sábado, 1 de janeiro de 2022

 

A dinâmica relacional “Escravo (δοῦλος)/Senhor (κύριος)” normatizada em Ef.6:5-9.


      A dinâmica relacional “escravo (δοῦλος)/senhor (κύριος) pela constituição de Paulo pode ser problematizada pelos seguintes extremos: o apóstolo pode ser lido como um apologeta para a escravidão ou como um fervoroso abolicionista? Entretanto, estas premissas são capazes de expor a ênfase paulina presente em Ef.6:5-9? A proposta deste ensaio passa, justamente por uma leitura que foca este tipo de análise. Desta forma, poderemos falar numa virada epistemológica quanto a compreensão da dinâmica exposta, a partir de uma proposta paulina. Tal perspectiva, produz um olhar para a contextualização tão discutida, porquanto seu efeito tem passado por convenções hermenêuticas que procuram separar os elementos cabíveis para nosso contexto daquelas improváveis numa “leitura literalista”. A defesa presente neste ensaio está fundamentada numa somatização [A] δοῦλος- κύριος (“escravo-senhor”);  [B] δοῦλος - Χριστός (“escravo-Cristo”);  [C] δοῦλος - κύριος (“escravo-SENHOR”);  [D] κύριος- κύριος (“senhor-SENHOR”) que funcionando como produtora de significado para Ef.6:5-9. 

      A exegese presente neste ensaio é pressuposta pelo modelo histórico-gramatical de interpretação. Por esta razão, nossa primeira intervenção investigativa sobre este texto passa pela composição contextual em que se encontra. Na verdade, a delimitação Ef.5:22-6:9 traz um gênero conhecido como “códigos da família”, os quais podem ser visto em dois tipos: [1] aquele que envolve os deveres das famílias mediterrâneas (Ef.5:22 – 6:9; Cl.3:18-4:1) e [2] aquele dirigido para a casa de Deus, a igreja, modelado depois do primeiro (1Tm.2:1,2, 8-12; 3:8-13; 5:1-3, 17-22. Tt.2:1-10; TALBERT. Ephesians and Colossians, Paideia, p.136). Podemos ser mais específicos ao observarmos as relações familiares pormenorizadas pelos binômios: “[relações familiares] maridos e esposas, filhos e pais, escravos e senhores” (LINCOLN. Vol. 42: Word Biblical Commentary: Ephesians). Este ponto produz um primeiro elemento relevante para termos uma impressão inicial da dinâmica relacional em voga.

      Juntamente com isto surge outra questão, pois os estudiosos têm procurado entender as fontes usadas por Paulo ao expor as delimitações textuais descritas. Inicialmente é possível destacar que nos dias de Paulo, muitos romanos estavam preocupados com a disseminação das “religiões do Oriente” (por exemplo, adoração de Ísis, judaísmo e cristianismo), as quais (segundo eles) poderiam prejudicar os valores tradicionais da família romana. Membros dessas religiões minoritárias frequentemente tentavam mostrar seu apoio a esses valores, usando uma forma padrão de exortações desenvolvidas por filósofos, a partir de Aristóteles. Essas exortações sobre como o chefe de uma família devia lidar com os membros (de sua família), geralmente se dividiam em discussões sobre relações marido-mulher, pai-filho e senhor-escravo. Paulo tomou emprestada essa forma de discussão diretamente da escrita moral greco-romana padrão (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Ef 5:20). De outro lado, o elemento derivativo funciona, a partir de deveres estóicos. Neste caso, um exemplo parte de Hiérocles (2º Séc d.C) cuja a sexta seção sobre gestão doméstica oferece os melhores paralelos para os códigos cristãos. Ele lidava com maridos e esposas, autoridade sobre servos, educação dos filhos e da renda familiar. Ainda assim, é importante salientarmos que a principal fonte dos códigos cristãos reside naquele judaicos helenísticos (TALBERT. Ephesians and Colossians, Paideia, p.136,137). Em suma, a gestão familiar era uma preocupação comum dos teóricos políticos do mundo antigo. Naturalmente, uma vez que o lar era geralmente entendido como a unidade básica do estado ou da sociedade. A saúde da sociedade e a estabilidade do estado, portanto, dependiam dos relacionamentos básicos dentro da família - marido e mulher, pai e filhos, senhor e escravos. A segunda e a terceira geração de cristãos compartilhavam essa preocupação, sem dúvida, em parte para demonstrar a boa cidadania de pequenas igrejas domésticas que, de outra forma, poderiam parecer subversivas dos valores sociais tradicionais; mas, sem dúvida, em parte também como meio de dar bom testemunho da qualidade e do caráter da família cristã (BARTON & MUDDIMAN. Oxford Bible commentary, Ef 5:21). Como foi dito no início, os substratos literários e históricos são inegociáveis para a leitura pelo gramático-histórico.

       Pós preliminares observamos que o texto começa com a identificação dos “escravos” (Οἱ δοῦλοι). Pelo macro da carta pensamos nestes δοῦλοι  (dûloi) como convertidos e beneficiados com as bênçãos espirituais (1:1,3,4). Tal pensamento parte da construção envolvendo os destinatários expostos desde 1:1, como uma síntese para todos os grupos citados (5:22-6:9) e a construção presente em 6:6 onde aparece a designação δοῦλοι Χριστου (servos [“que pertencem a] de Cristo”). Desta forma, saímos do geral para o particular numa dinâmica soteriológica definida, algo que numa harmonização traz uma ambiguidade (“os escravos” de 6:5 podem ser vistos de também como “servos de Jesus Cristo” Rm.1:1; Fp.1:1 e “servos de Cristo”, 6:6). Não podemos desmembrar a carta, de maneira que reduções improprias sejam levantadas, constituindo ênfases indevidas.

           Os binômios que servirão de base para nossa leitura têm a seguinte somatização: 

[A] δοῦλος- κύριος (escravo-senhor);  [B] δοῦλος- Χριστός (escravo-Cristo);  [C] δοῦλος- κύριος (escravo-SENHOR);  [D] κύριος- κύριος (senhor-SENHOR);        

      Assim, observamos em A,B,C uma correlação pedagógica, objetivando uma progressividade, de maneira que B,C e D têm uma ênfase definida. A discussão presente em A (ὑπακούετε τοῖς κατὰ σάρκα κυρίοις  - “obedecei [6:1] aos senhores segundo a carne [ARC, terrenos, ou temporais, BJ]”) tem sido alvo de grande discussão em nosso contexto atual, por causa da percepção que temos quanto a escravidão. Para sermos honestos no trato deste tema pelo background do NT, devemos afirmar a aparente indiferença dos primeiros cristãos quanto à instituição da escravidão, algo que deve ser visto à luz das atitudes predominantes em relação à isto. Na verdade, quase ninguém considerou um sistema opcional ou pensou em uma alternativa, embora houvesse debates sobre como os escravos deveriam ser tratados (por exemplo, Sêneca, Ep. 47). A escravidão como um fenômeno social, legal e econômico raramente se tornou objeto de reflexão. Nenhum governo antigo pensou em abolir a instituição, e nenhuma das rebeliões de escravos tinha como objetivo a abolição da escravidão como tal. A instituição da escravidão era um fato da vida econômica mediterrânea tão completamente aceita como parte da estrutura de trabalho da época, por isso não se pode falar corretamente do "problema" do escravo na antiguidade (LINCOLN. Vol. 42: Word Biblical Commentary: Ephesians, p.415). Evidentemente, não desejamos afirmar a generalização, além disso, o interesse aqui é de conotação sintética, porquanto a abrangência desta análise pode ser observada nas extensas escritas de alguns estudiosos. Ainda assim, fica a questão: se Paulo não era contra a instituição da escravidão como a tratou?

     Aqueles que esperavam um discurso de revolta encontram o contrário na fala do apóstolo (imperativo). Algo que corrobora com isto é a ênfase dada a Cristo (por quê?). “Os escravos devem obedecer aos senhores terrenos com temor e tremor com sinceridade de coração”, desta forma, a subordinação que vai além do exterior está em foco. Percebamos, como foi colocado, que há um jogo de palavras deliberados, passando por κύριος, que geralmente é traduzido como “Senhor” com referência a Cristo (v.4) ou Deus. De outro lado, o adjetivo “terreno” (para o κύριος humano) não deve ser entendido de forma negativa ou depreciativa; antes, mostra que esses mestres são senhores dentro de um reino visto desta forma (terreno), dentro da esfera das relações humanas, em contraste com o Senhor, que está no céu (v.9). Em última análise, os escravos cristãos pertencem ao único Senhor, Jesus Cristo (v.6), e sua obediência a seus senhores terrenos é sinônimo de servi-Lo (vs. 7,8). Mesmo assim, seu serviço a esses mestres deve ser sincero e genuíno. Positivamente, deve ser “com medo e tremor, em singeleza de coração, como a Cristo”. O motivo do “medo” (ou “respeito”) já apareceu na mesa da casa, servindo como um envelope para emoldurar a paraenesis do casamento em 5,21,33. Aqui a dupla expressão “com temor e tremor”, que aparece na LXX (AT em grego), quase sempre funciona como uma expressão estereotipada, geralmente se referindo àquele temor dos humanos na presença de Deus e de seus atos poderosos. Paulo é o único escritor do Novo Testamento a usar essa expressão (1Co.2:3; 2Co.7:15; Fp.2:12), e em cada uma dessas ocasiões (consistente com o uso da LXX), a frase tem a ver com uma atitude de devida reverência e temor na presença de Deus. Não é o terror servil do incrédulo; nem é uma atitude orientada exclusivamente para os humanos (O'BRIEN. The letter to the Ephesians. The Pillar New Testament commentary, p.449). Assim, a verticalidade aparece como elemento central.

     De outro lado negativamente temos o paralelo que passa do negativo para o positivo (paralelismo antitético). Desta forma, “servir a vista como agradar homens” (ὀφθαλμοδουλίαν ὡς ἀνθρωπάρεσκοι) trazem o primeiro elemento. Entretanto, o segundo foca B (δοῦλος - Χριστός; escravo-Cristo) algo fundamental para nossa premissa, porquanto ὡς δοῦλοι Χριστοῦ ποιοῦντες τὸ θέλημα τοῦ θεοῦ ἐκ ψυχῆς μετ᾽ εὐνοίας δουλεύοντες ὡς τῷ κυρίῳ καὶ οὐκ ἀνθρώποις (“como servos de Cristo fazendo a vontade de Deus de coração, servindo com boa vontade como ao Senhor, e não aos homens”). Este quesito deve ser levado em conta pela primazia colocada pelo apóstolo, algo que muda os paradigmas pelo viés do papel e poder exercidos pelo Senhor (C). Neste caso, o “escravo” cumpre o imperativo como “servo de Cristo”. A preocupação de Paulo, como colocado anteriormente, passa pela dinâmica imaterial como fonte do cumprimento. Como bem coloca Best: “embora um conjunto de leis possa ser obedecido sem envolvimento interno, toda a pessoa entra em jogo para fazer a vontade de Deus” (BEST. A Critical and Exegetical Commentary on Ephesians p. 578).

      Finalmente, em D a relação κύριος - κύριος (senhor-SENHOR) chancela algo de grande valia, porquanto a centralidade normativa traz elementos distintos. Pensemos que a crueldade existente nas percepções quanto as conotações escravagistas, por parte dos senhores, ganham críticas absolutas (Καὶ οἱ κύριοι τὰ αὐτὰ ποιεῖτε πρὸς αὐτούς ἀνιέντες τὴν ἀπειλήν E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles, deixando as ameaças”, ARC). Não podemos deixar de observar que esta era uma exortação chocante aos proprietários de escravos no mundo greco-romano do primeiro século (cristianismo contra cultura). De acordo com uma declaração proverbial conhecida por Sêneca, “todos os escravos são inimigos”, enquanto muitos senhores eram tiranos e abusadores. Para lidar com seus escravos, os proprietários eram conhecidos por ameaçar quanto ao espancamento, assédio sexual ou a venda daqueles do sexo masculino das famílias com o resultado de que eles se separariam para sempre de seus entes queridos. A exortação enigmática de Paulo era "ultrajante". Não significa, entretanto, que os senhores devam servir a seus escravos, como pensava Crisóstomo, tampouco se refere simplesmente a fazer o bem, como no v.8. Mais provavelmente, aponta para suas atitudes e ações, que, como os dos escravos, deviam ser governados por seu relacionamento com seu Senhor celestial. Um resultado disso será que os senhores abandonarão o uso de ameaças contra seus escravos. Isso não significa que os escravos não pudessem ser avisados ​​da punição se cometessem erros. Em vez disso, a cláusula rejeita todas as formas de manipular, rebaixar ou aterrorizar os escravos por meio de ameaças. No contexto imediato, estes escravos já foram instruídos a mostrarem respeito, sinceridade de coração e boa vontade; agora os mestres são instados a tratá-los de maneira semelhante (O'BRIEN. The letter to the Ephesians. The Pillar New Testament commentary, p.454).

      Dentro da progressividade argumentativa do apóstolo podemos considerar a escatologia futura de 6:8, funcionando num pormenor interessante (εἰδότες ὅτι ἕκαστος ἐάν τι ποιήσῃ ἀγαθόν, τοῦτο κομίσεται παρὰ κυρίου εἴτε δοῦλος εἴτε ἐλεύθερος). A individualidade descrita passa pela possibilidade de se “fazer o bem” numa linha de resposta advinda diretamente do Senhor. Desta forma, temos o que Calvino chama de “poderosa consolação”, pois “aqueles que tiveram de conviver com senhores mal agradecidos e cruéis, Deus aceitará seus serviços prestados a homens indignos como prestados a ele próprio” (CALVINO. Efésios, p.183).  

    Esta sintética análise exegética focou os binômios como reconstrução de um dilema social e histórico, a partir do elemento Cristocêntrico. Não podemos afirmar que a fala paulina exerceu uma ênfase abolicionista, entretanto, não podemos negar que houve um trato apologético. Portanto, não parece ser honesto defender que uma “leitura literal” da Bíblia forneça uma apologia a escravidão. Pelo contrário, a dinâmica relacional vista em Cristo ganha um caráter totalmente distinto (escravidão?). “Escravos e senhores” vivem sob a dinâmica do evangelho sem antagonismos em relação aos absolutos expostos. A desonestidade dos primeiros foi tratada e a crueldade dos segundos da mesma forma. Agora vivem acima de tudo como "irmãos" (Fm.16).  


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