segunda-feira, 21 de novembro de 2022

 

       A “Verdade” (ἀλήθεια) em seu caráter ontológico exposta no evangelho de João: Algumas Considerações Conceituais.

   



       Este ensaio trará certos apontamentos conceituais sobre a “verdade” (ἀλήθεια) em seu caráter ontológico delimitados pelo evangelho de João. Tal análise passa pela importância epistemológica/pedagógica do conceito em foco num tempo em que a “pós- verdade” faz parte da chancela de alguns pensadores. A “verdade” tem recebido tratos distintos, porquanto tem sido vista simplesmente como uma metáfora, uma forma de imposição ou uma manipulação hermenêutica do texto bíblico (ver THISELTON. Interpreting God and Postmodern on meaning, manipulation and promisse, pp.3-9) As falas dos ateus literários partem de negações metafísicas quanto a presença pessoal de Deus como consolidador, produtor de significado e desta forma, soberano sobre a verdade. A problemática em voga passa pelo caráter ontológico desta “verdade” ligada a Cristo (ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια), pois como entendê-la?  

      O substantivo ἀλήθεια (lê-se: alétheia) aparece 109 vezes no NT (muitas outras na LXX). Em seu background ἀλήθεια (lê-se: alétheia) ligada ao uso do grego antigo, funciona como uma forma privativa derivada dos verbos: λανθάνω/ λήθω (“ocultar algo de alguém, estar oculto”). Em síntese podemos pensar em algumas traduções (grego clássico), inicialmente como: “verdade em oposição a mentira ou mera aparência, posteriormente [verdade] também realidade” (Liddell., Scott & McKenzie. A Greek-English lexicon, p. 63). Desta forma, refere-se às coisas como são, mas sempre aquilo expresso; falar em ἀλήθεια (lê-se: alétheia)  era afirmar em algo “como é”. Desta forma, neste período clássico, pode ser vista como a revelação do estado de coisas que se exibem por si mesmas e, portanto, percebidas em sua realidade; além disso, e em completa continuidade com o uso antigo, poderia indicar a realidade e a essencialidade ou correção da afirmação do discurso revelador. Assim, na medida em que ἀλήθεια (lê-se: alétheia)  revela a disposição do falante, significa veracidade (Balz & Schneider. Exegetical dictionary of the New Testament, Vol.1, p.58).

     Num segundo momento precisamos observar pelo viés do AT. Neste viés, denota uma realidade que é firme, sólida, obrigatória e, portanto, verdadeira. Com referência a pessoas, caracteriza sua ação, fala ou pensamento e sugere integridade. Na lei, a palavra é usada para a verdade real de uma causa ou processo conforme mostrado pelos fatos (cf. Dt. 22:20; 1Rs.10:6; Dn.10:1). Apenas raramente há um uso mais abstrato, por exemplo, em Gn.4:16 (“se é como diz” ou “se há alguma verdade em ti”). Normalmente, os fatos estabelecem uma questão além da objeção, como também no caso da palavra de Deus (cf. 1 Rs.17:24; Jr.23:28). A consideração pelos fatos é indispensável para a distribuição correta da justiça (Zc.7:9; 8:16). Além disso, pode ser vista como uma extensão desse uso é para fatos mais gerais que exigem reconhecimento por todas as pessoas como realidade, como o estado normal correspondente à ordem divina e humana. O uso religioso corre paralelo ao legal, mas não é apenas uma aplicação figurativa dele. Muitas vezes denota uma realidade religiosa que não precisa ser explicada pelo uso forense. Os justos baseiam sua atitude para com Deus na verdade incontestável e praticam a veracidade como o próprio Senhor é verdadeiro (cf. Sl. 51:6). Aqueles que estão qualificados para “habitar no monte de Deus falam a verdade no coração”, ou seja, têm a mente voltada para isso (Sl.15:2). A verdade está ligada ao conhecimento de Deus (Os.4:1). Se é fundamentalmente uma atitude, o elemento racional no uso legal o vincula à instrução na lei, ou seja, nas Escrituras (Sl 119:160), pois as ordenanças de Deus são verdadeiras (Sl 19:9). Assim, andar na verdade pode ser ensinado (Sl 86:11). A verdade também pode ser colocada em oposição ao engano (cf. Ml. 2:6; Pv. 11:8; 12:19). Expressões poéticas têm verdade brotando do chão ou caindo na rua (Sl. 85:11; Is. 59:14), mas quando é dito que foi lançado ao chão em Dn. 8:12 parece ser igualado à verdadeira religião. Em linhas semelhantes, diz-se que Deus é o verdadeiro (ou seja, o único em 2 Cr. 15:3). No entanto, uma frase paralela em Sl. 31:5 refere-se ao Senhor como “confiável”, assim, acrescenta uma dimensão ética pela qual Ele garante padrões morais e legais. Deus pratica a verdade (Neemias 9:33), dá leis verdadeiras (Neemias 9:13), dá ordens válidas (Salmos 111:7), jura a verdade (Salmos 132:11) e mantém a norma da veracidade para sempre (Sl 146:6). O elemento de confiança, baseado no caráter de Deus, encontra expressão plena em 2Sm. 7:28: “Tu és Deus, e as tuas palavras são verdadeiras” (Kittel, Friedrich, & Bromiley. Theological dictionary of the New Testament, p.37).

  ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (14:6)

     Com estas perspectivas em foco observemos um caso presente em João em que o caráter ontológico da verdade aparece. O contexto de Jo.14:6 traz apontamentos quanto a identificação de Jesus como “o caminho”. Como destaca Beasley Murray: “a passagem continua o chamado para crer presente no v.1 e a garantia dada nos vs. 2–3, desenvolvendo o pensamento do caminho para o objetivo da ‘ida’ e ‘vinda’ de Jesus” (Beasley-Murray. Vol. 36: Word Biblical Commentary: John. Word Biblical Commentary, p.251). Nesta dinâmica argumentativa da narrativa o Senhor Jesus afirma: ἐγώ εἰμι [...] ἡ ἀλήθεια... (“eu mesmo sou a verdade...” 14:6). Mas, como entender esta “verdade”? Observemos alguns pontos explicativos.

      Em primeiro lugar, Köstenberger afirma: “conhecer a verdade e ter vida além da sepultura uma das grandes aspirações da humanidade. Como João nos diz, somente em Jesus esses anseios humanos mais profundos podem ser realizados. Pois ele em sua própria essência é verdade e vida (KÖSTENBERGER. John. Baker Exegetical Commentary on the New Testament, p.429). Em segundo lugar, Jesus é a verdade, porque encarna a revelação suprema de Deus - ele mesmo 'narra' Deus (1:18), diz e faz exclusivamente o que o Pai lhe dá para dizer e fazer (5:19; 8:29), de fato ele é propriamente chamado de Deus (1:1,18; 20:28). Ele é a auto-revelação graciosa de Deus, sua Palavra, feita carne (1:14). Jesus é a vida (1:4), aquele que tem “a vida em si mesmo (5:26), a ressurreição e a vida' (11:25), o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1 Jo. 5:20). Somente porque é a verdade e a vida, Jesus pode ser o caminho para que outros cheguem a Deus (Carson. The Gospel According to John, p.491). Em terceiro lugar, “verdade e vida” correspondem aos papéis de Jesus neste Evangelho como revelador e doador (de vida). Somente Deus é “verdade e vida”, e quando nossa rebelião nos separou d’Ele, mergulhamos na ignorância e na morte. Segue-se que o caminho para o Pai, requerendo tanto revelação, devido à nossa ignorância, quanto vida, devido à nossa morte. Essa ideia é clara no Antigo Testamento e foi abordada pela entrega da Torá e pela atividade dos legisladores, profetas e sábios. Mas, este versículo mostra como o cumprimento de Jesus dos papéis de revelador e doador de vida é único. A unidade de Jesus com o Pai significa que ele não é apenas um legislador, profeta ou sábio que transmite a verdade de Deus, mas, como Deus, ele é a verdade. Da mesma forma, não é simplesmente alguém por meio de quem o Senhor resgata seu povo. Em vez disso, foi o agente da criação de toda a vida (1:3-4), e o Pai deu a ele para ter vida em si mesmo, como o próprio Deus (5:26). Aqui Jesus, como o próprio Deus, é verdade e vida, mas permanece distinto d’Ele e é o caminho para Ele (WHITACRE. Vol. 4: John. The IVP New Testament commentary series, p.351). Em quarto lugar, Bernard é sintético em postular: “tanto a exclusividade quanto a inclusão (cf. Cl. 2:3) da reivindicação ἐγώ εἰμι ἀλήθεια (“eu mesmo sou a verdade”) que são completamente joaninas. Isso é dizer muito mais do que admitir, como os fariseus fizeram, que Jesus ensinou τὴν ὁδὸν τοῦ θεοῦ ἐπʼ ἀληθείας (“o caminho sobre a verdade”, Mc. 12:14, Mt. 22:16, Lc. 20:21; BERNARD. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. John, Vol.2, p.537). Finalmente, Westcott expõe: “[a verdade] na qual se resume tudo o que é eterno e absoluto nos fenômenos mutáveis do ser finito” (8:32, 1:14, 1:17; 1 Jo.5:6 em conexão com o cap. 14:26; Ef. 4:21; Westcott. The Gospel According to St. John Introduction and notes on the Authorized version. 1908, p.202).

    Esta pequena trajetória tem finalidade limitada em sua proposta. Entretanto, podemos ver nela um aspecto importante da verdade vista pela exegese como algo ontológico (verdade encarnada). Tal perspectiva tem considerações de significado expostas em dinâmicas construídas por alguns estudiosos. Assim, para o cristianismo a “verdade” não é só uma proposição, mas uma pessoa que expressou, encarnou e pregou a verdade.  

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