quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A Teologia Natural vista pela Dimensão Interpretativa de Rm.1:19,20 descreve um conhecimento de Deus interno ou externo?  

τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν, Rm 1:19).

Deus está trabalhando “neles” sempre que a revelação natural ocorre. O Senhor traz a convicção, não como uma característica objetiva do universo criado. Mas alguns defendem fortemente “entre eles”, desta  forma, a revelação em questão não por algum conhecimento interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p.80).

Ao construirmos uma genealogia da Teologia Natural, poderemos destacar postulados expostos por alguns teólogos nos últimos séculos. Recentemente, Alister McGrath trouxe alguns considerandos sobre este tema, de maneira que, um retorno está em voga. Neste ensaio, nosso recorte passará pela dimensão interpretativa da Teologia Natural, focando Rm.1:19-20, passagem de extrema importância para o trato em questão. Alguns estudiosos irão corroborar com as impressões deste ensaio (Dunn, Calvino, Morris, Cranfield e outros). Assim, analisaremos τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν (Rm 1:19), a partir das construções textuais, tendo como pressuposto a hermenêutica calvinista (gramático-histórico) e com a seguinte problemática: “o conhecimento de Deus” de 1:19 tem conotação interna ou externa? James Dunn afirma que algum tipo de Teologia Natural está em foco aqui (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.56).

Em primeiro lugar, pensaremos o quadro contextual de 1:19-20 envolvido na argumentação paulina. O duplo uso da ἀδικία (lê-se: adikía, “injustiça”) em 1:18 serve como resumo para a queda do homem e abertura para toda a seção (1:18-3:20). A rememoração disto, se dá pela repetição desta palavra em 1:29; 2:8 e 3:5. Estruturalmente, a acusação concentra-se primeiro no homem como tal, mas com efeito nos gentios, “eles” (1:18–32) contra o judeu “nós” (2:1–3:8), antes de resumir em 3:9–20. Isto é, o foco principal da crítica é a autoconfiança judaica de que a acusação quanto ao pecado gentio (1:18–32), não é aplicável ao próprio povo da aliança (2:1–3:20). Ao reduzirmos para o primeiro trato da seção (1:18-32) a ênfase está sobre “a ira de Deus sobre a humanidade, de uma perspectiva judaica” (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.51). Nesse viés, alguns apontamentos devem ser levados em conta: 1) o eco existente entre Gn.2-3 e Rm.1:19-25, pois, foi Adão que, acima de tudo, perverteu seu conhecimento de Deus e procurou escapar do status de criatura, assim, estabeleceu o padrão (Adão = homem) para uma humanidade que adora o ídolo em vez do Criador. 2) Igualmente significativo, no entanto, é o fato de que, no v.21 e esmagadoramente, a partir do v 23, Paulo fala como judeu e faz uso da polêmica judaica helenística contra a idolatria. O efeito em voga caracteriza a injustiça humana (Adão) de uma perspectiva judaica, isto é, aquela tipificada pela aversão à idolatria e à degradação da ética sexual dos gentios. 3) De outro lado, a repetição de ἤλλαξαν (“mudaram”, 1:23, de ἀλλάσσω), μετήλλαξαν (“mudaram”, 1:25,26, de μεταλλάσσω) e παρέδωκεν, o qual aparece três vezes em 1:24,26,28 (“entregou”, de  παραδίδωμι), “criando um poderoso senso do círculo vicioso do pecado humano - falha em reconhecer a Deus, levando à degeneração da religião e do comportamento. O orgulho humano colhendo o fruto da depravação humana e isso vemos em 1:24,26,27 e na descrição de uma maldade geral vista em 1:29-31 (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.53).    

 O fluxo argumentativo marcado pelas relações sintáticas trazem certas conjunturas conclusivas.

     Οὐ γὰρ ἐπαισχύνομαι τὸ εὐαγγέλιον,

      Porque não me envergonho do evangelho

          δύναμις γὰρ θεοῦ ἐστιν εἰς σωτηρίαν...

             Porque é o poder de Deus para a salvação...

          δικαιοσύνη γὰρ θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται...

             porque a justiça de Deus se revela nele...

    Ἀποκαλύπτεται γὰρ ὀργὴ θεοῦ ἀπ᾽ οὐρανοῦ...

    Porque a ira de Deus se revela do céu...

 

A primeira conjuntura é o paralelo entre a δικαιοσύνη θεοῦ (“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ (“a ira de Deus”) conectado pelo verbo ἀποκαλύπτεται (de ἀποκαλύπτω, “eu revelo”).  Além disso, tanto τὸ εὐαγγέλιον (“o evangelho”) como ἀπ᾽ οὐρανοῦ (“do céu”) aparecem como fontes destas respectivas “justiça e ira de Deus”. Nessa dinâmica, a conjunção γάρ (lê-se: gár) repetida em todos os versos determina o tipo de costura feita entre os textos. Dunn sugere fortemente que este γάρ traz “tanto contraste quanto causa”, quanto a δικαιοσύνη θεοῦ (“justiça de Deus”) e ὀργὴ θεοῦ ([“ira de Deus”] DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.54). Este viés de constraste, segundo Calvino: “prova que a justiça só pode ser concebida ou conferida pela instrumentalidade do evangelho, porquanto, demonstra que todos os homens estão condenados” (CALVINO. Romanos, 2001, p.61).

         Em nossa tarefa de entender a dimensão interpretativa da Teologia Natural (pela problemática levantada), observaremos num viés lexical o adjetivo γνωστός (lê-se: gnostós, “conhecer”), o qual aparece quinze vezes no NT (na LXX em: Gn.2:9; Êx.33:6; Sl.76:1; Is.19:21 e em outras passagens), mas somente uma em Romanos (1:19). Seu domínio semântico “conhecer”, de forma reduzida no subdomínio “capaz de ser conhecido”, destaca γνωστός (lê-se: gnostós), especificamente, por Rm.1:19: “o que as pessoas podem conhecer a respeito de Deus está claro a elas [...] eles podem compreender o que se pode conhecer a respeito de Deus” (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do NT, baseado em Domínios Semânticos, p.306). Robertson entende γνωστός (lê-se: gnostós) como adjetivo verbal de γινωσκω, ou seja, “o conhecido”, como em outras partes de NT (At.1:19; 15:18, etc.) ou “o conhecível”, da mesma forma presente no costume grego antigo, que é “o conhecimento” (ἡ γνωσις) de Deus (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Rm 1:19). Cranfield afirma também γνωστός como “conhecível” e conclui que “há poucas dúvidas de que esse seja o seu sentido” (CRANFIELD. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Os desdobramentos textuais trarão mais luzes sobre esta questão.

            Assim, na segunda linha o apóstolo afirma: “o conhecimento de Deus é manifesto neles, porque Deus lhes manifestou” (...τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν). Esta parte traz certa problemática na tradução de τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς · ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν pelas diferenças nas versões em português: “o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou” (ARA, NVI) – “o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” (ARC) – “o que se pode conhecer de Deus eles o leem em si mesmos, pois Deus lho revelou com evidência” (AM). Basicamente, a divergência em questão passa pela percepção locativa e distributiva usadas como substratos sintáticos. Assim: “neles” ou “entre eles”?

“Neles” significa que a revelação ocorre basicamente na mente das pessoas (cf. ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Rm 1:19) Nesta visão, Deus está trabalhando “neles” sempre que a revelação natural ocorre. Desta forma, o Senhor traz a convicção, não como uma característica objetiva do universo criado. Entretanto, outros defendem fortemente “entre eles”, desta  forma, a revelação em questão ocorre não por algum conhecimento interior, mas pela criação em que se encontram (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p.80). Neste viés de discussão, Cranfield entende a locução preposicional ἐν αὐτοῖς como: “no meio deles”, ao invés vez de “dentro deles” pela incompatibilidade com o que é dito nos vs.20,21. O significado é que τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ se manifesta no meio deles e ao redor deles” também em sua própria existência criativa Deus se manifesta objetivamente: toda a Sua criação o declara (CRANFIELD. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2004, p.113). Para Calvino a locução dativa pode ser vista num viés locativo: “neles” – “esculpida no coração” (CALVINO. Romanos, 2001, p.63).   Entretanto, devemos ter em mente que Paulo usa a preposição ἐν (lê-se: en) com muita frequência (988 vezes; isso é mais de um terço do total de 2.713 do NT) e nem sempre com um significado preciso.

Em suma, essa percepção ligada numa concordância definida temos a indicação de que Deus não é conhecível na esfera autônoma do sujeito (uma convicção muito forte no judaísmo – cf. Êx 33:20; Dt 4:12), algo que nega uma indevida autonomia epistemológica, pois, na verdade, Ele Se deu a conhecer até certo ponto. Assim, a questão discutida provavelmente inclui o conhecimento comum sobre Deus, daí a severidade da acusação no final da v.20 (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.56). Assim, somos conscientizados por Dunn quanto a doação e limitação deste “conhecimento de Deus” (τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ). Sem considerações exaustivas quanto a propriedade e essência deste “conhecimento de Deus”, passamos para sua devida explicação. Num segundo momento este aspecto interno e externo tem aspectos fundantes explicativos pelo “paradoxo presente entre as coisas visíveis e invisíveis” defendido por Wuest (WUEST. Wuest's Word Studies from the Greek New Testament: For the English Reader, 1997, S. Rm 1:19). Desta forma, a conexão feita pelo γάρ (semântico funcional–lógica– explicativa) trabalha pormenores interessantes sobre a questão em foco. Assim, um viés estrutural pelo grego nos serve de organização argumentativa:    

τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου

porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo

τοῖς ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται,

pelas coisas criadas, são claramente percebidas, quando são reconhecidas (particípio adverbial condicional) ou porque é possível reconhecê-las (particípio adverbial causal) ou já que é reconhecível (particípio adverbial modal).    

ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης,

a saber, (τε... καὶ, Epexégetico), sua eternidade e divindade

εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους

de modo que (consecutivo) que são indesculpáveis

A primeira linha traz a qualificação necessária, para entendermos os desdobramentos que envolvem τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν. Em primeiro lugar, o paradoxo traz τὰ ἀόρατα αὐτοῦ (“as suas coisas invisíveis”) ligadas “a criação do mundo”, a partir do genitivo de fonte (ἀπὸ κτίσεως κόσμου). Numa coesão lexical, ἀόρατος aparece em Cl.1:15,16 nessa mesma dinâmica. Assim, “a criação” (κτίσις) tem papel preponderante neste viés epistemológico e pode ser vista em três sentidos: (1) o ato de criar (como aqui); (2) o resultado desse ato, o agregado das coisas criadas como em Cl.1:15 e provavelmente Rm.8:19; ou (3) uma criatura, uma única coisa criada como em Hb 4:13, e talvez Rm. 8:39 (SANDAY; HEADLAM. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans, 1897, p. 43). Numa síntese, Calvino associa os argumentos paulinos ao afirmar: “Deus em si mesmo, é invisível, porém, uma vez que sua majestade resplandece em todas  as suas obras e em todas as suas criaturas, os homens devem reconhecê-lo nelas, porquanto são uma viva demonstração de seu criador” (CALVINO. Romanos, 2001, p.64).

A luz da problemática em voga (“neles” e “entre eles”) em 1:20 alguns pontos devem ser observados. Inicialmente, o texto em sua primeira parte afirma:  τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται] ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης (a tradução foi realizada na página anterior).  O paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado pela junção do particípio/verbo (νοούμενα com καθορᾶται). O verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) aparece somente em Rm.1:20 no NT, entretanto, algumas vezes na LXX (Êx.10:5; Nm.24:2; Dt.26:15; Jó.10:4; 39:26). Por ser composto, κατά tem força de intensificação e pode ser visto como “algo claramente visto”, desta forma, o paradoxo com ἀόρατος (lê-se: aóratos, “invisível”) pode ser constatado. Além disso, está ligado ao particípio νοούμενα (de νοέω, “eu reconheço”), o qual é debatido em sua identificação adverbial, pois pode ser traduzido como condicional, causal ou modal. Mas, além disso, o verbo καθοράω (lê-se: kathoráo) tem como objeto o dativo instrumental τοῖς ποιήμασιν (“pelo que foi feito”).

Em suma, a paráfrase por esses substratos sintáticos, chancela que “as coisas invisíveis, claramente são percebidas, pela criação, sendo reconhecidas/compreendidas...” (NVI). A apropriação epistemológica em voga passa pelo verbo νοέω (lê-se: noéo, usado no particípio) que tem conotação intelectual (cf.Jo.12:40; Ef.3:4,20), isto é, por mais precisamente que a frase νοούμενα καθορᾶται deva ser traduzida (“claramente percebida”; “visível aos olhos da razão”), dificilmente é possível que Paulo não pretendesse que seus leitores pensassem termos de algum tipo de percepção racional da realidade mais completa dentro e por trás do cosmos criado. (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 1-8, 2002, p.58).

    A trilogia usada por Paulo traz “as coisas invisíveis”: ἀΐδιος δύναμις καὶ θειότης (lê-se: aídios, “eterno”; dýnamis, “poder”; kaì theiótes “e divindade”). Esse conhecimento restrito de Deus, provavelmente, inclui conhecê-Lo como Criador, uma vez que Seu poder e divindade são conhecidos no mundo que Ele criou. Paulo também não está sugerindo que o conhecimento da existência e do poder de Deus seja o resultado de uma dedução ou de cuidados raciocínios, de modo que o texto possa ser usado, para incentivar uma argumentação racional. Em vez disso, esse conhecimento do Senhor é uma realidade para todas as pessoas, não apenas para aqueles que possuem mentes, incomumente, lógicas. Assim, chegam a um conhecimento de Deus, através do mundo criado porque “Deus fez manifestou a eles” (SCHREINER. Romans, 1998, p.86). Portanto, somos conscientizados pelo texto quanto ao conhecimento de Deus em sua proposta revelacional ligada a criação que expõe certas propriedades do Senhor. A ideia consecutiva conclui a situação do homem: “de modo que são indesculpáveis” (εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους).  Assim, a primeira ideia destaca que o homem foi criado para ser um espectador do mundo criado, e dotado com olhos com o propósito de ser guiado por Deus mesmo, o Autor do mundo para a contemplação de algo tão significante (CALVINO. Romanos, 2001, p.63).

Talvez, a plausibilidade do trato da questão possa ser vista como diferente. Em nosso contexto evangelical não costumamos pensar fatos teológicos por seus substratos textuais (vivemos no império da TS). A pretensão limitada deste ensaio passa por este objetivo inicial, de maneira que possamos a teologia pela percepção calvinista. Quanto a problemática levantada temos razões para ambas percepções (interno ou externo). Parece-me que a ambiguidade, neste caso, funciona como elemento fundante aqui. Não por ser a saída mais fácil, mas porque a expectação tem força argumentativa pela criação e não parece ser possível que esta leitura fuga das prerrogativas racionais presentes nos leitores de Paulo. 

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