sexta-feira, 13 de abril de 2018



          CALVINO E A POLÍTICA: 
            Apontamentos introdutórios sobre a visão política de João Calvino



           João Calvino (1509-1564) nos deixou um legado, por meio de seus excelentes escritos, os quais são direcionadores de forma holística. Por isso, as contribuições culturais construtivas que advém do gênio do calvinismo tem em mira não só a reforma na doutrina, na vida individual e na vida da igreja, mas também a transformação de toda a cultura, em nome de Cristo (KNUDSEN. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, p.12). Por esta razão, os dualismos, reducionismos e absolutizações serão vistas como incompletas dentro da proposta reformada. A antítese anabatista de “evitar o mundo” (que não está ligado ao pecado, mas a criação) está na contramão do todo que envolve o calvinismo, pois defendia a soberania cosmológica do Senhor (KUYPER. O calvinismo, pp.39,47,86; BAVINCK. Dogmática Reformada, Vol.3, p.15). Em suma essa leitura está centrada na Escritura, por isso, “apenas a Palavra de Deus em seu sentido central, a qual desvela a fonte de todas as absolutizações e que sozinha pode conduzir o homem ao verdadeiro conhecimento de si mesmo e de sua origem absoluta” (DOOYEWEERD. No Crepúsculo do Pensamento, p.113). Com isso, não negamos que o reformador estava com os olhos voltados para o seu tempo (contexto político cf. John Calvin: One of the Fathers of Modern Democracy  - Christian History[1]), de maneira que tratou de muitas problemáticas, as quais lhe eram reais e comuns. Entretanto, em sua devoção as Escrituras trouxe paradigmas exegéticos aplicáveis numa devida contextualização. Por esta razão, em 2008 a editora Unesp lançou “A instituição da religião cristã”, definida como: “Um dos tratados teológicos mais influentes da história do Cristianismo [...] é a obra máxima de Calvino, autor universalmente reconhecido e estudado – inclusive por Weber e Marx – como um dos pilares da Reforma Protestante.[2]
      Nesse ensaio nos voltaremos para pensarmos a visão política de Calvino, olhando para algumas de suas obras, mas principalmente “As Institutas”. O reformador trata essa questão numa progressividade argumentativa que envolve dois elementos: [A] “o duplo governo e [B] o governo civil com sua tríplice ordem de elementos: “o magistrado, as leis e o povo”.  
    Inicialmente observemos o que Calvino chamou de “duplo governo no homem”. O reformador com esse conceito particionava, primeiro, “o homem interior (na alma) que visa a vida eterna”, já o segundo “diz respeito apenas ao estabelecimento da justiça civil e exterior dos costumes”. O objetivo desta tese é o estabelecimento da distinção desses campos (estado e religião) e a conscientização da sujeição política dos cristãos, a qual não está em antítese ao reino de Deus (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.451.452). Depois desse passo inicial podemos caminhar, para tratar “o governo civil e sua tríplice ordem de elementos” (o magistrado, as leis e o povo). Cada um desses elementos são expostos com suas singularidades distintas.
           O reformador nos ensina que o magistrado civil em primeiro lugar, é de vocação divina”.[3] A fundamentação dessa tese passa pelos títulos dados pela Escrituras aos magistrados: “deuses” (θεοὺς - Jo.10:35 אֱלֹהִ֣ים  Sl.82:6), pois possuem o mandato de Deus; e “governos” (κυβέρνησις - 1Co.12:28) que em analogia ao senado de homens sérios (governo da igreja) também devem exercer a justiça[4] (CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.455)
       Com esta perspectiva se torna claro que a resistência ao magistrado é algo indevido, pois Cristo não está contra o governo civil, por isso, devemos orar por eles (1Tm.2:2). Em segundo lugar, observemos que essa honra dirigida aos “vigários de Deus” (estímulos), envolvem também responsabilidades. Desta forma, a contraposição entre uma “condução fraudulenta e a vocação justa” deve ser pensada, pois terão que prestar contas a Deus.[5] Nessa dinâmica o reformador de Genebra trata “a melhor política” ou “formas de governo” (Monarquia, Aristocracia e Ascendência Popular), no que diz respeito, ao exercício dos magistrados. Em sua concepção a mais coerente é a “Aristocracia (ἀριστοκρατία) quer pura ou modificada pelo governo popular”, pois melhor que “sejam muitos os censores e mestres, para coibir-se seu desregramento” e o próprio “Deus instituiu esta Aristocracia entre os israelitas, querendo manter-lhes em melhor condição” (Êx.18:13-26; Dt.1:9-17). A conclusão dessa tese: “portanto, se bem lhe pareceu constituir reis sobre os reinos, senados ou decuriões sobre cidades livres, nosso dever é submeter-nos e obedecer aos superiores que dominam no lugar em que vivemos”. Para Calvino assumir outra forma de governo é agir perniciosamente (CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.458).
 A questão das “duas tábuas” destaca os deveres dos magistrados, sendo descritos pala Palavra de Deus. Nesse caso, qualquer organização governamental que negligenciar o direito de Deus, por buscar somente o bem dos homens não pode ser constituída ditosamente (1ª tábua). Essa é a razão pela qual os santos reis restauraram o culto a Deus corrompido ou subvertido (o que não ocorria nos juízes 21:25). A constituição dos governantes não envolve somente as controvérsias terrenas, mas a de maior importância: o culto a Deus, exercido de forma pura. O caminho progressivo da segunda tábua é o estabelecimento da “justiça” e o “juízo”[6] (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.459,460). Esse segundo elemento citado, nos leva para “o uso da espada pelos magistrados que é problematizada pelo sexto mandamento (Êx.20:13). A proibição quanto ao matar presente na Lei é real, entretanto, ao armar o magistrado o Senhor confiou-lhe também o uso da espada,[7] então, ao punir o culpado com a morte, ele não faz outra coisa senão obedecer a Deus no exercício de Sua vingança. Aqueles, pois, que consideram ser errôneo derramar o sangue do culpado, outra coisa não fazem senão contender com Deus (CALVINO. Romanos, p.464). Em conexão com isso, o reformador afirma a legitimidade da guerra para pôr em execução a vingança da espada.[8] Mesmo que alguns façam objeção a isso quanto ao NT, entretanto, a luz de Lc.3:14 a proibição quanto ao uso das armas pelos soldados não foi declarada. Depois dessas considerações, Calvino trata os tributos, os quais são devidos como sustentação e manutenção do estado. Por isso, com equilíbrio o governante é sustentado com dinheiro público (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.461-465).
           O reformador trata também as leis (segundo elemento do governo civil), as quais são definidas como “as almas das coisas públicas” (Cícero) e indispensáveis para a existência do governo civil. Além disso, essas leis podem servir-se, santamente, diante de Deus e por sua vez conduzir justamente os homens. Assim, a discussão se volta para a tríade de leis: Moral, Cerimonial e Judicial, quanto a sua natureza e distinção. Os aspectos vertical (Deus) e horizontal (homens) foram expostos na lei moral. Já a cerimonial funcionou numa dinâmica de metodologia educacional para os judeus em sua infância até a plenitude (Gl.4:4). Finalmente, a judicial transmite a ordem governamental que transmitia fórmulas seguras de equidade e justiça. Em síntese entendemos que a todas as leis convém duas coisas: “a ordenança e a equidade” (a segunda se apoia na primeira). Nesse momento Calvino destaca que “a lei natural esculpida na mente dos homens” está ligada em sua identificação a lei moral. Nesse sentido todas as leis tem o mesmo objetivo que é a equidade. O uso destas leis pelo cristão aparece como última questão. Alguns negavam isso, entretanto, somos lembrados pelo reformador que os magistrados “são ministros de Deus para nosso bem”,[9] ou sejam foram divinamente ordenados, para que por suas mãos e meios de proteção, sejamos defendidos contra a improbidade e violações dos direitos advindas dos homens facciosos e assim, levemos a vida quietamente e seguramente (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.465,466).   
           O terceiro elemento em foco é o povo (“toda alma”) que tem o dever de obedecer os magistrados. Isso envolvendo tanto o cumprimento das leis instituídas e o pagamento dos impostos. O aprofundamento desta postura se dá por não ser fingida, mas de boa vontade, por essa razão a igreja é exortada a orar pelas autoridades (1Tm.2:1,2).[10] Além disso, “resistir ao magistrado é resistir ao próprio Deus”.[11] Esses apontamentos nos levam a pensar naqueles governantes que têm posturas antitéticas a sua verdadeira vocação. Calvino entende que são instrumentos de Deus para punir a impiedade do povo. Por esta razão, a submissão a estes indignos de seu oficio, deve ser uma realidade, pois não devemos ignorar que Deus é soberano nesta e em todas outras questões (Jó.34:30; Os.13:11; Is.3:4; 10:5; Dn.2:21; 4:17; Ez.29:19,20). Mesmo com essa consciência de sujeição, ainda assim, se faz necessário observar a exceção, ou seja, a desobediência a Deus. Para ser claro, entendamos que a obediência as autoridades não pode nos apartar dos imperativos divinos. O Senhor, pois é o Rei dos Reis que, quando abre sua sacra boca, a um tempo, antes de todos e acima de todos deve ser ouvido (CALVINO. As Institutas, Vol.4, pp.468-471).
    Depois de observar sinteticamente as ideias de Calvino, nos voltemos para nosso momento histórico, pensando nossos posicionamentos como cristãos, no que diz respeito a política. Devemos ser de esquerda ou direita?  De que forma devemos nos relacionar com nossos governantes? A política morreu em absoluto? Em primeiro lugar, devemos observar que as teses de Calvino não apontam para uma teocracia (“o Brasil é do Senhor”). Entretanto, com o Exegeta da Reforma aprendemos que estamos debaixo do “duplo governo” e isso funciona numa conotação supracultural, de maneira que as discordâncias devem respeitar os padrões legais. Além disso, os magistrados são definidos com postulados interpretativos inegociáveis, o que nos ajuda na definição de nossos líderes políticos. Tanto a vocação como o exercício são delimitados. As leis estabelecidas por eles fundamentam-se na equidade encontrada “na lei natural esculpida na mente dos homens”. Isso não significa que em alguns momentos o trato dos governantes será antagônico a justiça, mas, isto de alguma forma está em consonância com a providência de Deus. Em último lugar, a postura do povo deve ser de submissão as autoridades e suas leis. Por esta razão, a infidelidade aos decretos dos governantes resulta em infidelidade para com Deus. A exceção nesse caso, é a negação a suprema lei de Deus.
      Portanto, a negação ao estado, suas autoridades e a fidelidade constitucional é algo totalmente estranho ao calvinismo. Nosso foco não são sistemas políticos (mesmo que Calvino defenda a Aristocracia), mas os princípios que emanam da Palavra. Isso é importante para evitarmos reducionismos, absolutizações ou canonizações indevidas. Como nos ensina o Reformador: “... toda a verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus” (CALVINO. Pastorais, p.318). Assim, nossa visão política deve ser dirigida pela verdade.                   


[3] Westminster trata isso apontando para o cristão político: Cap.XXIII.II.Aos cristãos é licito aceitar e exercer o ofício de magistrado, sendo para ele chamado; e em sua administração, como devem especialmente manter a piedade, a justiça, e a paz segundo as leis salutares de cada Estado, eles, sob a dispensação do Novo Testamento e para conseguir esse fim, podem licitamente fazer guerra, havendo ocasiões justas e necessárias”. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm. Acesso em 13:04 às 08:21.
[4] Ou “governo justo”.
[5] “E entre eles, merecidamente, deve valer muito esta exortação, pois se cometem alguma falta, não só estão lesando aos homens, a quem perversamente molestam, mas também estão sendo injustos para com o próprio Deus, cujos sacrossantos juízos poluem” (Is.3:14,15 - CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.456).      
[6] “Justiça é na verdade, assegurar proteção, abraçar, defender, vindicar, livrar aos inocentes. Juízo, porém, significa resistir à audácia dos ímpios, reprimir-lhes a violência, punir-lhes os delitos”. (CALVINO. As Institutas, Vol.4, p.460).       
[7] A palavra μάχαιρα aparecem 29 vezes no NT. A passagem em foco aqui é Rm.13:4. Kuyper afirma que a principal característica do governo é o direito sobre a vida e a morte. Segundo o testemunho apostólico o magistrado traz a espada e esta espada tem um triplo significado. É a espada da justiça para distribuir a punição física ao criminoso. É a espada da guerra para defender a honra os direitos e os interesses do Estado contra seus inimigos. E é a espada da ordem para frustrar em seu próprio país toda rebelião violenta [...] o direito de tirar a vida pertence somente àquele que pode dar a vida, isto é, a Deus; e portanto ninguém sobre a terra está investido com esta autoridade, a menos que seja dada por Deus.  KUYPER. O calvinismo, p.100.         
[8] Exegetas recentes que trabalham com a mesma tese quanto a μάχαιρα: DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary  : Romans 9-16. Word Biblical Commentary 38B p. 764. MOUNCE, Robert H.: Romans. The New American Commentary, p. 244).  
[9] θεοῦ γὰρ διάκονός ἐστιν σοὶ εἰς τὸ ἀγαθόν. (Rm.13:4). Calvino comentando essa passagem: “Os magistrados podem aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração não deve ser feita em função de si próprios, mas visando o bem público. Nem tem eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem estar de seus súditos”. CALVINO. Romanos, p.463.   
[10] Calvino comentando 1Tm.2:2 afirma: “ele faz expressa menção dos reis e de outros magistrados, porque os cristãos têm muito mais razão de odiá-los do que todos os demais. Todos os magistrados daquele tempo eram ajuramentados inimigos de Cristo, de modo que se poderia concluir que eles não deviam orar em favor de pessoas que viviam devotando toda a sua energia e riquezas em oposição ao reino de Cristo, enquanto que, para os cristãos, a extensão desse reino, e de todas as coisas, é a mais desejável. O apóstolo resolve essa dificuldade e expressamente ordena que as orações sejam feitas em favor deles”. CALVINO. As Pastorais, p.53.
[11]Portanto, uma vez que a autoridade civil é ordenada por Deus, falhar em render-lhe o apropriado e, em vez disso, se colocar contra ela é ser culpado de rebelião contra a ordenação de Deus”. CRANFIELD, C. E. B.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, p. 663.

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