Na verdade, a amplitude contextual (14:22-15:18)
descreve o que Christensen define como: “as preocupações humanitárias de
Deuteronômio que inclui três disposições para aliviar o sofrimento dos pobres
no antigo Israel” (CHRISTENSEN. Word Biblical Commentary: Deuteronomy 1-21:9,
2002, p.300). Os desdobramentos exegéticos que servem de substrato precisam ser
estabelecidos pela explicações que envolvem os conceitos de 14:28,29.
Em 14:28 encontramos, inicialmente, um aspecto
normativo prescrito da seguinte forma: “ao fim (מִקְצֵ֣ה lê-se: miqetseh) de três anos (שָׁלֹ֣שׁ שָׁנִ֗ים lê-se: shålosh
shånym) trarás/tirarás todos os dízimos (תּוֹצִיא֙ אֶת־כָּל־מַעְשַׂר֙ lê-se: totsy et kal maësar) da tua produção (תְּבוּאָ֣תְךָ֔ lê-se: tëvuåtëkha)
naquele ano (בַּשָּׁנָ֖ה lê-se: bashånåh)
e recolherás nas tuas portas (וְהִנַּחְתָּ֖ בִּשְׁעָרֶֽיךָ lê-se: vëhinachëtå
bishëåreykha)”. Assim, este dízimo trienal, fruto da produção anual, não deveria ser levado ao santuário, mas para
as portas da cidade, sendo que depois disto, segundo Dt.26:12-15, os que
contribuíam, precisariam confessar ao Senhor o que haviam feito e
orar por Suas bênçãos (KEIL; DELITZSCH. Commentary on the Old Testament,
2002, S.1:918). Os beneficiados com este tributo dado a YHVH eram: “o levita
(que não tem parte ou herança,14:27; 12.12), o estrangeiro (esses são os que
viveram permanentemente em Israel; cf. 1:16; 5:14; 10:18,19), o órfão e a
viúva” (cf.10:18). Em suma, todos aqueles que estavam desprovidos de condições (pobres
e necessitados) para sobreviverem. Esta percepção não foi exposta num vácuo
histórico, mesmo que com certa singularidade presenta na Lei, pois, como afirma
Matthews: “a preocupação com os necessitados era evidente nas coleções
jurídicas da Mesopotâmia em meados do terceiro milênio, mas isso geralmente
tratava da proteção dos direitos e da garantia da justiça nos tribunais, em vez
da provisão financeira” (MATTHEWS; CHAVALAS; WALTON. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament, 2000, S. Dt 14:29).
II.2Co.8-9. Depois desta introdutória análise de Dt.14:28,29,
observaremos 2Co.8-9, focando o que Paulo chama: τῆς διακονίας
τῆς εἰς τοὺς ἁγίους (“...da assistência/serviço aos/para com os santos”,
2Co.8:4; 9:1) - ἡ διακονία τῆς λειτουργίας ταύτης (“a administração deste serviço”, 2Co 9:12,13). Esta διακονία (lê-se: diakonía) era vista pelos judeus como
apontamento para a distribuição de esmolas aos pobres (MATTHEWS;
CHAVALAS; WALTON. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament, 2000,
S. Dt 14:29). A questão em foco envolvia
a coleta para os cristãos necessitados da Judeia (Rm.15:25,26; 1Co.16:1-3). Neste
viés de aproximação exegética, dois elementos são fundantes no processo de
análise proposto neste ensaio: 1) o alvo da ação benéfica que são os
pobres (mesmo que em Dt estes sejam identificados de formas diferentes) e 2)
a aparente antítese entre a conotação prescritiva de Dt.14:28,29 com a clara
voluntariedade de 2Co.8:2,3,8. A primeira é clara pelo substrato histórico
visto em suas delimitações (Rm.15:25,26; 1Co.16:1-3), mas, a segunda funcionará
com algumas reduções que envolvem o contexto imperatival dos capítulos de 2Co.
Por
essa via imperatival, observamos ἐπιτελέσατε (lê-se: epitelésate) o único
imperativo de 2Co.8 ligado ao infinitivo τὸ ποιῆσαι (lê-se:
tò poiêsai). A ideia paulina, por esta construção (8:11), atingia
o coração da preocupação do apóstolo que a igreja da Macedônia terminasse o que
havia começado. Adiar algo não resulta apenas numa diminuição da motivação para
concluir a tarefa, mas o atraso põe em dúvida sua disposição inicial (GARLAND.
2 Corinthians, NAC, 2001, p.380).
A intensificação disto se dá pelo uso do advérbio νυνί (lê-se: nyní), usado de
forma enfática aqui. Assim, voluntariedade e imperativo estão ligados, talvez,
numa dinâmica paradoxal ou de comprovação. Este elemento descreve a relação
parentética com Dt.14:28, pois, “o serviço dos santos”, de certa forma, tem
conotação prescritiva. Além disso, o significado “do serviço/da assistência”
visto verticalmente, expõe ações de graças dirigidas a Deus (9:12). Isso
complementado pela “obediência da vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo”
(ἐπὶ τῇ ὑποταγῇ τῆς ὁμολογίας ὑμῶν εἰς τὸ εὐαγγέλιον τοῦ
Χριστοῦ, 9:13), a qual, tem como meio “a prova do
serviço” que levou os beneficiados a “glorificarem a Deus”. Em suma, entendemos
esta “confissão” (ὁμολογία, lê-se:
homologuía) como uma reivindicação, expressão de compromisso,
apontando para o afirmado: “o evangelho de Cristo” (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on
the Greek Text, 2005, p. 653).
A
expressão τῇ ὑποταγῇ τῆς ὁμολογίας ὑμῶν
pode
ser traduzida, a partir de usos diferentes do genitivo: “obediência à sua
confissão” (genitivo subjetivo), “obediência criada pela sua
confissão” (genitivo objetivo), “obediência à sua confissão” (genitivo
aposicional). Segundo Garland a primeira opção parece melhor, pois esta “confissão”
deve ser mais do que clichês piedosos, na verdade, deve levar a ações, e não
somente palavras. A confissão “Jesus Cristo é o Senhor” acende sua generosidade
pelos santos de Jerusalém. Os destinatários cristãos judeus devem interpretar
essa expressão de amor autêntico dos gentios como um sinal da graça milagrosa
de Deus sobre todos. O único evangelho de Cristo traz reconciliação àqueles que
antes eram estrangeiros e antagonistas amargos (GARLAND. 2 Corinthians, NAC,
2001, p.414).
Depois deste sintético caminho investigativo, temos alguns pontos conclusivos em foco. Em primeiro lugar, a relação de continuísmo entre Dt.14:28,29 e 2Co.8-9, quanto a aplicabilidade histórica do elemento prescritivo supracultural, embora sem uma redução de valoração. Em segundo lugar, a descrição do “dízimo trienal” com considerandos exegéticos introdutórios, descrevendo a real e necessária postura para com os necessitados. Em terceiro lugar, numa leitura retrospectiva (do NT para o AT) percebemos o uso de Dt.14:28,29 como possibilidade intertextual. Portanto, não existe uma antítese ou substituição entre a oferta de 2Co,8-9 e Dt.14:28,29.