sábado, 25 de julho de 2020



            A disputa legal” entre Miguel e o diabo quanto ao corpo de Moisés (Jd.1:9).

Neste ensaio, trabalharemos Jd.1:9, a partir de um trato exegético. Para tal, consideraremos a tese interpretativa de Richard J. Bauckham como substrato principal com seus desdobramentos (outros estudiosos corroborarão também). Quanto a estrutura desta análise passaremos pelo fluxo argumentativo da macro e micro estruturas (a partir de Jd.9) e pela explicação dos conceitos envolvendo a tradução, background e os postulados presentes no texto. A defesa presente neste ensaio pensa “a disputa legal” como resposta as problemáticas hermenêuticas presentes em Jd.9.   
Jd.9 está num fluxo argumentativo distinto que desenvolve alguns tratos. Ao usarmos “o argumento do livro inteiro” (macroestrutura), podemos estruturar Judas em quatro pontos (segundo Schreiner): I “saudação (1,2), II o propósito da carta (3,4), III o julgamento dos intrusos (5-16) e IV exortações aos crentes (17-22)”.[1] Nesta terceira seção, Bauckham entende que 1:9 se encontra na delimitação Jd.5-10, apresentando “três tipos do AT”. Além disso, destaca esta preferência estilística de Judas (por expressões triplas) como algo evidente não apenas na seleção destes três tipos, mas também nas três características dos falsos mestres enumeradas na interpretação do v.8 (reforçada, intencionalmente ou não, pela rima): μαίνουσιν… ἀθετοῦσιν… βλασφημοῦσιν (“profanam… rejeitam… difamam”). Portanto, a estrutura da delimitação defendida por Bauckham é exposta assim: “citação (vs 5–7), seguida de interpretação (vs.8,10), uma citação secundária (v 9) introduzida para ajudar na interpretação. O padrão desta citação e interpretação passa a ser marcado pela mudança de tempo (passado vs.5–7, exceto πρόκεινται, “são exibidos” v 7 e presente vs.8,10) e pelo o uso de pronome demonstrativo, ουτ̓͂οι, (“estas”), para introduzir a interpretação (vs 8,10). Este último (ουτ̓͂οι), segundo Bauckham “requer alguma discussão” (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, pp.44,45). Depois desta primeira análise pensaremos agora os conceitos do texto, por meio de algumas portas. O texto grego nos fornecerá a direção, a partir das orações:

[1:9a] Ο δὲ Μιχαὴλ ἀρχάγγελος, ὅτε τῷ διαβόλῳ διακρινόμενος διελέγετο περὶ τοῦ Μωϋσέως σώματος
[1:9b] οὐκ ἐτόλμησεν κρίσιν ἐπενεγκεῖν βλασφημίας
[1:9c] ἀλλὰ εἶπεν· ἐπιτιμήσαι σοι κύριος.   
Estas três orações serão alvo de nossa análise quanto as questões sintáticas e lexicais oriundas do grego.

[1:9a] Ο δὲ Μιχαὴλ ὁ ἀρχάγγελος, ὅτε τῷ διαβόλῳ διακρινόμενος διελέγετο περὶ τοῦ Μωϋσέως σώματος... “Miguel, o arcanjo no debate com o diabo, disputou o corpo de Moisés ... (tradução apresentada por Bauckham).
Assim, em primeiro lugar, 1:9a destaca o sujeito (nominativo sujeito NS) Μιχαὴλ (lê-se: ho Mikhaèl), que as versões em português traduzem como “Miguel” (ARA,ARC,ACF,NVI,BJ).[2] A identificação apositiva de Μιχαὴλ aparece como ὁ ἀρχάγγελος (lê-se: ho arkhággelos), termo este, descrito poucas vezes no NT (1:9; 1Ts.4:16).[3] Bauckham explica que, no viés rabínico, Miguel “é o grande príncipe (Dn.12:1)”. Além disso, o termo ὁ ἀρχάγγελος (lê-se: ho arkhággelos) entrou em uso como equivalente as expressões ligadas aos quatro ou sete anjos principais, chamados de “anjos da presença”. Em ambos os casos, Μιχαὴλ é incluído no grupo e frequentemente assume o papel de líder, especialmente, como o patrono de Israel (Dn.12:1) e, portanto, o oponente de Satanás (cf. Ap 12:7). Ele desempenhou esses papéis na história sobre o enterro de Moisés, ao qual Judas faz alusão. (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, p.60).  
Ao pensarmos na ação do sujeito ( Μιχαὴλ), teremos que criar uma inversão no texto grego, para que, a funcionalidade na ordem advinda do português, seja mais clara. Assim, Μιχαὴλ διελέγετο (lê-se: dielégueto, “dialogava”) ὅτε τῷ διαβόλῳ διακρινόμενος [...] περὶ τοῦ Μωϋσέως σώματος (“... quando Miguel, o arcanjo, “dialogava” [como?], disputando com o diabo, a respeito do corpo [genitivo de referência] de Moisés...”). O verbo principal desta oração διελέγετο (lê-se: dielégueto, sua raiz: διαλέγομαι) aparece 17 vezes no NT e Robertson pensa sua tradução como “disputava” em associação com Mc.9:34 (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Jd 9). O particípio διακρινόμενος, de viés adverbial modal, indica o “como” deste “disputava” (διελέγετο). A tradução de διακρίνω (lê-se: diakríno, de onde vem διακρινόμενος)  tem papel preponderante no significado deste texto (ao todo são 19 usos no NT), Bauckham o entende, referindo-se a uma disputa legal(διακρινόμενος como em Joel 4:2 LXX). O diabo em seu antigo papel de acusador tentou estabelecer a culpa de Moisés, a fim de provar que não era digno de um enterro honrado e reivindicava seu corpo para si. Assim, “um debate com o diabo estava em voga” (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, p.60).     
A segunda parte, 1:9b [Ο Μιχαὴλ ὁ ἀρχάγγελος] οὐκ ἐτόλμησεν κρίσιν ἐπενεγκεῖν βλασφημίας] é governada pelo advérbio de negação, seguido do verbo no aoristo ἐτόλμησεν (lê-se: etólmesen), provavelmente constativo  (com o mesmo sujeito). Este verbo τολμάω (lê-se: tolmáo, raiz de ἐτόλμησεν ) aparece 16 vezes no NT e pode ser traduzido como: “ser tão ousado a ponto de desafiar eventuais perigos ou oposição – tomar coragem, ousar, atrever-se a”. Propriamente em Jd.9 a ideia parece ser (em junção com o acusativo κρίσιν e o infinitivo aoristo ligado ao genitivo ἐπενεγκεῖν βλασφημίας): ele não se atreveu a apresentar uma acusação envolvendo palavras insultuosas” (LOUW. NIDA. Léxico Grego-Português do NT, p.275). Ainda neste viés de tradução, observamos aquela usada por Bauckham: “Ele não pretendia condená-lo por difamação”. Essa tradução é justificada pelo contexto da história, a qual Judas fazia alusão.
Nesta história (concebia naquele tempo), o diabo foi quem fez uma caluniosa acusação (βλασφημία) contra Moisés. Na contramão disto, Miguel o contraria. Precisamos ponderar de que este Miguel era o advogado, e não o juiz, por isso, não se responsabilizou por rejeitar a acusação do diabo como calúnia maliciosa; em vez disso, apelou para o julgamento do Senhor (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, p.60). Outros estudiosos pensam nesta tradução num viés diferente, pois, afirmam certo trato de respeito de Miguel para com o diabo sem uma linguagem abusiva (cf. SCHREINER. 1,2 Peter, Jude NAC, 2007, p.458). Entretanto, Bauckham discorda desta percepção, quando afirma: “se essa interpretação tem o mérito de ser relativamente simples, também parece uma maneira estranha de Judas ter argumentado. A idéia de que o diabo não deve ser insultado é um pensamento sem paralelo na literatura judaica e cristã primitiva, um princípio questionável em si e não uma dedução necessária do texto de Judas” (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, p.60). Portanto, melhor seria traduzir por “ele não se atreveu a dar uma sentença de calúnia contra ele” ou parafrasear por “ele mesmo não ousou condená-lo por difamação”. Torna-se “difícil entender como é possível caluniar o Diabo” (BEALE. CARSON. Comentário do Uso do AT no NT, p.1312).
Chegamos ao âmago da questão, presente em 1:9c: ἀλλὰ εἶπεν· ἐπιτιμήσαι σοι κύριος.  Assim, num viés de constraste com 1:9b, outra fala de Miguel é exposta. A consolidação deste paralelo passa pelo viés da intertextualidade, nessa caso o uso do AT no NT, (mecanismo de identificação, técnica de apropriação e hermenêutica empregada) definido pela relação exposta anteriormente, pois, como explica D.A Carson: “não há contexto para esse fato no AT. No relato do sepultamento de Moisés (Dt 34.1-8), nenhuma menção é feita a Miguel ou ao Diabo” (BEALE. CARSON. Comentário do Uso do AT no NT, p.1312). Por esta razão, a citação de Zc.3:2  (LXX) aparecendo em 1:9c funciona de forma mais clara:

·        ἀλλὰ εἶπεν· ἐπιτιμήσαι σοι κύριος. 
·                          ἐπιτιμήσαι κύριος ἐν σοί διάβολε (Zc.3:2)
·                            o Senhor repreende a ti, ó diabo
·                          ἐπιτιμήσαι κύριος ἐν σοὶ (Zc.3:2)
·                            o Senhor repreende a ti, ó diabo

Pelo contexto do AT, Zacarias 3.2 traz alguns apontamentos singulares. Ali, é o próprio Senhor quem profere as palavras, quando repreende Satanás em defesa do sumo sacerdote Josué, que está diante do “anjo do Senhor”. Nessa visão, o sumo sacerdote Josué está no pátio do templo diante de Deus e representa os judeus. Seu acusador (e dos judeus) é Satanás, mas, se Deus o repreende, então Josué e, portanto, os judeus estão seguros na presença do Senhor. Outro ponto é a associação de ἐπιτιμάω (epitimáo) com a raiz hebraica גָּעַר (gahar), a qual, frequentemente, tem um senso mais forte do que “repreender”. Em suma, essas palavras carregam a conotação do conflito divino com os poderes hostis, cujo resultado é o enunciado oriundo da poderosa palavra, pela qual as forças demoníacas são controladas. Elas são usadas pela subjugação escatológica de Deus quanto aos seus inimigos e nos relatos dos exorcismos de Jesus (Mc.1:25, etc.). Algo nesse sentido é apropriado em Zc.3:2. Embora, não haja referência deste viés escatológico, devemos nos lembrar o contexto da disputa legal em ambos os casos. O poder de Satanás sobre os homens (sobre Josué e seu povo em Zc 3:2, sobre o corpo de Moisés) repousa sobre sua capacidade de sustentar acusações contra eles. Assim, quando o anjo pede a Deus que “repreenda” Satanás, ele pede que o Senhor rejeite a acusação dele e, assim, afirme sua autoridade sobre ele (BAUCKHAM. Word Biblical Commentary: 2 Peter, Jude, 2002, p.62).
Esses apontamentos exegéticos trazem algumas luzes introdutórias sobre este complexo texto. Em primeiro lugar, vimos o contexto que define o uso de 1:9 num fluxo que envolve citação/interpretação. Em segundo lugar, passamos pelas três orações do referido verso, sendo que 1:9a destaca sinteticamente a “disputa legal”. Em 1:9b as palavras de Miguel que funcionaram na contramão daquelas usadas pelo diabo. Em 1:9c a citação de Zc.3:2 trazendo a explicação pelo viés da intertextualidade.


[1] SCHREINER Thomas R.: 1, 2 Peter, Jude. electronic ed. Nashville : Broadman & Holman Publishers, 2007, c2003 (Logos Library System; The New American Commentary 37), p.18.
[2] Este termo aparece somente duas vezes no NT (1:9; Ap.12:7) e mais dezesseis vezes na LXX (Nm.3:13; 1Cr.5:13,14; 6:25; 7:3; 8:16; 12:21; 27:18; Dn.10:13,21; 12:1), sendo que nestes textos do AT, exceto Daniel (que se traduz como “Miguel”), a tradução usada é “Micael”.
[3] Seu viés lexical, segundo West, funciona pela junção de ἀρχὴ (arke, “primeiro na classe”) com ἄγγελος (a[n]guelos, “anjo”), ou seja: “chefe dos anjos” (WUEST. Wuest's Word Studies from the Greek New Testament: For the English Reader, 1997, S. Jd 9)

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