“Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade” (βουληθεὶς ἀπεκύησεν ἡμᾶς λόγῳ ἀληθείας): que tipo de nascimento é afirmado em Tg.1:18?
Neste ensaio
analisaremos Tg.1:18, objetivando entender o significado do tipo de nascimento
afirmado. Para tal, alguns recursos hermenêuticos serão aplicados. Além disso,
consideraremos as teses existentes sobre este tema, defendidas pelos
estudiosos. Por meio destes apontamentos, teremos uma ideia dos tratos
exegéticos que envolvem Tg.1:18.
As linhas
hermenêuticas presentes nas descrições de defesa passam por algumas
proposições. Para um esclarecimento maior podemos reduzir, inicialmente, para o
verbo ἀποκυέω
(apokyéo, “faço
existir e nascer, gero”, aparece somente em
Tiago 1:15,18) que tem proeminência no debate. Em primeiro lugar, alguns estudiosos entendem, pelas citações dos
pais da igreja, a impossibilidade deste verbo ser entendido como algo metafórico.
Em segundo lugar, várias correntes da
tradição judaica referem-se a Deus como gerador do Seu povo ou do mundo
(Dt.32:18. Sl.22:9; Nm.11:12). Em
terceiro lugar, o nascimento ou novo (nascimento) é atestado em todas as
formas de tradição cristã, seja em Paulo (Ef.1:5; Rm.12:2; 1Co.4:15; Tt.3:5), Pedro
(1Pe.1:3, 23) e João (Jo.1:13; 3:3-8; Jo.13:9; 4:10). Em quarto lugar, a escolha de ἀποκυέω em vez de γεννάω (que teria sido o termo mais usual) foi ditada pela
necessidade de fazer um paralelo com 1:15. O pecado produz a morte, mas Deus
produz a vida, sendo a qualidade desta vida especificada pelo contexto
(DAVIDS. The Epistle of James: A
Commentary on the Greek text, p.89). Essas
primeiras nos conduzirão as teses hermenêuticas para o tipo de nascimento em
voga.
Antes
explorarmos os aspectos fundantes das percepções expostas, precisamos nos
atentar ao texto grego: βουληθεὶς ἀπεκύησεν ἡμᾶς [“quando
ele decidiu, nos gerou”] λόγῳ ἀληθείας [“pela Palavra da
verdade”]
εἰς τὸ εἶναι ἡμᾶς ἀπαρχήν τινα τῶν αὐτοῦ κτισμάτων [“para sermos primícias das suas criaturas”]. Varner entende o particípio βουληθεὶς
como temporal, diferente das versões em português, pois algumas traduzem como
conformativo (“segundo”, ARC, ARA, ACF) outras como modal (“por”, NVI, BJ,
NVT). O fundamento de tal percepção funciona a luz da literatura
judaico/cristã, desta forma, a ideia é: “quando ele decidiu, nos gerou...” (WILLIAM Varner.
The Book of James, A New Perspective, A Linguistic Commentary Applying
Discourse Analysis, pp.71,72).
Além disso, o meio (dativo
instrumental) de “quando ele decidiu, nos
gerou” passa pela λόγῳ ἀληθείας (“pela Palavra da
verdade”). Este uso (λόγῳ ἀληθείας) é também uma
realidade na LXX (Sl.119:43; Jr.23:28; Pv.22:21) e em outros lugares do NT
(2Co.6:7; Cl.1:5; 2Tm.2:15). Finalmente, na última linha temos um infinitivo de
propósito numa subordinação aos elementos textuais anteriores (“quando ele
decidiu nos gerar, por meio da Palavra da verdade, para sermos...”) tese esta,
quanto a tradução, defendida por Davids (DAVIDS. The Epistle of James: A Commentary on the
Greek text, p.89). O conteúdo que
envolve o propósito funciona com o acusativo ἀπαρχήν (“primícia”, termo
técnico da linguagem cúltico-sacrificial: a primeira porção dos produtos
naturais que era consagrada a YHVH, cujo oferecimento santificava todo o
restante). Este termo aparece 9 vezes no NT (Rm.8:23; 11:16; 16:5;
1Co.15:20,23; 16:15; 2Ts.2:13; Tg.1:18; Ap.14:4). Pelo AT ἀπαρχή
carrega vários sentidos. Era usado para as
ofertas de Israel (Êx.23:16,19; 34:16; Lv.27:26; Nm.18:18; Dt.14:23; 15:19-23),
também estava relacionado a Israel como nação eleita, primogênito de Javé (Êx
4:22) e o povo escolhido (Dt 7:6; Jr 2:3). A última parte de 1:18 traz o
genitivo τῶν
αὐτοῦ κτισμάτων (“das
suas criaturas”). A palavra “criaturas” em grego
é frequentemente usada para aquela criação de Deus em geral e as que existem
nela (compare Rm.8:18-25; 1Tm.4.4; Ap.5.13). Como a criação de Deus inclui as
criaturas, é possível usar o termo mais abrangente, “toda a sua criação, em toda
a criação, “tudo que ele criou”. Devemos ter o primeiro lugar em toda a sua
criação significa que toda aquela incluída no processo de renascimento ou
recriação (LOH & HATTON. A Handbook
on the Letter from James, p.38).
Depois destes
pontos preliminares foquemos no significado do tipo de nascimento. Para tal, o
contexto desempenha um papel de sua importância. Numa primeira possibilidade a ligação
com 1:17, onde o diferencial do “Pai das luzes” (πατρὸς τῶν φώτων) traz certas
considerações. Isto se deve a negação de “mudança ou sombra de variação” n’Ele.
Estudiosos como William Varner entendem
que “Pai das luzes” (πατρὸς τῶν φώτων) funciona como referência a Deus como criador dos luminares
celestiais e assim, produziu a luz perfeitamente (WILLIAM Varner. The Book of James, A New
Perspective, A Linguistic Commentary Applying Discourse Analysis, p.70). Entretanto,
é feita uma distinção entre Criador e criação, pois a imutabilidade está
presente no primeiro, mas não no segundo. Assim, a natureza de Deus é
imutavelmente boa em contraste com as sombras fugazes causadas pelo sol e céu.
Seu atributo de dar apenas o que é bom não está à mercê da mudança. Assim, o
impulso deste texto obscuro oferece uma teodiceia para reivindicar o caráter
divino em face daqueles que duvidaram da bondade e confiabilidade de Deus ou
que perderam a esperança em tempo de prova e imaginaram que era seu “destino”.
Tiago fecha a porta para essas falsas ideias (MARTIN. Vol. 48: Word
Biblical Commentary: James, p.39).
Desta forma, a plausibilidade do retorno a criação quanto ao “tipo de
nascimento”. Corrobora com isto o uso que Filo dá ao verbo “gerar” em relação à
criação e o argumento de que “criaturas” provavelmente se refere à criação
não-humana (MOO Douglas. Tiago, Introdução e Comentário, p.62). A conexão em foco traz o substrato para o entendimento da
questão problematizada.
De outro lado, a
conexão com 1:15 é usada como princípio norteador para entendermos o tipo de
nascimento. Por esta perspectiva se constrói uma antítese entre a morte e a
vida. Como aqueles a quem Deus dá à
luz são chamados de “primícias”, por isso, experimentaram uma amostra do que
toda a criação experimentou. Mas, Tiago também poderia estar se referindo à
obra redentora de Deus em vez de sua obra criativa. O v. 17, com sua linguagem
de Deus como “o Pai das luzes”, pode ecoar a oração da manhã judaica, uma que
se move diretamente do reconhecimento do Senhor como criador das luzes
celestiais. Além disso, a linguagem que Tiago usa no versículo, embora capaz de
uma aplicação “cosmológica” geral, é mais provável de ser lida sob uma luz
soteriológica. O verbo “dar à luz”, em sua única outra ocorrência no NT, foi
usado metaforicamente no v.15 com referência ao nascimento espiritual.
“Primícias” é uma forma habitual de denotar os cristãos no NT (2Ts. 2:13; Ap.
14:4; Rm.16:5; 1Co.16:15). A evidência mais importante a favor de um
“nascimento” redentor aqui é a frase “a palavra da verdade”. A sintaxe sugere
que esta “palavra” é o instrumento através do qual Deus traz as pessoas à vida.
Todas as outras quatro ocorrências da frase no NT referem-se ao evangelho como
o agente da salvação (2 Co.6:7; Ef.1:13; Cl.1:5; 2Tm.2:15). Esta referência a
“palavra” também deve ser vista em relação a outros usos importantes do mesmo
termo neste contexto (vv. 21, 22, 23). A “palavra implantada” do v. 21 às vezes
é considerada uma consciência de Deus residente por natureza em cada ser humano
(MOO. The Letter of James. The Pillar New
Testament commentary, p.79).
O levantamento investigativo trouxe alguns apontamentos para nossa conclusão. Evidente que as pretensões deste ensaio são sintéticas. Ainda assim, percebemos possibilidades fundamentadas no contexto e tradução. As duas plausíveis pela conexão presente no discurso. Entretanto, a conexão com o v.15 tem elementos mais abrangentes, no que diz respeito ao NT. Isto não significa ausência de equivalência, pois o poder de Deus aplicado a criação (não humana) o foi também ao nascimento espiritual