A “Verdade”
(ἀλήθεια) em seu
caráter ontológico exposta no evangelho de João: Algumas Considerações Conceituais.
Este ensaio trará certos apontamentos
conceituais sobre a “verdade” (ἀλήθεια) em seu
caráter ontológico delimitados pelo evangelho de João. Tal análise passa
pela importância epistemológica/pedagógica do conceito em foco num tempo em que
a “pós- verdade” faz parte da chancela de alguns pensadores. A “verdade” tem
recebido tratos distintos, porquanto tem sido vista simplesmente como uma
metáfora, uma forma de imposição ou uma manipulação hermenêutica do texto
bíblico (ver THISELTON. Interpreting God and Postmodern on meaning,
manipulation and promisse, pp.3-9) As falas dos ateus literários partem de
negações metafísicas quanto a presença pessoal de Deus como consolidador, produtor
de significado e desta forma, soberano sobre a verdade. A problemática em voga
passa pelo caráter ontológico desta “verdade” ligada a Cristo (ἐγώ
εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια),
pois como entendê-la?
O
substantivo ἀλήθεια (lê-se: alétheia) aparece
109 vezes no NT (muitas outras na LXX). Em seu background ἀλήθεια (lê-se: alétheia) ligada ao uso do grego antigo, funciona como uma
forma privativa derivada dos verbos: λανθάνω/
λήθω
(“ocultar algo de alguém, estar oculto”). Em síntese podemos pensar em algumas
traduções (grego clássico), inicialmente como: “verdade em oposição a mentira
ou mera aparência, posteriormente [verdade] também realidade” (Liddell., Scott &
McKenzie. A Greek-English lexicon, p. 63). Desta forma, refere-se às
coisas como são, mas sempre aquilo expresso; falar em ἀλήθεια (lê-se: alétheia) era afirmar
em algo “como é”. Desta forma, neste período clássico, pode ser vista como a revelação
do estado de coisas que se exibem por si mesmas e, portanto, percebidas em sua
realidade; além disso, e em completa continuidade com o uso antigo, poderia
indicar a realidade e a essencialidade ou correção da afirmação do discurso
revelador. Assim, na medida em que ἀλήθεια (lê-se: alétheia) revela
a disposição do falante, significa veracidade (Balz & Schneider. Exegetical
dictionary of the New Testament, Vol.1, p.58).
Num segundo momento precisamos observar
pelo viés do AT. Neste viés, denota uma realidade que é firme, sólida,
obrigatória e, portanto, verdadeira. Com referência a pessoas, caracteriza sua
ação, fala ou pensamento e sugere integridade. Na lei, a palavra é usada para a
verdade real de uma causa ou processo conforme mostrado pelos fatos (cf. Dt.
22:20; 1Rs.10:6; Dn.10:1). Apenas raramente há um uso mais abstrato, por
exemplo, em Gn.4:16 (“se é como diz” ou “se há alguma verdade em ti”).
Normalmente, os fatos estabelecem uma questão além da objeção, como também no
caso da palavra de Deus (cf. 1 Rs.17:24; Jr.23:28). A consideração pelos fatos
é indispensável para a distribuição correta da justiça (Zc.7:9; 8:16). Além
disso, pode ser vista como uma extensão desse uso é para fatos mais gerais que
exigem reconhecimento por todas as pessoas como realidade, como o estado normal
correspondente à ordem divina e humana. O uso religioso corre paralelo ao
legal, mas não é apenas uma aplicação figurativa dele. Muitas vezes denota uma
realidade religiosa que não precisa ser explicada pelo uso forense. Os justos
baseiam sua atitude para com Deus na verdade incontestável e praticam a
veracidade como o próprio Senhor é verdadeiro (cf. Sl. 51:6). Aqueles que estão
qualificados para “habitar no monte de Deus falam a verdade no coração”, ou
seja, têm a mente voltada para isso (Sl.15:2). A verdade está ligada ao
conhecimento de Deus (Os.4:1). Se é fundamentalmente uma atitude, o elemento
racional no uso legal o vincula à instrução na lei, ou seja, nas Escrituras (Sl
119:160), pois as ordenanças de Deus são verdadeiras (Sl 19:9). Assim, andar na
verdade pode ser ensinado (Sl 86:11). A verdade também pode ser colocada em
oposição ao engano (cf. Ml. 2:6; Pv. 11:8; 12:19). Expressões poéticas têm
verdade brotando do chão ou caindo na rua (Sl. 85:11; Is. 59:14), mas quando é
dito que foi lançado ao chão em Dn. 8:12 parece ser igualado à verdadeira
religião. Em linhas semelhantes, diz-se que Deus é o verdadeiro (ou seja, o
único em 2 Cr. 15:3). No entanto, uma frase paralela em Sl. 31:5 refere-se ao Senhor
como “confiável”, assim, acrescenta uma dimensão ética pela qual Ele garante
padrões morais e legais. Deus pratica a verdade (Neemias 9:33), dá leis
verdadeiras (Neemias 9:13), dá ordens válidas (Salmos 111:7), jura a verdade
(Salmos 132:11) e mantém a norma da veracidade para sempre (Sl 146:6). O
elemento de confiança, baseado no caráter de Deus, encontra expressão plena em
2Sm. 7:28: “Tu és Deus, e as tuas palavras são verdadeiras” (Kittel, Friedrich,
& Bromiley. Theological
dictionary of the New Testament,
p.37).
ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (14:6)
Com estas perspectivas em foco
observemos um caso presente em João em que o caráter ontológico da verdade
aparece. O contexto de Jo.14:6 traz apontamentos quanto a identificação de
Jesus como “o caminho”. Como destaca Beasley Murray: “a passagem continua o
chamado para crer presente no v.1 e a garantia dada nos vs. 2–3, desenvolvendo
o pensamento do caminho para o objetivo da ‘ida’ e ‘vinda’ de Jesus” (Beasley-Murray.
Vol. 36: Word Biblical Commentary: John. Word Biblical Commentary,
p.251). Nesta dinâmica argumentativa da narrativa o Senhor Jesus afirma: ἐγώ
εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (“eu
mesmo sou a verdade...” 14:6). Mas, como entender esta “verdade”? Observemos
alguns pontos explicativos.
Em primeiro lugar, Köstenberger afirma:
“conhecer a verdade e ter vida além da sepultura uma das grandes aspirações da
humanidade. Como João nos diz, somente em Jesus esses anseios humanos mais
profundos podem ser realizados. Pois ele em sua própria essência é verdade e
vida (KÖSTENBERGER. John. Baker Exegetical Commentary on the New Testament,
p.429). Em segundo lugar, Jesus é a verdade, porque encarna a revelação
suprema de Deus - ele mesmo 'narra' Deus (1:18), diz e faz exclusivamente o que
o Pai lhe dá para dizer e fazer (5:19; 8:29), de fato ele é propriamente
chamado de Deus (1:1,18; 20:28). Ele é a auto-revelação graciosa de Deus, sua Palavra,
feita carne (1:14). Jesus é a vida (1:4), aquele que tem “a vida em si mesmo
(5:26), a ressurreição e a vida' (11:25), o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1
Jo. 5:20). Somente porque é a verdade e a vida, Jesus pode ser o caminho para
que outros cheguem a Deus (Carson. The Gospel According to John, p.491).
Em terceiro lugar, “verdade e vida” correspondem aos papéis de Jesus
neste Evangelho como revelador e doador (de vida). Somente Deus é “verdade e
vida”, e quando nossa rebelião nos separou d’Ele, mergulhamos na ignorância e
na morte. Segue-se que o caminho para o Pai, requerendo tanto revelação, devido
à nossa ignorância, quanto vida, devido à nossa morte. Essa ideia é clara no
Antigo Testamento e foi abordada pela entrega da Torá e pela atividade dos
legisladores, profetas e sábios. Mas, este versículo mostra como o cumprimento
de Jesus dos papéis de revelador e doador de vida é único. A unidade de Jesus
com o Pai significa que ele não é apenas um legislador, profeta ou sábio que
transmite a verdade de Deus, mas, como Deus, ele é a verdade. Da mesma forma, não
é simplesmente alguém por meio de quem o Senhor resgata seu povo. Em vez disso,
foi o agente da criação de toda a vida (1:3-4), e o Pai deu a ele para ter vida
em si mesmo, como o próprio Deus (5:26). Aqui Jesus, como o próprio Deus, é
verdade e vida, mas permanece distinto d’Ele e é o caminho para Ele (WHITACRE. Vol.
4: John. The IVP New Testament commentary series, p.351). Em quarto
lugar, Bernard é sintético em postular: “tanto a exclusividade quanto a
inclusão (cf. Cl. 2:3) da reivindicação ἐγώ εἰμι … ἡ ἀλήθεια (“eu mesmo sou a verdade”)
que são completamente joaninas. Isso é dizer muito mais do que admitir, como os
fariseus fizeram, que Jesus ensinou τὴν ὁδὸν τοῦ θεοῦ ἐπʼ ἀληθείας (“o caminho sobre a
verdade”, Mc. 12:14, Mt. 22:16, Lc. 20:21; BERNARD. A Critical and Exegetical Commentary
on the Gospel according to St. John, Vol.2, p.537). Finalmente, Westcott
expõe: “[a verdade] na qual se resume tudo o que é eterno e absoluto nos
fenômenos mutáveis do ser finito” (8:32, 1:14, 1:17; 1 Jo.5:6 em conexão com o
cap. 14:26; Ef. 4:21; Westcott. The Gospel According to St. John Introduction and notes
on the Authorized version. 1908, p.202).
Esta pequena trajetória tem finalidade limitada em sua proposta. Entretanto, podemos ver nela um aspecto importante da verdade vista pela exegese como algo ontológico (verdade encarnada). Tal perspectiva tem considerações de significado expostas em dinâmicas construídas por alguns estudiosos. Assim, para o cristianismo a “verdade” não é só uma proposição, mas uma pessoa que expressou, encarnou e pregou a verdade.