sábado, 23 de fevereiro de 2019



“...soprou (não diz “sobre eles”) e disse-lhes: começai a receber o Espírito Santo (ἐνεφύσησεν καὶ λέγει αὐτοῖς, λάβετε πνεῦμα ἅγιον, Jo.20:22): esta afirmação é de cunho missiológico, teológico ou simbólico?  
                     
                                             A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]

O evento de Jo.20:22 traz consigo alguns desafios exegéticos, certas problemáticas que trazem certos complexos questionamentos. Eles serão tratadas neste ensaio, introdutoriamente, a partir das contribuições de alguns estudiosos (Carson, Beasley-Murray, Köstenberger, Westcott e outros). Para trabalharmos esta tarefa, estruturalmente, pensaremos Jo.20:22 pela 1) análise do co-texto, 2) pelas percepções missiológica, teológica e simbólica e 3) em último trabalharemos a conclusão.   
λάβετε πνεῦμα ἅγιον: “... recebei o Espírito Santo”. (Jo.20:22). Esse texto em seu micronível (os cinco níveis de George Guthrie) deve ser visto pela delimitação do macronível. Isso significa que se faz necessário, identificar os limites da unidade dentro do discurso de algumas formas. Assim, a delimitação de Jo.20:22 pode ser definida na seguinte extensão: 20:19-23. A conjunção transicional οὖν (lê-se: ûn, “portanto” - aqui oferece “uma dedução, conclusão ou um sumário a discussão precedente”. WALLACE. Gramática grega, p.673) nos ajuda inicialmente neste recorte. Além disso, no co-texto posterior a individualização de um personagem (Tomé) traz o fundamento da transição (20:24,25). Em suma constatamos por 20:19-22 que Jesus aparece aos seus discípulos no pós-ressureição algo paralelo a Lc.24:36-42 (Beasley-Murray, George R. WBC: John, 2002, p. 378). Entretanto, a falta de exatidão do número destes discípulos parece ser uma realidade aqui, pois como vimos, Tomé aparece somente depois (20:24) e Judas havia saído. Por esses considerandos pensamos que eram dez (CARSON. O Comentário de João, 2007 p.647).
Nesse momento, o Senhor os saúda (20:19) num viés que envolve um comissionamento (εἰρήνη ὑμῖν), pois, “Jesus os transmite a paz, a qual precisam para cumprir sua missão” (KÖSTENBERGER. John, Baker Exegetical Commentary on the New Testament, 2004, p. 573). Essa constatação está também fundamentada em sua repetição (εἰρήνη ὑμῖν) presente em 20:21. O pós-saudação deste verso destaca: καθὼς ἀπέσταλκέν με ὁ πατήρ, κἀγὼ πέμπω ὑμᾶς (“...da mesma forma em que o Pai me enviou eu também envio a vós”). Ao fundamentarmos está missão, dada pelo Senhor, ligada ao Espírito Santo num viés missiológico, percebemos a funcionalidade de 20:23: ἄν τινων ἀφῆτε τὰς ἁμαρτίας ἀφέωνται αὐτοῖς, ἄν τινων κρατῆτε κεκράτηνται (“aqueles a quem perdoardes os pecados, lhes são perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são retidos”). Portanto, “nesse versículo, em que o co-texto é a missão dos discípulos de Jesus (v.21) e que o Espírito é quem os capacita (v. 22), o locus é sobre evangelismo” (CARSON. João, p.656).
Depois de pensarmos estas questões de forma sintética, o ponto agora é o papel do imperativo pneumatológico: λάβετε πνεῦμα ἅγιον: “... recebei o Espírito Santo” (Jo.20:22). Inicialmente, não podemos deixar de observar o continuísmo do v.21 com o v.22 pelo καὶ τοῦτο (“e com isso” ou “após dizer isto”), pois como explica Carson: “a comissão fica assim associada à concessão do Espírito” (CARSON. O Comentário de João, 2007, p.650). Westcott entende πνεῦμα ἅγιον por causa da ausência do artigo, “como um dom do Espírito Santo (cf.7:39), a fim de prepará-los para o evento de Pentecostes. Desta forma distinguiu entre a ação do Espírito quanto ao novo nascimento e a capacitação dos crentes para o ministério” (WESTCOTT. The Gospel According to St. John Introduction and Notes on the Authorized Version, 1908, p.295). Esta tese é contestada, pois “despersonaliza o Espírito e O transforma num dom”. Em João 7:39 o Espírito também é mencionado sem o artigo. De fato, ‘o Espírito Santo’ aparece mais de cinquenta vezes no Novo Testamento sem o artigo, três deles no Evangelho de João como em: 1:33; 14:26; 20:22” (BORCHERT. John 12-21, The New American Commentary, 2003, p. 307).
Esta problemática, na atualidade, foi vista por Beasley-Murray num viés teológico, e não cronológico. Assim, João não especifica os eventos da Páscoa de acordo com a cronologia. Ele poderia perfeitamente ter conhecimento da tradição do pentecoste e escrever exatamente como fez. Mas não há dúvida de que o envio do Espírito acontece na Páscoa e no Pentecostes. É um ou outro, em vista da natureza da apresentação de cada evangelista do evento. Portanto, João sabe sobre Pentecoste, mas prefere escrever dessa forma, em íntima conexão temporal com a Páscoa, por causa de sua peculiar visão teológica que liga fortemente a descida do Espírito à morte/exaltação de Jesus (Beasley-Murray, George R. Word Biblical Commentary: John, 2002, p.382).
Além destas percepções, temos a fundamentação que pensa Jo.20:22 como “promessa simbólica do dom do Espírito que seria dado mais tarde (isto é, no dia de Pentecoste)”, algo defendido por Teodoro de Mopsuéstia (350-428). Essa tese foi condenada no quinto concílio ecumênico em Constantinopla no ano de 553 d.C., e não recebe muita atenção hoje, muito pode ser dito em seu favor. Carson entende que esta proposta é mais viável, para entendermos Jo.20:22, isso por algumas razões: 1) a tradução de: ἐνεφύσησεν καὶ λέγει αὐτοῖς· λάβετε πνεῦμα ἅγιον, pois apesar do que aparece na maioria das versões, o texto não diz ‘ele soprou sobre eles, mas simplesmente ‘ele soprou’. O sentido desse pano de fundo bastante técnico é que o verbo ἐμφυσάω (Lê-se: emfysáo) é absoluto em João 20.22 - isto é, não tem estrutura auxiliar, nem mesmo um objeto direto. Fora outras considerações de peso, portanto, o versículo deveria ser traduzido como “E com isso, soprou, e disse: ‘Recebam o Espírito Santo”’. 2) Alguns eventos descritos em João não são realizados naquele momento (12.23,31; 13.31; 17.1,5), da mesma forma, o imperativo (λάβετε πνεῦμα ἅγιον) de 20:22 também não. 3) A postura dos discípulos com medo dos judeus mostra a falta de ousadia presente neles no pós At.2. Desta forma, o episódio em 20.22, que a maioria concordará que, em certo sentido simbólico, é mais bem entendido como simbólico da capacitação que ainda está por vir. 4) A ‘exalação’ e a ordem de Jesus: “Recebam o Espírito Santo”, são mais bem entendidas como um tipo de parábola encenada que aponta para o futuro, para a plena provisão ainda por vir (embora já passado para os leitores de João). O apóstolo tem repetidamente desenvolvido esses passos antecipadores em sua narrativa; não é de surpreender se ele usa um desses passos para mostrar que a história não termina com esse livro (CARSON. O Comentário de João, 2007, pp.651-657).
       Com estas delimitações definidas, podemos pensar na questão pelo viés da unidade/diversidade. Realmente a tradução de 20:22 não é bem definida, pois o texto grego afirma somente: “...soprou (“não soprou sobre eles”) e disse-lhes...” (ἐνεφύσησεν καὶ λέγει αὐτοῖς). Usado apenas aqui no NT (hapax), ἐμφυσάω pode ser visto como ato foi simbólico, à maneira dos profetas hebreus (VINCENT. Word Studies in the New Testament, 2002, S. 2:29). Era algo simbólico, aparecendo na LXX, quando Deus soprou o sopro da vida em Gn.2:7 sobre Adão (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Jo 20:22). Isto é consumado com o restante do verso (λάβετε πνεῦμα ἅγιον), chancelando a consumação da primeira oração. Robertson pensa o aoristo imperativo como ingressivo (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Jo 20:22), desta forma a tradução é vista assim: “começai a receber o Espírito Santo.” Esta percepção corrobora com o natureza simbólica desta máxima. O contexto de 20:22 nos ajuda, a partir de seu viés missiológico (20:23). O relato de João descreve um estágio preliminar de preparação para o ministério. “A missão é inaugurada, mas na verdade não começou ... O início real desta missão está fora do escopo do Quarto Evangelho. Resta, portanto, espaço para o derramamento no dia de Pentecoste, após o qual os discípulos assumem a missão em público no poder do Espírito que desce do Pai e do Filho no céu. Tal preparação é claramente o ponto em Jesus levando os discípulos à fé em si mesmo e no comissionamento. Outro fundamentado desta tese está na ausência de Tomé, o qual confessou Jesus como Senhor e Deus (20:28). Whitacre entende que isto ocorreu pela ação do Espírito Santo (WHITACRE. John The IVP New Testament Commentary, 1999, p.482).
        Depois desta  sintética jornada, observamos as três fundamentações exegéticas de Jo.20:22. Além  disso, a dificuldade coma harmonização (com At.1:8; 2:1-4) mostrou ser a problemática em voga. Cronologicamente, pós Jo.20:22 se passaram provavelmente mais de 40 dias (At.1:3; 2:1-4). Assim, somos  levados a ler  esta passagem num viés futurista, por isso, as interpretações simbólica e teológica parecem fazer mais sentido. O problema da  primeira é sua reprovação no quinto concílio ecumênico em Constantinopla no ano de 553 d.C.    



[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

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