sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

 

 O ENIGMÁTICO666” de Ap.13:18 ANALIZADO EXEGÉTICAMENTE

 


                             A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]

 

Talvez nenhum versículo da Bíblia tenha sido objeto de maior especulação do que Ap.13:18. O número da besta esteve relacionado ao longo dos séculos com, literalmente, centenas de possibilidades diferentes (OSBORNE. Comentário Exegético Apocalipse, p.582).

 

    O número 666 tem sido tratado de forma enigmática ao extremo. Corrobora com isso, certas escolas de interpretação que entendem o Apocalipse literalmente. Por esta razão, se fala na “marca da besta” como algo que será implantado num período futuro. Entretanto, devemos pensar outra alternativa exegética que lê o 666, com pressupostos hermenêuticos distintos. Não podemos negar a dificuldade presente nesse trato, desafiando uma exaustiva identificação. Nesse ensaio será defendido: [1] o fundamento simbólico do “666”, a partir do aspecto formal do gênero literário apocalíptico e da análise exegética do verbo “σημαίνω (semaíno) em Ap.1:1; [2] o desenvolvimento progressivo do contexto de 13:18, reduzido a 12:1 e [3] o modo de leitura, a partir da forma histórico-redentora de idealismo modificado” (Eclético) como pressuposto na abordagem de interpretação.    

     Antes de trabalharmos com a identificação do 666 presente em Ap.13:18, devemos nos posicionar quanto a definição de seu uso ser simbólico ou literal. A resposta passa pela identificação das abordagens de interpretação, pois nelas temos quadros de referência singulares defendidos. Assim, nestas percepções interpretativas “preterista, futurista, historicista, idealista e eclética” (ou “forma histórico-redentora de idealismo modificado”) os símbolos (como o 666) serão pensados de maneiras distintas. Além disso, os aspectos formais do gênero apocalíptico resumem-se basicamente a relatos de visões, mediadores de outro mundo e linguagem simbólica (KOSTENBERGER; PATTERSON. Convite a Intepretação Bíblica, p.482).[2] Por esta razão, quando lemos a descrição de Cristo exposta em Ap.1:10-17 ou em 5:1-14 devemos pensa-las simbolicamente e o mesmo deve ocorrer com os outros relatos deste livro. Beale corrobora com esta tese, quando explica que o próprio verbo usado em 1:1 (σημαίνω - semaíno) traz a ideia de uma “comunicação por símbolos”. Essa percepção está baseada na direção do “ἀποκάλυψις (apokálypsis – “revelação”) e na forma de transmiti-lo:

 DIREÇÃO/PROPÓSITO DA REVELAÇÃO: Αποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ [...] δεῖξαι τοῖς δούλοις αὐτοῦ [Revelação de Jesus Cristo [...] para mostrar aos seus servos]

MODO DE ENTREGA DA REVELAÇÃO: καὶ ἐσήμανεν ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃ [e enviando por meio de seu anjo comunicou ao seu servo João]. 

    Além disso, Beale vê o paralelo com o AT no uso simbólico de “σημαίνω (semaíno) em Dn.2 (2:15,23,30,45 - LXX), definindo o uso em Ap.1:1. Neste caso, como referência a uma comunicação simbólica e (σημαίνω - semaíno), não meramente um transporte geral de informações (BEALE: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, p. 51).

    Com o pressuposto que afirma o aspecto simbólico do Apocalipse, nos voltemos a identificação do “666”. Para tal tarefa observemos o contexto de 13:18. Nesse caso, a delimitação do discurso usada nesse ensaio é reportada a identificação das máximas oriundas de Ap.12, sendo tratadas progressivamente até 13:18. Beale as define assim: [A] como resultado da vitória de Cristo sobre o diabo, Deus protege a comunidade messiânica contra a ira diabólica (12:1-17) – [B] Os crentes são exortados a discernir sobre falsidade e a não participar do culto falso, propagado pelo diabo e seus aliados mundanos, de modo a manter sua fé (12:18-13:18 - BEALE: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, xiii). Essa transição do cap.12 para o 13 é a questão em foco, por esta razão, de forma mais pormenorizada olharmos para a tratativa de David Aune:

A mulher, o dragão e a criança (11:19-12:17)

a.    Manifestações divinas introdutórias (11:19)

b.    Introdução do dramatis personae: a mulher grávida e o dragão (12:1-4a)

c.    A primeira estágio do conflito: o nascimento e a fuga da criança e o voo da mulher (12:4b-6)

d.    O segundo estágio do conflito: a derrota do dragão e seus efeitos positivos e negativos (12:7-12)

e.    O terceiro estágio do conflito: o dragão persegue a mulher e sua prole (12:13-17)

Visão das duas bestas (12:17-13:18)

a.    Transição introdutória: o dragão ficou na areia do mar (12:17)

b.    O surgimento da primeira besta do mar (13:1-10)

c. Outra besta brota da terra (13:11-18 [AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 6-16, p. 657-660,722]).

   Nossa questão é justamente essa transição do cap.12 para o 13, pois “as bestas” a serviço do dragão têm como objetivo atacar a igreja. Nesse sentido, o povo de Deus é desafiado em 13:16-18 num contexto de religiosidade marcada por sua malignidade (13:1-15), pois sem a “marca” (χάραγμα khápagma) que é “ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ (eksakósioi eksékonta éks 666) ninguém pode “comprar ou vender”. Diante disso, observemos os apontamentos de 13:18: Ὧδε ἡ σοφία ἐστίν. ὁ ἔχων νοῦν ψηφισάτω τὸν ἀριθμὸν τοῦ θηρίου, ἀριθμὸς γὰρ ἀνθρώπου ἐστίν, καὶ ὁ ἀριθμὸς αὐτοῦ ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ.(“aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem e o seu número é seiscentos e sessenta e seis). O grau de oposição a igreja é notório e o ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ (eksakósioi eksékonta éks - 666), segundo Kistemaker indica “incompletude” (diferente do sete) e “juízo” (sexto selo, trombeta e taça). Embora o diabo tenha tentando eliminar todo o povo de Deus desde a morte de Abel até o presente nunca foi bem sucedido. Em conclusão o número 666 pertence a Satanás, e não a um indivíduo em particular que faz a obra do diabo na história (KISTEMAKER. Apocalipse, p.514 – ABORDAGEM IDEALISTA). De outro lado, com o pressuposto da gematria[3] Bratcher afirma que tem sido amplamente aceito que o 666 representa o imperador romano Nero. Escrito em letras hebraicas, o valor numérico das letras do nome (latino) “Neron Caesar” soma 666 (BRATCHER; HATTON: A Handbook on the Revelation to John, p. 20 – ABORDAGEM PRETERISTA). Osborne que trabalha numa abordagem futurista, define esse tempo como “período da tribulação final da história” [...] mesmo assim, afirma especificamente sobre o 666: “somente os leitores do primeiro século sabiam, ainda que seja difícil afirmar quanto disso eles sabiam (OSBORNE. Comentário Exegético Apocalipse, p.584).

   É importante observar que existe algo de proeminência maior sendo tratado (a perseguição, oposição e imperativo idólatra), uma dinâmica de resposta descrita no Apocalipse neste quesito. Observamos isso, em 15:2, de maneira que  João vê “os vencedores da besta, do número do seu nome e de sua imagem, entoando o cântico de Moisés”, já em 20:4 “as almas dos decapitados que não adoraram a besta”, numa contraposição em 14:11; 19:20 a condenação está em foco dirigida aos adoradores da besta. Essa dinâmica que descreve a diferença entre a comunidade dos santos e os ímpios o que não pertence a um período histórico distinto, pois está limitada temporalmente ou figuradamente ao tempo da escatologia futura. Por essa razão, a abordagem Idealista parece ser a melhor resposta, evitando as personificações. Entretanto, de outro lado parece claro que a perseguição dirigida a igreja tinha nomes relacionados claramente. Por esta razão, a limitação reducionista (preterista, futurista) dos eventos descritos no Apocalipse não reproduz seu propósito. Assim, quando lemos o 666 simbolicamente na “FORMA HISTÓRICO-REDENTORA DO IDEALISMO MODIFICADO”,[4] identificamos uma descrição da perseguição presente no 1º século (talvez por causa do culto ao imperador), mas também em tantas outras sofridas nos “últimos dias”. O local da marca (χάραγμα khápagma) nos ajuda nesse sentido, pois “a testa” representa um compromisso ideológico e a “mão”, as consequências deste compromisso (Êx.13:16; Dt.6:8; 11:18), isso visto em antítese a 7:2,3 (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.1375). Essa dualidade é definida primeiramente pela eleição (Ap.13:8; 17:14; 14:11; 19:20) e posteriormente por seus efeitos,  definindo as respostas supracitadas que são fundamentos imutáveis.

     Portanto, em primeiro lugar, o 666 nada tem a ver com uma marca literal. Sua questão é simbólica e aponta para o compromisso ou descompromisso com a religião apóstata (baseada no critério da eleição) que nos “últimos dias” (1ª a 2ª vinda de Cristo) estará sempre presente como inimiga da igreja. A dinâmica do 666 foca o ataque ao povo de Deus, exigindo um compromisso fiel e exclusivo que pode ser dirigido unicamente ao Senhor. É verdade também que a identificação de modo exaustivo numa visão preterista (ligado aos leitores originais) não é possível. Entretanto, é certa percepção que nos une, independentemente do tempo, ou seja, os imperativos divinos descritos na Palavra de Deus. Nossos irmãos foram ameaçados com isso e nós também. Por isso, o “666” como convite antagônico a vontade do Senhor esteve, está e estará diante da igreja até a volta de Cristo. A falsa religiosidade antagônica ao verdadeiro evangelho é a arma do diabo para convencer, destruir e desviar o homem do grande Deus. Aqui encontramos a marca da besta: “666”.


[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

[2] Essa é uma parte quanto ao gênero, pois os estudiosos atribuem três ao Apocalipse: epistolar, profético e apocalíptico.

[3] 666 também poderia ser concebido como um contraste com 888, o valor numérico por gematria do nome "Jesus".

[4] Uma versão mais viável e modificada da perspectiva idealista reconheceria uma consumação final na salvação e no julgamento. Talvez seja melhor chamar essa quinta visão de "ecletismo". Portanto, nenhum evento histórico profetizado específico é discernido no livro, exceto para a vinda final de Cristo para entregar e julgar e estabelecer a forma final do reino em uma nova criação consumada - embora existam algumas exceções a esta regra. O Apocalipse retrata simbolicamente eventos ao longo da história, entendidos como sendo sob a soberania do Cordeiro como resultado de sua morte e ressurreição. Ele guiará os eventos retratados até que eles finalmente emitam no último julgamento e no estabelecimento definitivo de seu reino. Isso significa que eventos específicos ao longo da idade que se estendem da primeira vinda de Cristo para o segundo deles podem ser identificados com uma narrativa ou símbolo. Podemos chamar essa era inaugurada pela primeira vinda de Cristo e concluída por sua aparição final "a era da igreja", "a era interadvenual" ou "os últimos dias". A maioria dos símbolos no livro são transtemporais no sentido de que eles são aplicáveis aos eventos ao longo da "era da igreja" (veja a seção abaixo sobre "Interpretação do simbolismo"). Portanto, os historicistas às vezes podem estar certos em suas identificações históricas precisas, mas errados ao limitar a identificação apenas a uma realidade histórica. O mesmo veredicto pode ser passado na escola preterista do pensamento, especialmente a versão romana, pois certamente há profecias do futuro na Revelação. A tarefa crucial e problemática do intérprete é identificar através da exegese cuidadosa e contra o contexto histórico original esses textos que pertencem respectivamente ao passado, ao presente e ao futuro. BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans;  Paternoster Press, 1999, pp.48,49.

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