quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

 

   “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade” (βουληθεὶς ἀπεκύησεν ἡμᾶς λόγῳ ἀληθείας): que tipo de nascimento é afirmado em Tg.1:18?


     Neste ensaio analisaremos Tg.1:18, objetivando entender o significado do tipo de nascimento afirmado. Para tal, alguns recursos hermenêuticos serão aplicados. Além disso, consideraremos as teses existentes sobre este tema, defendidas pelos estudiosos. Por meio destes apontamentos, teremos uma ideia dos tratos exegéticos que envolvem Tg.1:18.

        As linhas hermenêuticas presentes nas descrições de defesa passam por algumas proposições. Para um esclarecimento maior podemos reduzir, inicialmente, para o verbo ἀποκυέω (apokyéo, “faço existir e nascer, gero”, aparece somente em Tiago 1:15,18) que tem proeminência no debate. Em primeiro lugar, alguns estudiosos entendem, pelas citações dos pais da igreja, a impossibilidade deste verbo ser entendido como algo metafórico. Em segundo lugar, várias correntes da tradição judaica referem-se a Deus como gerador do Seu povo ou do mundo (Dt.32:18. Sl.22:9; Nm.11:12). Em terceiro lugar, o nascimento ou novo (nascimento) é atestado em todas as formas de tradição cristã, seja em Paulo (Ef.1:5; Rm.12:2; 1Co.4:15; Tt.3:5), Pedro (1Pe.1:3, 23) e João (Jo.1:13; 3:3-8; Jo.13:9; 4:10). Em quarto lugar, a escolha de ἀποκυέω em vez de γεννάω (que teria sido o termo mais usual) foi ditada pela necessidade de fazer um paralelo com 1:15. O pecado produz a morte, mas Deus produz a vida, sendo a qualidade desta vida especificada pelo contexto (DAVIDS. The Epistle of James: A Commentary on the Greek text, p.89). Essas primeiras nos conduzirão as teses hermenêuticas para o tipo de nascimento em voga.

      Antes explorarmos os aspectos fundantes das percepções expostas, precisamos nos atentar ao texto grego: βουληθεὶς ἀπεκύησεν ἡμᾶς [“quando ele decidiu, nos gerou”] λόγῳ ἀληθείας [“pela Palavra da verdade”] εἰς τὸ εἶναι ἡμᾶς ἀπαρχήν τινα τῶν αὐτοῦ κτισμάτων [“para sermos primícias das suas criaturas”]. Varner entende o particípio βουληθεὶς como temporal, diferente das versões em português, pois algumas traduzem como conformativo (“segundo”, ARC, ARA, ACF) outras como modal (“por”, NVI, BJ, NVT). O fundamento de tal percepção funciona a luz da literatura judaico/cristã, desta forma, a ideia é: “quando ele decidiu, nos gerou...” (WILLIAM Varner. The Book of James, A New Perspective, A Linguistic Commentary Applying Discourse Analysis, pp.71,72). Além disso, o meio (dativo instrumental) de “quando ele decidiu, nos gerou” passa pela λόγῳ ἀληθείας (“pela Palavra da verdade”). Este uso (λόγῳ ἀληθείας) é também uma realidade na LXX (Sl.119:43; Jr.23:28; Pv.22:21) e em outros lugares do NT (2Co.6:7; Cl.1:5; 2Tm.2:15). Finalmente, na última linha temos um infinitivo de propósito numa subordinação aos elementos textuais anteriores (“quando ele decidiu nos gerar, por meio da Palavra da verdade, para sermos...”) tese esta, quanto a tradução, defendida por Davids (DAVIDS. The Epistle of James: A Commentary on the Greek text, p.89). O conteúdo que envolve o propósito funciona com o acusativo ἀπαρχήν (“primícia”, termo técnico da linguagem cúltico-sacrificial: a primeira porção dos produtos naturais que era consagrada a YHVH, cujo oferecimento santificava todo o restante). Este termo aparece 9 vezes no NT (Rm.8:23; 11:16; 16:5; 1Co.15:20,23; 16:15; 2Ts.2:13; Tg.1:18; Ap.14:4). Pelo AT ἀπαρχή carrega vários sentidos. Era usado para as ofertas de Israel (Êx.23:16,19; 34:16; Lv.27:26; Nm.18:18; Dt.14:23; 15:19-23), também estava relacionado a Israel como nação eleita, primogênito de Javé (Êx 4:22) e o povo escolhido (Dt 7:6; Jr 2:3). A última parte de 1:18 traz o genitivo τῶν αὐτοῦ κτισμάτων (“das suas criaturas”). A palavra “criaturas” em grego é frequentemente usada para aquela criação de Deus em geral e as que existem nela (compare Rm.8:18-25; 1Tm.4.4; Ap.5.13). Como a criação de Deus inclui as criaturas, é possível usar o termo mais abrangente, “toda a sua criação, em toda a criação, “tudo que ele criou”. Devemos ter o primeiro lugar em toda a sua criação significa que toda aquela incluída no processo de renascimento ou recriação (LOH & HATTON. A Handbook on the Letter from James, p.38).

      Depois destes pontos preliminares foquemos no significado do tipo de nascimento. Para tal, o contexto desempenha um papel de sua importância. Numa primeira possibilidade a ligação com 1:17, onde o diferencial do “Pai das luzes” (πατρὸς τῶν φώτων) traz certas considerações. Isto se deve a negação de “mudança ou sombra de variação” n’Ele.  Estudiosos como William Varner entendem que “Pai das luzes” (πατρὸς τῶν φώτων) funciona como referência a Deus como criador dos luminares celestiais e assim, produziu a luz perfeitamente (WILLIAM Varner. The Book of James, A New Perspective, A Linguistic Commentary Applying Discourse Analysis, p.70). Entretanto, é feita uma distinção entre Criador e criação, pois a imutabilidade está presente no primeiro, mas não no segundo. Assim, a natureza de Deus é imutavelmente boa em contraste com as sombras fugazes causadas pelo sol e céu. Seu atributo de dar apenas o que é bom não está à mercê da mudança. Assim, o impulso deste texto obscuro oferece uma teodiceia para reivindicar o caráter divino em face daqueles que duvidaram da bondade e confiabilidade de Deus ou que perderam a esperança em tempo de prova e imaginaram que era seu “destino”. Tiago fecha a porta para essas falsas ideias (MARTIN. Vol. 48: Word Biblical Commentary: James, p.39). Desta forma, a plausibilidade do retorno a criação quanto ao “tipo de nascimento”. Corrobora com isto o uso que Filo dá ao verbo “gerar” em relação à criação e o argumento de que “criaturas” provavelmente se refere à criação não-humana (MOO Douglas. Tiago, Introdução e Comentário, p.62). A conexão em foco traz o substrato para o entendimento da questão problematizada.

     De outro lado, a conexão com 1:15 é usada como princípio norteador para entendermos o tipo de nascimento. Por esta perspectiva se constrói uma antítese entre a morte e a vida. Como aqueles a quem Deus dá à luz são chamados de “primícias”, por isso, experimentaram uma amostra do que toda a criação experimentou. Mas, Tiago também poderia estar se referindo à obra redentora de Deus em vez de sua obra criativa. O v. 17, com sua linguagem de Deus como “o Pai das luzes”, pode ecoar a oração da manhã judaica, uma que se move diretamente do reconhecimento do Senhor como criador das luzes celestiais. Além disso, a linguagem que Tiago usa no versículo, embora capaz de uma aplicação “cosmológica” geral, é mais provável de ser lida sob uma luz soteriológica. O verbo “dar à luz”, em sua única outra ocorrência no NT, foi usado metaforicamente no v.15 com referência ao nascimento espiritual. “Primícias” é uma forma habitual de denotar os cristãos no NT (2Ts. 2:13; Ap. 14:4; Rm.16:5; 1Co.16:15). A evidência mais importante a favor de um “nascimento” redentor aqui é a frase “a palavra da verdade”. A sintaxe sugere que esta “palavra” é o instrumento através do qual Deus traz as pessoas à vida. Todas as outras quatro ocorrências da frase no NT referem-se ao evangelho como o agente da salvação (2 Co.6:7; Ef.1:13; Cl.1:5; 2Tm.2:15). Esta referência a “palavra” também deve ser vista em relação a outros usos importantes do mesmo termo neste contexto (vv. 21, 22, 23). A “palavra implantada” do v. 21 às vezes é considerada uma consciência de Deus residente por natureza em cada ser humano (MOO. The Letter of James. The Pillar New Testament commentary, p.79).

     O levantamento investigativo trouxe alguns apontamentos para nossa conclusão. Evidente que as pretensões deste ensaio são sintéticas. Ainda assim, percebemos possibilidades fundamentadas no contexto e tradução. As duas plausíveis pela conexão presente no discurso. Entretanto, a conexão com o v.15 tem elementos mais abrangentes, no que diz respeito ao NT. Isto não significa ausência de equivalência, pois o poder de Deus aplicado a criação (não humana) o foi também ao nascimento espiritual

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

 

Cessacionismo e Continuísmo ligados ao Binômio: Qualificação/ Funcionalidade dos χαρίσματα (“presentes graciosos”).  


             

        Este ensaio tem pretensões distintas em suas discussões, porquanto além de trabalhar, exegeticamente o texto de 1Co.12 (numa redução definida) também propõe, resumidamente um tipo de pedagogia de compreensão dos χαρίσματα pelo binômio qualificação/funcionalidade. Se faz necessário destacar também que faremos uma redução na lista de 12:8-10, envolvendo somente λόγος σοφίας [...] λόγος γνώσεως (“palavra de conhecimento, palavra de sabedoria” a tradução trabalhada por Thiselton será vista, posteriormente) de maneira que, possamos estabelecer uma leitura que funcione numa dinâmica, envolvendo os χαρίσματα no contexto paulino quanto aos seus desdobramentos (situação dos coríntios). A defesa presente neste ensaio está fundamentada na verificação dos χαρίσματα pelo binômio qualificação/funcionalidade.  

        Em 1Co.12 temos discussões descritas que têm como proeminência o papel do Espírito (vs.3,4,7,8,9,11,13). Inicialmente, pela conhecida discussão presente em 12:1 quanto a Περὶ δὲ τῶν πνευματικῶν (“acerca dos dons” ou “dos espirituais”) vista em tradução como neutro ou masculino (“pessoas espirituais ou dons espirituais”). Não é nosso propósito aqui, mas parece ser mais coerente a tradução que trabalha os “espirituais” (12:1 – 14:37 um interessante inclusio). Além disso, a trilogia χαρισμάτων (“presentes graciosos”) - διακονιῶν (“serviços”) - ἐνεργημάτων (“realizações ou aplicações do poder”) presente em 12:4-6 ganha uma conotação de “diversidade” em meio a unidade vista pelo paralelismo sinonímico: πνεῦμα (“Espírito”), κύριος (“Senhor”) e θεὸς (“Deus”). Algo visto em oposição a abordagem trinitária. Depois disto, chegamos ἡ φανέρωσις τοῦ πνεύματος (“a manifestação do Espírito” ou “o Espírito que se manifesta” Genitivo Subjetivo) que traz uma pequena lista, parecendo ser estruturada pelos adjetivos: ... διὰ τοῦ πνεύματος δίδοται ... (pelo Espírito é dada), ἄλλῳ δὲ ... (e a outro), ἑτέρῳ (e outro diferente) ... Chegamos assim, a tônica que trará as linhas de defesa presentes neste ensaio.

        Com o pressuposto de que a lista de 12:8-10 funciona como ἡ φανέρωσις τοῦ πνεύματος (“a manifestação do Espírito” ou “o Espírito que se manifesta”) traremos λόγος σοφίας [...] λόγος γνώσεως para a régua do binômio para entendermos o Cessacionismo e o Continuísmo. Com isto, devemos estar atentos ao fato de que o próprio NT (CXT Canônico) trará esta delimitação (unidade e diversidade do NT), além disso, o respeito pela “leitura histórica”, de viés inegociável, será levada em conta, porquanto os cristãos de corinto receberam certas correções de significado. Por isso, para a metodologia do binômio os χαρίσματα começam a ser qualificados no mundo do texto.   

       λόγος σοφίας [...] λόγος γνώσεως (“palavra de conhecimento, palavra de sabedoria”) Thiselton trabalha dois tipos de Genitivo: “Subjetivo: enunciado articulado derivado da sabedoria de Deus; Objetivo: enunciado sobre a sabedoria de Deus” (THISELTON. The First Epistle to The Corinthians: A Commentary on The Greek Text, p.938).   Ao observamos estes dois primeiros itens da lista (não exaustiva) nossa primeira questão passa pela qualificação, ou seja, como defini-los? Este primeiro passo é de fundamental importância, já que o continuísmo é precedido pela qualificação (entendimento do que realmente significa). Assim, somos desafiados a analisar estes conceitos de forma exaustiva.  

      O λόγος, que funciona como primeira parte da expressão, aparece algumas vezes em 1Co.1:5,17,18; 2:1,4,13; 4:19,20; 14:9,19,36; 15:2,54. Seu primeiro complemento (σοφίας) também tem fortes laços com 1Co (cf. 1:17,19-22, 24, 30; 2:1,4,5,6,7,13; 3:19) e o segundo (γνώσεως) também (cf. 8:1,7,10,11; 12:8; 13:2,8; 14:6). Não está claro para os estudiosos, se existe uma distinção entre σοφία e γνῶσις, (cf. Robertson & Plummer. ICC First epistle of St. Paul to the Corinthians. p.265; (THISELTON. The First Epistle to The Corinthians: A Commentary on The Greek Text, p.940) embora, Calvino pense em “conhecimento no sentido de informação ordinária, e sabedoria, incluindo revelações que são de um a ordem m ais secreta e sublime” (CALVINO. 1Coríntios, p.379). 

      De outro lado, alguns estudiosos entendem que este λόγος neste contexto descreve “a mensagem do conhecimento”. Fee trabalha esta percepção e traduz λόγος σοφίας como “uma mensagem/elocução repleta de sabedoria”,  assim, essa expressão remete claramente ao problema abordado no início da carta (1.17—2.16), em que, com base na “sabedoria”, os coríntios estavam rejeitando tanto Paulo quanto seu evangelho (FEE. Comentário Exegético de 1Coríntios, p.749). Corrobora com esta percepção a ideia de Garland, pois afirma que a “mensagem da sabedoria” difere da “arte persuasiva da sabedoria”. Desta forma, “sabedoria é a visão dada por Deus sobre os misteriosos propósitos e obras d’Ele por meio de Jesus Cristo” (GARLAND. 1Corinthians Baker Exegetical Commentary on The New Testament, p.581). Estas ideias interpretativas acabam por nos conduzir para a possibilidade de vermos σοφίας e γνώσεως como reveladoras da mensagem, e não propriamente χαρίσμα. (GARLAND. p.581). Thiselton trabalha com o termo “dons de expressão comunicativa articular”, os quais “podem recorrer a sabedoria e ao conhecimento de Deus, especialmente quando isto serve ao “bem comum” de todos e a proclamação da cruz”.  Além disso, ele traz testemunhos do período da patrística, inicialmente de Crisóstomo (347-407) que considerava os “dons espirituais” (em geral em 12:1-11) como “os que costumavam ocorrer, mas agora não acontecem mais”. Além disso, embora ele comente em detalhes sobre 12: 1-7, simplesmente repete o texto dos vv. 8–10 sem comentários, como se para sugerir que não podemos saber nada sobre o significado desses dons, os quais, por isso parece sugerir que cessaram. Tertuliano (160-220), de outro lado, retorna às perspectivas cristológicas. O enunciado que se relaciona com a sabedoria é “o Espírito de sabedoria”, o qual é aquela do evangelho e o conhecimento dele. Clemente de Alexandria (150-215) enfatiza a unidade e a diversidade dos dons em vez de seu conteúdo, exceto para comentar que eles são “apostólicos”, ou seja, refletem o “conhecimento, vida, pregação, justiça, pureza e profecia” dos apóstolos, concernente especialmente “a fé em Cristo e o conhecimento do evangelho”. Finalmente, Orígenes (185-253) é bastante claro que “no catálogo dos χαρίσματα concedidos por Deus, Paulo colocou primeiro λόγος σοφίας, porque considerou a proclamação (λόγος) como poderes mais elevados do que milagrosos. (THISELTON. The First Epistle to The Corinthians: A Commentary on The Greek Text, p.940, 943). Tudo isto chancela que a ênfase não é exatamente a sabedoria e conhecimento, mas sim a palavra (1:18) que surge da sabedoria e do conhecimento (CARSON. A Manifestação do Espírito, p.40).

      Com esta síntese, no que diz respeito a qualificação de λόγος σοφίας [...] λόγος γνώσεως, passemos para a funcionalidade. A problemática em voga é a seguinte: de que forma estes χαρίσματα deveriam se tornar concretos no contexto eclesiológico dos coríntios? Esta problemática tem considerável relevância para a proposta em foco, porquanto a funcionalidade parte, primeiramente do contexto dos leitores originais (situação dos coríntios). Carson trata esta questão pois, entende que “provavelmente aqueles que foram capacitados por esses dons desfrutavam de uma experiência especial com o Espírito. Por intermédio dele, uma palavra vinha a eles para que fosse transmitida à congregação; não fica claro, porém, se o conteúdo dessas palavras era invariavelmente algo que não poderia ser conhecido de outro modo(CARSON. A Manifestação do Espírito, p.40). Para Garland a “mensagem de conhecimento e sabedoria está intimamente relacionada com aquela entregue pelos apóstolos (2: 6–7,11–16; 2 Co.11:6), profetas (1Co. 13: 2) e mestres (14:6, 26). É esse ministério da palavra que mais beneficia a igreja e fortalece sua missão no mundo (GARLAND. 1Corinthians Baker Exegetical Commentary on The New Testament, p.581). Corrobora a tese de Fee que vê a “elocução de sabedoria”, vindo “por meio do Espírito”, e em Corinto ela deve ser encontrada, com quase toda a certeza, entre aqueles que apresentam falas inspiradas pelo Espírito que proclamam Cristo crucificado nessa comunidade extremamente interessada na “sabedoria” (FEE. Comentário Exegético de 1Coríntios, p.749). Existem tantas outras alternativas, entretanto, a funcionalidade não parece ser clara, quando falamos de concretização. Ainda assim, devemos ter mente que os modelos eclesiológicos do nosso tempo dificilmente se encaixam em tal dinâmica. Com isto, não tomamos tal percepção como primária para o entendimento da questão.  

       Ao partimos dos pressupostos quanto ao λόγος como “mensagem” (“discurso”), o desenvolvimento envolvendo o caráter público (11:17,18,20; 14:26) e a questão do “bem comum” (12:14-27), certificamos o efeito em propriedades distintas. Talvez, não possamos falar num aspecto querigmático com todos os pontos necessários, ainda assim, temos a mensagem (particular) abrangendo o coletivo (geral). Por isso, precisamos levar em conta a progressividade constitutiva da TBNT (Teologia Bíblica do NT) e o caráter cronológico do Cânon do NT (organização cronológica do NT, diferente da Canônica).  Sabemos que 1Co foi escrito, provavelmente durante o fim do inverno de 54,55 d.C ou no início da primavera de 55 d.C, quando Paulo estava em Éfeso (16:8,9; HALE. Introdução ao Estudo do NT, p.227). De outro lado, a datação das pastorais (65/66 d.C. O apóstolo foi liberado para o trabalho missionário. Escrita de 1 Timóteo e Tito. 65/66 d.C. Paulo é preso novamente. Isso foi seguido pela escrita de 2 Timóteo, a segunda prisão romana e o martírio, LEA, T. D., & GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, The New American Commentary, p.41) é afirmada em outro momento. Por que esta somatização? O elemento da progressividade está em voga, porquanto nas pastorais percebemos a constituição do bispo/presbítero (ἐπισκοπή ou πρεσβύτερος), recebendo a responsabilidade quanto ao compartilhar a Palavra a congregação (1Tm.3:1-6; 5:17; Tt.1:5-9). Desta forma, a mensagem passa a ser compartilhada no coletivo pelos oficiais dotados do χαρίσμα (1Tm.4:14. 2Tm.1:6) e automaticamente da responsabilidade de ensinar numa igreja/casa. A compatibilidade das duas afirmativas funciona pelo elemento progressivo quanto as constituições vistas em momentos distintos.

      As pretensões deste ensaio são limitadas as suas poucas páginas. A prioridade presente na defesa é trabalhar um tipo de leitura que passe pelo binômio qualificação/funcionalidade. Para tal usamos como laboratório somente os χαρίσματα: λόγος σοφίας [...] λόγος γνώσεως. Entretanto, todos outros (χαρίσματα) podem ser vistos da mesma forma, mas com respostas diferentes. Portanto, pela dificuldade com a qualificação de e automaticamente com a funcionalidade, neste caso o CESSACIONISMO parece ser a melhor resposta. Além disso, os aspectos progressivo e cronológico levantados chancelam o exercício numa dinâmica envolvendo bispo ou presbítero (ἐπισκοπή ou πρεσβύτερος).

sábado, 1 de janeiro de 2022

 

A dinâmica relacional “Escravo (δοῦλος)/Senhor (κύριος)” normatizada em Ef.6:5-9.


      A dinâmica relacional “escravo (δοῦλος)/senhor (κύριος) pela constituição de Paulo pode ser problematizada pelos seguintes extremos: o apóstolo pode ser lido como um apologeta para a escravidão ou como um fervoroso abolicionista? Entretanto, estas premissas são capazes de expor a ênfase paulina presente em Ef.6:5-9? A proposta deste ensaio passa, justamente por uma leitura que foca este tipo de análise. Desta forma, poderemos falar numa virada epistemológica quanto a compreensão da dinâmica exposta, a partir de uma proposta paulina. Tal perspectiva, produz um olhar para a contextualização tão discutida, porquanto seu efeito tem passado por convenções hermenêuticas que procuram separar os elementos cabíveis para nosso contexto daquelas improváveis numa “leitura literalista”. A defesa presente neste ensaio está fundamentada numa somatização [A] δοῦλος- κύριος (“escravo-senhor”);  [B] δοῦλος - Χριστός (“escravo-Cristo”);  [C] δοῦλος - κύριος (“escravo-SENHOR”);  [D] κύριος- κύριος (“senhor-SENHOR”) que funcionando como produtora de significado para Ef.6:5-9. 

      A exegese presente neste ensaio é pressuposta pelo modelo histórico-gramatical de interpretação. Por esta razão, nossa primeira intervenção investigativa sobre este texto passa pela composição contextual em que se encontra. Na verdade, a delimitação Ef.5:22-6:9 traz um gênero conhecido como “códigos da família”, os quais podem ser visto em dois tipos: [1] aquele que envolve os deveres das famílias mediterrâneas (Ef.5:22 – 6:9; Cl.3:18-4:1) e [2] aquele dirigido para a casa de Deus, a igreja, modelado depois do primeiro (1Tm.2:1,2, 8-12; 3:8-13; 5:1-3, 17-22. Tt.2:1-10; TALBERT. Ephesians and Colossians, Paideia, p.136). Podemos ser mais específicos ao observarmos as relações familiares pormenorizadas pelos binômios: “[relações familiares] maridos e esposas, filhos e pais, escravos e senhores” (LINCOLN. Vol. 42: Word Biblical Commentary: Ephesians). Este ponto produz um primeiro elemento relevante para termos uma impressão inicial da dinâmica relacional em voga.

      Juntamente com isto surge outra questão, pois os estudiosos têm procurado entender as fontes usadas por Paulo ao expor as delimitações textuais descritas. Inicialmente é possível destacar que nos dias de Paulo, muitos romanos estavam preocupados com a disseminação das “religiões do Oriente” (por exemplo, adoração de Ísis, judaísmo e cristianismo), as quais (segundo eles) poderiam prejudicar os valores tradicionais da família romana. Membros dessas religiões minoritárias frequentemente tentavam mostrar seu apoio a esses valores, usando uma forma padrão de exortações desenvolvidas por filósofos, a partir de Aristóteles. Essas exortações sobre como o chefe de uma família devia lidar com os membros (de sua família), geralmente se dividiam em discussões sobre relações marido-mulher, pai-filho e senhor-escravo. Paulo tomou emprestada essa forma de discussão diretamente da escrita moral greco-romana padrão (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Ef 5:20). De outro lado, o elemento derivativo funciona, a partir de deveres estóicos. Neste caso, um exemplo parte de Hiérocles (2º Séc d.C) cuja a sexta seção sobre gestão doméstica oferece os melhores paralelos para os códigos cristãos. Ele lidava com maridos e esposas, autoridade sobre servos, educação dos filhos e da renda familiar. Ainda assim, é importante salientarmos que a principal fonte dos códigos cristãos reside naquele judaicos helenísticos (TALBERT. Ephesians and Colossians, Paideia, p.136,137). Em suma, a gestão familiar era uma preocupação comum dos teóricos políticos do mundo antigo. Naturalmente, uma vez que o lar era geralmente entendido como a unidade básica do estado ou da sociedade. A saúde da sociedade e a estabilidade do estado, portanto, dependiam dos relacionamentos básicos dentro da família - marido e mulher, pai e filhos, senhor e escravos. A segunda e a terceira geração de cristãos compartilhavam essa preocupação, sem dúvida, em parte para demonstrar a boa cidadania de pequenas igrejas domésticas que, de outra forma, poderiam parecer subversivas dos valores sociais tradicionais; mas, sem dúvida, em parte também como meio de dar bom testemunho da qualidade e do caráter da família cristã (BARTON & MUDDIMAN. Oxford Bible commentary, Ef 5:21). Como foi dito no início, os substratos literários e históricos são inegociáveis para a leitura pelo gramático-histórico.

       Pós preliminares observamos que o texto começa com a identificação dos “escravos” (Οἱ δοῦλοι). Pelo macro da carta pensamos nestes δοῦλοι  (dûloi) como convertidos e beneficiados com as bênçãos espirituais (1:1,3,4). Tal pensamento parte da construção envolvendo os destinatários expostos desde 1:1, como uma síntese para todos os grupos citados (5:22-6:9) e a construção presente em 6:6 onde aparece a designação δοῦλοι Χριστου (servos [“que pertencem a] de Cristo”). Desta forma, saímos do geral para o particular numa dinâmica soteriológica definida, algo que numa harmonização traz uma ambiguidade (“os escravos” de 6:5 podem ser vistos de também como “servos de Jesus Cristo” Rm.1:1; Fp.1:1 e “servos de Cristo”, 6:6). Não podemos desmembrar a carta, de maneira que reduções improprias sejam levantadas, constituindo ênfases indevidas.

           Os binômios que servirão de base para nossa leitura têm a seguinte somatização: 

[A] δοῦλος- κύριος (escravo-senhor);  [B] δοῦλος- Χριστός (escravo-Cristo);  [C] δοῦλος- κύριος (escravo-SENHOR);  [D] κύριος- κύριος (senhor-SENHOR);        

      Assim, observamos em A,B,C uma correlação pedagógica, objetivando uma progressividade, de maneira que B,C e D têm uma ênfase definida. A discussão presente em A (ὑπακούετε τοῖς κατὰ σάρκα κυρίοις  - “obedecei [6:1] aos senhores segundo a carne [ARC, terrenos, ou temporais, BJ]”) tem sido alvo de grande discussão em nosso contexto atual, por causa da percepção que temos quanto a escravidão. Para sermos honestos no trato deste tema pelo background do NT, devemos afirmar a aparente indiferença dos primeiros cristãos quanto à instituição da escravidão, algo que deve ser visto à luz das atitudes predominantes em relação à isto. Na verdade, quase ninguém considerou um sistema opcional ou pensou em uma alternativa, embora houvesse debates sobre como os escravos deveriam ser tratados (por exemplo, Sêneca, Ep. 47). A escravidão como um fenômeno social, legal e econômico raramente se tornou objeto de reflexão. Nenhum governo antigo pensou em abolir a instituição, e nenhuma das rebeliões de escravos tinha como objetivo a abolição da escravidão como tal. A instituição da escravidão era um fato da vida econômica mediterrânea tão completamente aceita como parte da estrutura de trabalho da época, por isso não se pode falar corretamente do "problema" do escravo na antiguidade (LINCOLN. Vol. 42: Word Biblical Commentary: Ephesians, p.415). Evidentemente, não desejamos afirmar a generalização, além disso, o interesse aqui é de conotação sintética, porquanto a abrangência desta análise pode ser observada nas extensas escritas de alguns estudiosos. Ainda assim, fica a questão: se Paulo não era contra a instituição da escravidão como a tratou?

     Aqueles que esperavam um discurso de revolta encontram o contrário na fala do apóstolo (imperativo). Algo que corrobora com isto é a ênfase dada a Cristo (por quê?). “Os escravos devem obedecer aos senhores terrenos com temor e tremor com sinceridade de coração”, desta forma, a subordinação que vai além do exterior está em foco. Percebamos, como foi colocado, que há um jogo de palavras deliberados, passando por κύριος, que geralmente é traduzido como “Senhor” com referência a Cristo (v.4) ou Deus. De outro lado, o adjetivo “terreno” (para o κύριος humano) não deve ser entendido de forma negativa ou depreciativa; antes, mostra que esses mestres são senhores dentro de um reino visto desta forma (terreno), dentro da esfera das relações humanas, em contraste com o Senhor, que está no céu (v.9). Em última análise, os escravos cristãos pertencem ao único Senhor, Jesus Cristo (v.6), e sua obediência a seus senhores terrenos é sinônimo de servi-Lo (vs. 7,8). Mesmo assim, seu serviço a esses mestres deve ser sincero e genuíno. Positivamente, deve ser “com medo e tremor, em singeleza de coração, como a Cristo”. O motivo do “medo” (ou “respeito”) já apareceu na mesa da casa, servindo como um envelope para emoldurar a paraenesis do casamento em 5,21,33. Aqui a dupla expressão “com temor e tremor”, que aparece na LXX (AT em grego), quase sempre funciona como uma expressão estereotipada, geralmente se referindo àquele temor dos humanos na presença de Deus e de seus atos poderosos. Paulo é o único escritor do Novo Testamento a usar essa expressão (1Co.2:3; 2Co.7:15; Fp.2:12), e em cada uma dessas ocasiões (consistente com o uso da LXX), a frase tem a ver com uma atitude de devida reverência e temor na presença de Deus. Não é o terror servil do incrédulo; nem é uma atitude orientada exclusivamente para os humanos (O'BRIEN. The letter to the Ephesians. The Pillar New Testament commentary, p.449). Assim, a verticalidade aparece como elemento central.

     De outro lado negativamente temos o paralelo que passa do negativo para o positivo (paralelismo antitético). Desta forma, “servir a vista como agradar homens” (ὀφθαλμοδουλίαν ὡς ἀνθρωπάρεσκοι) trazem o primeiro elemento. Entretanto, o segundo foca B (δοῦλος - Χριστός; escravo-Cristo) algo fundamental para nossa premissa, porquanto ὡς δοῦλοι Χριστοῦ ποιοῦντες τὸ θέλημα τοῦ θεοῦ ἐκ ψυχῆς μετ᾽ εὐνοίας δουλεύοντες ὡς τῷ κυρίῳ καὶ οὐκ ἀνθρώποις (“como servos de Cristo fazendo a vontade de Deus de coração, servindo com boa vontade como ao Senhor, e não aos homens”). Este quesito deve ser levado em conta pela primazia colocada pelo apóstolo, algo que muda os paradigmas pelo viés do papel e poder exercidos pelo Senhor (C). Neste caso, o “escravo” cumpre o imperativo como “servo de Cristo”. A preocupação de Paulo, como colocado anteriormente, passa pela dinâmica imaterial como fonte do cumprimento. Como bem coloca Best: “embora um conjunto de leis possa ser obedecido sem envolvimento interno, toda a pessoa entra em jogo para fazer a vontade de Deus” (BEST. A Critical and Exegetical Commentary on Ephesians p. 578).

      Finalmente, em D a relação κύριος - κύριος (senhor-SENHOR) chancela algo de grande valia, porquanto a centralidade normativa traz elementos distintos. Pensemos que a crueldade existente nas percepções quanto as conotações escravagistas, por parte dos senhores, ganham críticas absolutas (Καὶ οἱ κύριοι τὰ αὐτὰ ποιεῖτε πρὸς αὐτούς ἀνιέντες τὴν ἀπειλήν E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles, deixando as ameaças”, ARC). Não podemos deixar de observar que esta era uma exortação chocante aos proprietários de escravos no mundo greco-romano do primeiro século (cristianismo contra cultura). De acordo com uma declaração proverbial conhecida por Sêneca, “todos os escravos são inimigos”, enquanto muitos senhores eram tiranos e abusadores. Para lidar com seus escravos, os proprietários eram conhecidos por ameaçar quanto ao espancamento, assédio sexual ou a venda daqueles do sexo masculino das famílias com o resultado de que eles se separariam para sempre de seus entes queridos. A exortação enigmática de Paulo era "ultrajante". Não significa, entretanto, que os senhores devam servir a seus escravos, como pensava Crisóstomo, tampouco se refere simplesmente a fazer o bem, como no v.8. Mais provavelmente, aponta para suas atitudes e ações, que, como os dos escravos, deviam ser governados por seu relacionamento com seu Senhor celestial. Um resultado disso será que os senhores abandonarão o uso de ameaças contra seus escravos. Isso não significa que os escravos não pudessem ser avisados ​​da punição se cometessem erros. Em vez disso, a cláusula rejeita todas as formas de manipular, rebaixar ou aterrorizar os escravos por meio de ameaças. No contexto imediato, estes escravos já foram instruídos a mostrarem respeito, sinceridade de coração e boa vontade; agora os mestres são instados a tratá-los de maneira semelhante (O'BRIEN. The letter to the Ephesians. The Pillar New Testament commentary, p.454).

      Dentro da progressividade argumentativa do apóstolo podemos considerar a escatologia futura de 6:8, funcionando num pormenor interessante (εἰδότες ὅτι ἕκαστος ἐάν τι ποιήσῃ ἀγαθόν, τοῦτο κομίσεται παρὰ κυρίου εἴτε δοῦλος εἴτε ἐλεύθερος). A individualidade descrita passa pela possibilidade de se “fazer o bem” numa linha de resposta advinda diretamente do Senhor. Desta forma, temos o que Calvino chama de “poderosa consolação”, pois “aqueles que tiveram de conviver com senhores mal agradecidos e cruéis, Deus aceitará seus serviços prestados a homens indignos como prestados a ele próprio” (CALVINO. Efésios, p.183).  

    Esta sintética análise exegética focou os binômios como reconstrução de um dilema social e histórico, a partir do elemento Cristocêntrico. Não podemos afirmar que a fala paulina exerceu uma ênfase abolicionista, entretanto, não podemos negar que houve um trato apologético. Portanto, não parece ser honesto defender que uma “leitura literal” da Bíblia forneça uma apologia a escravidão. Pelo contrário, a dinâmica relacional vista em Cristo ganha um caráter totalmente distinto (escravidão?). “Escravos e senhores” vivem sob a dinâmica do evangelho sem antagonismos em relação aos absolutos expostos. A desonestidade dos primeiros foi tratada e a crueldade dos segundos da mesma forma. Agora vivem acima de tudo como "irmãos" (Fm.16).  


      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...