quarta-feira, 12 de dezembro de 2018


Já que a ELEIÇÃO não é por PRESCIÊNCIA, por que Pedro afirma: “...ELEITOS, SEGUNDO A PRESCIÊNCIA”?                

                                        A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]

“A presciência de Deus Pai" concentra-se no início desta eleição ou chamada e, portanto, pertence ao passado eterno” (MICHAELS: Word Biblical Commentary, p.10).

    Quando Pedro se dirige aos seus ouvintes originais como eleitos, segundo a presciência de Deus Pai”, qual é a sua intenção? Esta pergunta problematiza a questão em voga, a ser pensada. Seu aspecto crucial está fundamentado na convivência antitética dos sistemas teológicos, construídos por suas percepções quanto a relação entre “presciência” e “eleição”. Com esta consciência trataremos exegeticamente 1Pe.1:1,2, buscando o significado proposto pelo autor. Alguns análises serão norteadoras neste quesito: 1) os usos de πρόγνωσις (prógnosis - presciência) no NT e suas traduções; 2) a relação de πρόγνωσις (prógnosis - presciência) com “ἐκλεκτός (eklektós - eleito) em 1Pedro.

 [A]πρόγνωσις (prógnosis – “presciência”): seus usos no NT e suas traduções.

      O substantivo πρόγνωσις (prógnosis – “presciência”) aparece somente duas vezes no NT. Na primeira está relacionada ao “desígnio de Deus quanto a morte e crucificação de Jesus por mãos iníquas” (At.2:23). Já em 1Pe.1:2 funciona como base explicativa para a eleição. Existe algo comum nesses dois usos que deve ser enfatizado, ou seja, o paralelo de πρόγνωσις com θεός (Theós - Deus): “...προγνώσει τοῦ θεοῦ (prognósei tû Theû – “presciência de Deus”)[2] [...]  “...πρόγνωσιν θεοῦ (prógnosin tû Theû – “presciência de Deus”).[3] Além disso, ao pensarmos a tradução de πρόγνωσις (prógnosis – “presciência”), algumas possibilidades tornam-se manifestas. A metodologia lexical em “Domínios Semânticos” e seus respectivos “Subdomínios” realizada por Louw Nida, traz dois equivalentes nesse sentido: “conhecer e conhecido (o conteúdo do conhecimento)”. Além disso, o cognato “προγινώσκω” (proguinósko)[4] é definido com a mesma tradução. Portanto, πρόγνωσις e προγινώσκω são traduzidas por Louw Nida da seguinte forma: “ter conhecimento de algo ou alguém” - “conhecer de antemão, aquilo que é conhecido de antemão ou anteriormente a determinado ponto de referência temporal – presciência, conhecimento prévio, o que se conhece de antemão” (LOUW NIDA. Léxico Grego-Português do NT, Baseado em domínios Semânticos, pp.300,302). Estas premissas nos servem de constatações afirmativas que descrevem os paralelos do termo grego e sua equivalência na tradução.

 [B] A análise da relação de πρόγνωσις (prógnosis - presciência) comἐκλεκτός (eklektós - eleito).

    O fluxo de 1Pe.1:1,2 traz alguns desdobramentos estruturais que apontam nossa delimitação em questão, pois o foco é a análise de B ligado a segunda linha.

[A] Pedro (Πέτρος). 1:1

            apóstolo de Jesus Cristo (ἀπόστολος Ἰησοῦ Χριστοῦ)

[B] Aos eleitos[5] (ἐκλεκτοῖς). 1:1.

         B.1. que são estrangeiros na diáspora[6] do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia     

(παρεπιδήμοις διασπορᾶς Πόντου, Γαλατίας, Καππαδοκίας, Ἀσίας καὶ Βιθυνίας)

         B.2. SEGUNDO A PRESCIÊNCIA DE DEUS PAI (κατὰ πρόγνωσιν θεοῦ πατρὸς). 1:2

         B.3. Em santificação do Espírito (ἐν ἁγιασμῷ πνεύματος). 1:2.

         B.4. Para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo. 1:2

               (εἰς ὑπακοὴν καὶ ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ)                 

[C] Graça e paz vos sejam multiplicadas  (χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη πληθυνθείη)

 

    No fluxo observamos que o texto grego não repete o adjetivo “ἐκλεκτός  (eklektós – “eleito”) no v.2. Por esta razão, esta qualificação tem um viés definido pela condição em que o povo de Deus vivia como “estrangeiros na diáspora” e nos desdobramentos desenvolvidos pelas locuções preposicionais presentes no v.2. Além disso,  numa leitura contextual a expressão “segundo a presciência de Deus” também estabelece um quesito dialogal importante. Grudem explica que no v.1 não contem verbo algum, assim é mais que natural que “segundo a presciência de Deus Pai” esteja modificando toda à situação dos leitores mencionados no primeiro versículo [...] Isso indica que a situação deles era conhecida por Deus e tudo havia concorrido de acordo com a “Sua presciência”, produzindo conforto aos leitores de Pedro (GRUDEM. Comentário Bíblico de 1Pedro, p.52). Assim, trabalhamos certa somatização iniciada com o adjetivo “ἐκλεκτός  (eklektós – “eleito”), ligado também aos apontamentos relacionais e existenciais vividos pela igreja (1:1). Depois desta fundamentação faremos uma redução, para tratar “a qualificação padronizada”: “ἐκλεκτός  (eklektós – “eleito) com [...]κατὰ πρόγνωσιν θεοῦ πατρὸς (katà prógnosin theû patrós – “eleitos segundo a presciência de Deus Pai”).

     Esta “qualificação padronizada” (preposição κατά + acusativo “πρόγνωσιν”)[7]  associada aos elementos lexicais serve como fundamentado, na percepção de alguns teólogos para mostrar uma eleição condicional ou condicionada. Isso significa que Deus já sabia de antemão quais eram as pessoas que seriam salvas pelo exercício da fé em Cristo (MUELLER. 1Pedro Introdução e comentário, p.69).[8] Desta forma, “o conhecimento de antemão” define certas posturas daquele que irá crer, funcionando assim, como base da eleição. Vejamos se esta tese, pode ser sustentada exegeticamente em 1Pe.1:1,2.  

     A coesão lexical presente em 1Pedro que envolve o uso de “ἐκλεκτός  (eklektós – “eleito”) é de fundamental  importância nesta análise. Assim, constatamos que Pedro usa por quatro vezes ἐκλεκτός  (eklektós – “eleito),[9] sendo que em duas, se referindo a Cristo (2:4,6) e nas restantes, se referindo a igreja (1:1; 2:9). Esse exercício exegético produz a seguinte síntese: “eleitos segundo a presciência” (1:1,2) [...] vós, porém (contraste com o descrentes) sois “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, agora sois povo de Deus [...] e recebestes misericórdia (2:9).” Essas definições dirigidas a igreja estão fundamentadas nos textos do AT[10] e mostram, como Pedro entende a verdadeira linha de continuidade que se estende ao povo de Deus sob a antiga aliança ao povo da nova aliança (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.1296).

   Essa constatação deve levar em conta também a condição anterior da igreja, pois Pedro afirma que “foram chamados das trevas” [...] “não eram povo de Deus” [...] não tinham alcançado misericórdia” (2:9,10). Essa condição de “trevas”[11] (σκότους skótous) indica a ausência de toda e qualquer causa provável para a eleição, pois, como afirma Mueller: “[ela] designa especialmente o entenebrecimento religioso e moral, obscurecimento causado pelo pecado” (MUELLER. 1Pedro Introdução e comentário, p.137). Além disso, Ramsey entende que “estas trevas [...] apontam para a “ignorância” (1:14) que pertencia ao passado dos gentios, ou seja, de seus leitores” (MICHAELS: Word Biblical Commentary: 1Peter, p.111). O trato epistemológico neste caso está totalmente prejudicado como em 1Co.2:14. O homem nesta situação está totalmente impossibilitado de cooperar, quando em “σκότος (skótos – “trevas”) está “cego para o evangelho” (At.26:18). Portanto, “Aquele que chama” (καλέσαντος - kalésantos)[12] age livremente, doando as bênçãos espirituais (1:3-5,18-21), segundo Suas determinações soberanas (1Pe.1:20; 5:10). Somente, desta forma, o “antes” (1Pe.2:10) pode ser mudado, de maneira que “agora” (1Pe.2:10) como “povo de Deus” será possível “proclamar as virtudes” (ὅπως τὰς ἀρετὰς ἐξαγγείλητε...) do Senhor.

          Depois de analisarmos esta síntese, voltemos novamente para 1:1,2, objetivando entender a relação constituída de “ἐκλεκτός” com as locuções[13]: “Eleitos” [...] 1) “em santificação do Espírito” e 2) “para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”.[14] Quanto a primeira é possível entendê-la como “genitivo subjetivo”, neste caso, entendemos que “a santificação é feita pelo Espírito” direcionada aos “eleitos”.[15] Assim, “ἁγιασμὸς πνεύματος” (haguiasmòs pneúmatos – “santificação do Espírito”) na presente passagem é enfaticamente um ato divino e um aspecto da iniciação cristã. Refere-se a separação pela qual indivíduos que são estranhos e exilados em seu mundo, passam a estar reunidos em uma nova comunidade dos escolhidos (MICHAELS: Word Biblical Commentary: 1Peter, p.11). Finalmente, o propósito para os “eleitos” é descrito ao afirmar a necessidade da “obediência” (ὑπακοή - hypakoé),[16] que por ser imperfeita necessita da “aspersão do sangue de Jesus Cristo” (ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ - pantismòn haímatos Iesû khristû - GRUDEM. Comentário Bíblico de 1Pedro, p.53). Além desta perspectiva, “obediência” (ὑπακοή - hypakoé) e “aspersão” (ῥαντισμός - rantismós)[17] podem ser tomados como hendíadis (duas palavras que expressam uma ideia única) em relação ao contexto de Êx.24:3-8 [...] O mesmo ocorre aqui: os cristãos foram escolhidos para participar do relacionamento da nova aliança em que prometem obediência e a aliança é selada pela morte de Jesus (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.1245). Estas locuções trazem uma fórmula trinitária quanto as delimitações dirigidas aos “eleitos”, mostrando que esse é o fundamento eficaz dos elementos citados. Portanto, os “eleitos” são descritos fundamentalmente num padrão pela “presciência” (explicada anteriormente) e que passa pela instrumentalmente da “santificação do Espírito”, isso como algo posterior, cronologicamente se falando (a presciência é a explicação). Finalmente, o propósito determinado aos “eleitos”: “para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”. A leitura que quebra esses apontamentos ou até mesmo os sincroniza fora de seus respectivos propósitos, tornando-os assim,  confusos e constituídos numa aplicação indevida.  

     Depois de levantarmos estes fundamentos exegéticos, concluímos que  κατὰ πρόγνωσιν θεοῦ πατρὸς passa por um crivo relacional baseado na determinada vivência da igreja. Os “eleitos são forasteiros na diáspora” e essa condição era conhecida pelo Senhor em Sua presciência. A importância dessa constatação foi definida pelo seu propósito de consolar o coração daqueles irmãos (1Pe.5:8-10). Além disso, a “qualificação padronizada” define a singularidade da ação divina. A síntese feita entre 1:1,2 e 2:9,10 deixou claro esta questão, pois a ausência de bases justificativas para “o conhecimento de antemão”, foram expostas principalmente pela referida condição no “antes”, ou seja,  em absolutas “trevas”. Finalmente, as locuções apresentadas na estrutura têm certo caráter cronológico e processual, pois mostram a ação inicial, “a presciência divina” com seus desdobramentos.  

     Afirmar uma eleição condicional ou condicionada, a partir de 1Pe.1:1,2 não parece ser a melhor construção definida exegeticamente. Não podemos negar que Deus tem conhecimento temporal no atemporal, entretanto, isso está n’Ele por Suas próprias determinações. 1Pe.1:1,2 é mais um exemplo disso, pois sem a ação do Senhor o que seria visto por Ele mesmo? Os leitores originais de Pedro entenderam isso. Portanto, reafirmo que não existe eleição por presciência baseada em conhecimentos previstos nas ações dos homens.    



[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

[2] At.2:23.

[3] 1Pe.1:2.

[4] Este verbo aparece somente uma vez em 1Pedro (1:20).

[5] Dativo de Destinatário.

[6] Genitivo Locativus. HAUBECK Wilfrid, SIEBENTHAL Meinrich Von. Nova Chave Linguística Novo Testamento Grego: Mateus ־Apocalipse. São Paulo, 2010, p.1265.

[7] O uso da preposição é definida como “padrão”: “Eleitos de acordo com a presciência”. WALLACE. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento, p.377.

[8] Está implícito então, que o crente fica com essa responsabilidade última, tendo todos a mesma chance.

[9] São mais dezoito usos no restante do NT: Mt.22:14; 24:22,24,31; Mc.13:20,22,27; Lc.18:7; 23:35; Rm.8:33; 16:13; Cl.3:12; 1Tm.5:21; 2Tm.2:10; Tt.1:1; 2Jo.1,13; Ap.17:14.

[10] Êx.19:5,6; Is,43:20,21.

[11] Ef.5:8; Cl.1;13;1Ts.5:1

[12] Particípio substantivado.

[13] Já analisamos “segundo a presciência de Deus Pai”.

[14] ...ἐν ἁγιασμῷ πνεύματος εἰς ὑπακοὴν καὶ ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ,  (1:2)

[15] O mesmo ocorre em 2Ts.2:13.

[16] ὑπακοή (hypakoe – obediência) usado em 1Pedro:1:14,22.

[17] Esta palavra aparece somente duas vezes no NT: 1Pe.1:2; Hb.12:24.


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