CALVINO
E A POLÍTICA:
Apontamentos introdutórios sobre a visão política de João Calvino
João Calvino (1509-1564) nos deixou um
legado, por meio de seus excelentes escritos, os quais são direcionadores de
forma holística. Por isso, as contribuições culturais construtivas que advém do
gênio do calvinismo tem em mira não só a reforma na doutrina, na vida
individual e na vida da igreja, mas também a transformação de toda a cultura,
em nome de Cristo (KNUDSEN. Calvino e Sua
Influência no Mundo Ocidental, p.12). Por esta razão, os dualismos,
reducionismos e absolutizações serão vistas como incompletas dentro da proposta
reformada. A antítese anabatista de “evitar o mundo” (que não está ligado ao
pecado, mas a criação) está na contramão do todo que envolve o calvinismo, pois
defendia a soberania cosmológica do Senhor (KUYPER. O calvinismo, pp.39,47,86; BAVINCK. Dogmática Reformada, Vol.3, p.15). Em
suma essa leitura está centrada na Escritura, por isso, “apenas a Palavra de
Deus em seu sentido central, a qual desvela a fonte de todas as absolutizações
e que sozinha pode conduzir o homem ao verdadeiro conhecimento de si mesmo e de
sua origem absoluta” (DOOYEWEERD. No
Crepúsculo do Pensamento, p.113). Com isso, não negamos que o reformador
estava com os olhos voltados para o seu tempo (contexto político cf. John Calvin: One of the Fathers of Modern
Democracy - Christian
History[1]), de maneira que tratou de muitas problemáticas, as quais
lhe eram reais e comuns. Entretanto, em sua devoção as Escrituras trouxe
paradigmas exegéticos aplicáveis numa devida contextualização. Por esta razão,
em 2008 a editora Unesp lançou “A instituição da religião cristã”, definida
como: “Um dos tratados
teológicos mais influentes da história do Cristianismo
[...] é a obra máxima de Calvino, autor universalmente reconhecido e estudado –
inclusive por Weber e Marx – como um dos pilares da Reforma Protestante.[2]
Nesse ensaio nos voltaremos para pensarmos
a visão política de Calvino, olhando para algumas de suas obras, mas
principalmente “As Institutas”. O reformador trata essa questão numa
progressividade argumentativa que envolve dois elementos: [A] “o duplo governo e [B]
o governo civil com sua tríplice ordem de elementos: “o magistrado, as leis e o
povo”.
Inicialmente observemos o que Calvino
chamou de “duplo governo no homem”.
O reformador com esse conceito particionava, primeiro, “o homem interior (na
alma) que visa a vida eterna”, já o segundo “diz respeito apenas ao
estabelecimento da justiça civil e exterior dos costumes”. O objetivo desta
tese é o estabelecimento da distinção desses campos (estado e religião) e a
conscientização da sujeição política dos cristãos, a qual não está em antítese
ao reino de Deus (CALVINO. As Institutas,
Vol.4, pp.451.452). Depois desse passo inicial podemos caminhar, para tratar “o
governo civil e sua tríplice ordem de elementos” (o magistrado, as leis e o povo). Cada um desses elementos são
expostos com suas singularidades distintas.
O reformador nos ensina que o magistrado civil
em primeiro lugar, é de “vocação
divina”.[3]
A fundamentação dessa tese passa pelos títulos dados pela Escrituras aos
magistrados: “deuses” (θεοὺς - Jo.10:35
– אֱלֹהִ֣ים Sl.82:6), pois possuem o mandato de Deus; e “governos” (κυβέρνησις - 1Co.12:28) que em analogia ao senado de homens sérios (governo da
igreja) também devem exercer a justiça[4]
(CALVINO. As Institutas, Vol.4,
p.455)
Com esta perspectiva se torna claro que a
resistência ao magistrado é algo indevido, pois Cristo não está contra o
governo civil, por isso, devemos orar por eles (1Tm.2:2). Em segundo lugar,
observemos que essa honra dirigida aos “vigários
de Deus” (estímulos), envolvem também responsabilidades. Desta forma, a
contraposição entre uma “condução fraudulenta e a vocação justa” deve ser
pensada, pois terão que prestar contas a Deus.[5] Nessa
dinâmica o reformador de Genebra trata “a
melhor política” ou “formas de
governo” (Monarquia, Aristocracia e
Ascendência Popular), no que diz respeito, ao exercício dos magistrados. Em
sua concepção a mais coerente é a “Aristocracia (ἀριστοκρατία)
quer pura ou modificada pelo governo
popular”, pois melhor que “sejam muitos os censores e mestres, para coibir-se
seu desregramento” e o próprio “Deus instituiu esta Aristocracia entre os
israelitas, querendo manter-lhes em melhor condição” (Êx.18:13-26; Dt.1:9-17). A
conclusão dessa tese: “portanto, se bem lhe pareceu constituir reis sobre os
reinos, senados ou decuriões sobre cidades livres, nosso dever é submeter-nos e
obedecer aos superiores que dominam no lugar em que vivemos”. Para Calvino
assumir outra forma de governo é agir perniciosamente (CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.458).
A
questão das “duas tábuas” destaca os deveres dos magistrados, sendo
descritos pala Palavra de Deus. Nesse caso, qualquer organização governamental
que negligenciar o direito de Deus, por buscar somente o bem dos homens não pode
ser constituída ditosamente (1ª tábua). Essa é a razão pela qual os
santos reis restauraram o culto a Deus corrompido ou subvertido (o que não
ocorria nos juízes 21:25). A constituição dos governantes não envolve somente
as controvérsias terrenas, mas a de maior importância: o culto a Deus, exercido
de forma pura. O caminho progressivo da segunda tábua é o estabelecimento da “justiça”
e o “juízo”[6]
(CALVINO. As Institutas, Vol.4,
pp.459,460). Esse segundo elemento citado, nos leva para “o uso da espada pelos magistrados” que é
problematizada pelo sexto mandamento (Êx.20:13). A proibição quanto ao matar
presente na Lei é real, entretanto, ao armar o magistrado o Senhor confiou-lhe
também o uso da espada,[7] então, ao punir o culpado com a morte,
ele não faz outra coisa senão obedecer a Deus no exercício de Sua vingança.
Aqueles, pois, que consideram ser errôneo derramar o sangue do culpado, outra
coisa não fazem senão contender com Deus (CALVINO. Romanos, p.464). Em conexão com isso, o reformador afirma a legitimidade
da guerra para pôr em execução a vingança da espada.[8]
Mesmo que alguns façam objeção a isso quanto ao NT, entretanto, a luz de
Lc.3:14 a proibição quanto ao uso das armas pelos soldados não foi declarada.
Depois dessas considerações, Calvino trata os tributos, os quais são devidos
como sustentação e manutenção do estado. Por isso, com equilíbrio o governante
é sustentado com dinheiro público (CALVINO. As
Institutas, Vol.4, pp.461-465).
O reformador trata também as leis
(segundo elemento do governo civil), as quais são definidas como “as almas das
coisas públicas” (Cícero) e indispensáveis para a existência do
governo civil. Além disso, essas leis podem servir-se, santamente,
diante de Deus e por sua vez conduzir justamente os homens. Assim, a discussão
se volta para a tríade de leis: Moral, Cerimonial e Judicial, quanto a sua
natureza e distinção. Os aspectos vertical (Deus) e horizontal (homens) foram
expostos na lei moral. Já a cerimonial funcionou numa dinâmica de metodologia
educacional para os judeus em sua infância até a plenitude (Gl.4:4). Finalmente,
a judicial transmite a ordem governamental que transmitia fórmulas seguras de
equidade e justiça. Em síntese entendemos que a todas as leis convém duas
coisas: “a ordenança e a equidade” (a segunda se apoia na primeira). Nesse
momento Calvino destaca que “a lei natural esculpida na mente dos homens” está
ligada em sua identificação a lei moral. Nesse sentido todas as leis tem o
mesmo objetivo que é a equidade. O uso destas leis pelo cristão aparece como
última questão. Alguns negavam isso, entretanto, somos lembrados pelo
reformador que os magistrados “são ministros de Deus para nosso bem”,[9] ou
sejam foram divinamente ordenados, para que por suas mãos e meios de proteção,
sejamos defendidos contra a improbidade e violações dos direitos advindas dos
homens facciosos e assim, levemos a vida quietamente e seguramente (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.465,466).
O terceiro elemento em foco é o povo
(“toda alma”) que tem o dever de obedecer os magistrados. Isso
envolvendo tanto o cumprimento das leis instituídas e o pagamento dos impostos.
O aprofundamento desta postura se dá por não ser fingida, mas de boa vontade,
por essa razão a igreja é exortada a orar pelas autoridades (1Tm.2:1,2).[10] Além
disso, “resistir ao magistrado é resistir ao próprio Deus”.[11] Esses
apontamentos nos levam a pensar naqueles governantes que têm posturas
antitéticas a sua verdadeira vocação. Calvino entende que são instrumentos
de Deus para punir a impiedade do povo. Por esta razão, a submissão a estes
indignos de seu oficio, deve ser uma realidade, pois não devemos ignorar que
Deus é soberano nesta e em todas outras questões (Jó.34:30; Os.13:11; Is.3:4;
10:5; Dn.2:21; 4:17; Ez.29:19,20). Mesmo com essa consciência de sujeição,
ainda assim, se faz necessário observar a exceção, ou seja, a desobediência a
Deus. Para ser claro, entendamos que a obediência as autoridades não pode nos
apartar dos imperativos divinos. O Senhor, pois é o Rei dos Reis que, quando
abre sua sacra boca, a um tempo, antes de todos e acima de todos deve ser
ouvido (CALVINO. As Institutas,
Vol.4, pp.468-471).
Depois de observar sinteticamente as
ideias de Calvino, nos voltemos para nosso momento histórico, pensando nossos
posicionamentos como cristãos, no que diz respeito a política. Devemos ser de esquerda ou direita? De que forma devemos nos relacionar com
nossos governantes? A política morreu em absoluto? Em primeiro lugar,
devemos observar que as teses de Calvino não apontam para uma teocracia
(“o Brasil é do Senhor”). Entretanto, com o Exegeta da Reforma aprendemos que
estamos debaixo do “duplo governo”
e isso funciona numa conotação supracultural, de maneira que as discordâncias
devem respeitar os padrões legais. Além disso, os magistrados são definidos com
postulados interpretativos inegociáveis, o que nos ajuda na definição de nossos
líderes políticos. Tanto a vocação como o exercício são delimitados. As leis
estabelecidas por eles fundamentam-se na equidade encontrada “na lei natural
esculpida na mente dos homens”. Isso não significa que em alguns momentos o
trato dos governantes será antagônico a justiça, mas, isto de alguma forma está
em consonância com a providência de Deus. Em último lugar, a postura do povo
deve ser de submissão as autoridades e suas leis. Por esta razão, a
infidelidade aos decretos dos governantes resulta em infidelidade para com
Deus. A exceção nesse caso, é a negação a suprema lei de Deus.
Portanto, a negação ao estado, suas
autoridades e a fidelidade constitucional é algo totalmente estranho ao
calvinismo. Nosso foco não são sistemas políticos (mesmo que Calvino defenda a
Aristocracia), mas os princípios que emanam da Palavra. Isso é importante para
evitarmos reducionismos, absolutizações ou canonizações indevidas. Como nos
ensina o Reformador: “... toda a verdade procede de Deus, se algum ímpio disser
algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus”
(CALVINO. Pastorais, p.318). Assim, nossa visão política deve ser dirigida pela
verdade.
[1]
Disponível em: http://www.christianitytoday.com/history/issues/issue-12/john-calvin-one-of-fathers-of-modern-democracy.html.
Acesso em 13:04 as 08:08.
[2]
Disponível em: http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788571398047,a-instituicao-da-religiao-crista-tomo-1.
Acesso em: 12/04 as 07:56.
[3]
Westminster trata isso apontando para o cristão político: Cap.XXIII.II. “Aos
cristãos é licito aceitar e exercer o ofício de magistrado, sendo para ele
chamado; e em sua administração, como devem especialmente manter a
piedade, a justiça, e a paz segundo as leis salutares de cada Estado, eles, sob
a dispensação do Novo Testamento e para conseguir esse fim, podem licitamente
fazer guerra, havendo ocasiões justas e necessárias”. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm.
Acesso em 13:04 às 08:21.
[4] Ou
“governo justo”.
[5]
“E entre eles, merecidamente, deve valer muito esta exortação, pois se cometem
alguma falta, não só estão lesando aos homens, a quem perversamente molestam,
mas também estão sendo injustos para com o próprio Deus, cujos sacrossantos
juízos poluem” (Is.3:14,15 - CALVINO. As
Institutas, Vol.4, p.456).
[6]
“Justiça é na verdade, assegurar proteção, abraçar, defender, vindicar, livrar
aos inocentes. Juízo, porém, significa resistir à audácia dos ímpios,
reprimir-lhes a violência, punir-lhes os delitos”. (CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.460).
[7]
A palavra μάχαιρα aparecem 29 vezes no NT. A passagem em foco
aqui é Rm.13:4. Kuyper afirma que a principal característica do governo é o
direito sobre a vida e a morte. Segundo o testemunho apostólico o magistrado
traz a espada e esta espada tem um triplo significado. É a espada da justiça
para distribuir a punição física ao criminoso. É a espada da guerra para
defender a honra os direitos e os interesses do Estado contra seus inimigos. E
é a espada da ordem para frustrar em seu próprio país toda rebelião violenta
[...] o direito de tirar a vida pertence somente àquele que pode dar a vida,
isto é, a Deus; e portanto ninguém sobre a terra está investido com esta
autoridade, a menos que seja dada por Deus. KUYPER. O
calvinismo, p.100.
[8]
Exegetas recentes que trabalham com a mesma tese quanto a μάχαιρα: DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary : Romans 9-16. Word Biblical Commentary 38B p. 764. MOUNCE,
Robert H.: Romans. The New American
Commentary, p. 244).
[9] θεοῦ
γὰρ διάκονός ἐστιν σοὶ εἰς τὸ ἀγαθόν. (Rm.13:4). Calvino comentando essa passagem: “Os
magistrados podem aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração
não deve ser feita em função de si próprios, mas visando o bem público. Nem tem
eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem estar de
seus súditos”. CALVINO. Romanos,
p.463.
[10]
Calvino comentando 1Tm.2:2 afirma: “ele faz expressa menção dos reis e de
outros magistrados, porque os cristãos têm muito mais razão de odiá-los do que
todos os demais. Todos os magistrados daquele tempo eram ajuramentados inimigos
de Cristo, de modo que se poderia concluir que eles não deviam orar em favor de
pessoas que viviam devotando toda a sua energia e riquezas em oposição ao reino
de Cristo, enquanto que, para os cristãos, a extensão desse reino, e de todas
as coisas, é a mais desejável. O apóstolo resolve essa dificuldade e
expressamente ordena que as orações sejam feitas em favor deles”. CALVINO. As Pastorais, p.53.
[11]
“Portanto, uma
vez que a autoridade civil é ordenada por Deus, falhar em render-lhe o
apropriado e, em vez disso, se colocar contra ela é ser culpado de rebelião
contra a ordenação de Deus”. CRANFIELD, C. E. B.: A Critical
and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, p. 663.