O ENIGMÁTICO “666”
de Ap.13:18 ANALIZADO EXEGÉTICAMENTE
A Deo docetur,
Deum docet, ad Deum ducit[1]
Talvez nenhum versículo da Bíblia tenha sido
objeto de maior especulação do que Ap.13:18. O número da besta esteve relacionado
ao longo dos séculos com, literalmente, centenas de possibilidades diferentes
(OSBORNE. Comentário Exegético Apocalipse,
p.582).
O número 666 tem sido tratado de forma enigmática ao extremo. Corrobora com isso, certas escolas de interpretação que entendem o Apocalipse literalmente. Por esta razão, se fala na “marca da besta” como algo que será implantado num período futuro. Entretanto, devemos pensar outra alternativa exegética que lê o 666, com pressupostos hermenêuticos distintos. Não podemos negar a dificuldade presente nesse trato, desafiando uma exaustiva identificação. Nesse ensaio será defendido: [1] o fundamento simbólico do “666”, a partir do aspecto formal do gênero literário apocalíptico e da análise exegética do verbo “σημαίνω” (semaíno) em Ap.1:1; [2] o desenvolvimento progressivo do contexto de 13:18, reduzido a 12:1 e [3] o modo de leitura, a partir da “forma histórico-redentora de idealismo modificado” (Eclético) como pressuposto na abordagem de interpretação.
Antes de trabalharmos com a identificação
do 666 presente em Ap.13:18, devemos nos posicionar quanto a definição de seu uso
ser simbólico ou literal. A
resposta passa pela identificação das abordagens de interpretação, pois nelas
temos quadros de referência singulares defendidos. Assim, nestas percepções
interpretativas “preterista, futurista, historicista, idealista e eclética” (ou
“forma histórico-redentora de idealismo
modificado”) os símbolos (como o 666) serão pensados de maneiras distintas.
Além disso, os aspectos formais do gênero apocalíptico resumem-se basicamente a
relatos de visões, mediadores de outro mundo e linguagem simbólica
(KOSTENBERGER; PATTERSON. Convite a
Intepretação Bíblica, p.482).[2]
Por esta razão, quando lemos a descrição de Cristo exposta em Ap.1:10-17 ou em
5:1-14 devemos pensa-las simbolicamente e o mesmo deve ocorrer com os outros
relatos deste livro. Beale corrobora com esta tese, quando explica que o
próprio verbo usado em 1:1 (σημαίνω - semaíno) traz a ideia de uma “comunicação por símbolos”. Essa
percepção está baseada na direção do “ἀποκάλυψις” (apokálypsis – “revelação”) e na forma de transmiti-lo:
MODO DE ENTREGA DA REVELAÇÃO: καὶ ἐσήμανεν
ἀποστείλας διὰ τοῦ ἀγγέλου αὐτοῦ τῷ δούλῳ αὐτοῦ Ἰωάννῃ ”[e
enviando por meio de seu anjo comunicou ao seu servo João].
Além
disso, Beale vê o paralelo com o AT no uso simbólico de “σημαίνω” (semaíno) em Dn.2 (2:15,23,30,45 - LXX), definindo
o uso em Ap.1:1. Neste caso, como referência a uma comunicação simbólica e (σημαίνω - semaíno), não
meramente um transporte geral de informações (BEALE: The Book of Revelation: A
Commentary on the Greek Text, p. 51).
Com o
pressuposto que afirma o aspecto simbólico do Apocalipse, nos voltemos a
identificação do “666”. Para tal tarefa observemos o contexto de 13:18.
Nesse caso, a delimitação do discurso usada nesse ensaio é reportada a
identificação das máximas oriundas de Ap.12, sendo tratadas progressivamente
até 13:18. Beale as define assim: [A]
como resultado da vitória de Cristo sobre o diabo, Deus protege a comunidade
messiânica contra a ira diabólica (12:1-17) – [B] Os crentes são exortados a discernir sobre falsidade e a não
participar do culto falso, propagado pelo diabo e seus aliados mundanos, de
modo a manter sua fé (12:18-13:18 - BEALE: The Book of
Revelation: A Commentary on the Greek
Text, xiii). Essa transição do cap.12
para o 13 é a questão em foco, por esta razão, de forma mais pormenorizada
olharmos para a tratativa de David Aune:
A mulher,
o dragão e a criança (11:19-12:17)
a.
Manifestações divinas
introdutórias (11:19)
b.
Introdução do dramatis personae: a mulher grávida e o
dragão (12:1-4a)
c.
A primeira estágio do
conflito: o nascimento e a fuga da criança e o voo da mulher (12:4b-6)
d.
O segundo estágio do
conflito: a derrota do dragão e seus efeitos positivos e negativos (12:7-12)
e.
O terceiro estágio do
conflito: o dragão persegue a mulher e sua prole (12:13-17)
Visão das duas bestas (12:17-13:18)
a.
Transição introdutória: o dragão ficou na areia do
mar (12:17)
b.
O surgimento da primeira besta do mar (13:1-10)
c. Outra
besta brota da terra (13:11-18 [AUNE.
Word Biblical Commentary: Revelation 6-16, p. 657-660,722]).
Nossa
questão é justamente essa transição do cap.12 para o 13, pois “as bestas” a
serviço do dragão têm como objetivo atacar a igreja. Nesse sentido, o povo de
Deus é desafiado em 13:16-18 num contexto de religiosidade marcada por sua
malignidade (13:1-15), pois sem a “marca” (χάραγμα – khápagma) que é “ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ” (eksakósioi
eksékonta éks 666) ninguém pode “comprar ou vender”. Diante disso, observemos
os apontamentos de 13:18: Ὧδε ἡ σοφία ἐστίν. ὁ ἔχων νοῦν ψηφισάτω τὸν ἀριθμὸν τοῦ
θηρίου, ἀριθμὸς γὰρ ἀνθρώπου ἐστίν, καὶ ὁ ἀριθμὸς αὐτοῦ ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ.(“aqui está a sabedoria. Aquele que tem
entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem e o seu número é
seiscentos e sessenta e seis”). O grau de oposição a igreja é notório
e o “ἑξακόσιοι ἑξήκοντα ἕξ” (eksakósioi
eksékonta éks - 666),
segundo Kistemaker indica “incompletude” (diferente do
sete) e “juízo” (sexto selo, trombeta e taça). Embora o diabo tenha tentando
eliminar todo o povo de Deus desde a morte de Abel até o presente nunca foi bem
sucedido. Em conclusão o número 666 pertence a Satanás, e não a um
indivíduo em particular que faz a obra do diabo na história (KISTEMAKER.
Apocalipse, p.514 – ABORDAGEM IDEALISTA). De outro lado, com o pressuposto
da gematria[3]
Bratcher afirma que tem sido amplamente aceito que o 666 representa o imperador
romano Nero. Escrito em letras hebraicas, o valor numérico das letras do nome
(latino) “Neron Caesar” soma 666 (BRATCHER; HATTON: A Handbook on the Revelation to John, p. 20 – ABORDAGEM PRETERISTA).
Osborne que trabalha numa abordagem futurista, define esse tempo como “período
da tribulação final da história” [...] mesmo assim, afirma especificamente
sobre o 666: “somente os leitores do primeiro século sabiam, ainda que seja
difícil afirmar quanto disso eles sabiam (OSBORNE. Comentário Exegético
Apocalipse, p.584).
É importante observar que existe algo de
proeminência maior sendo tratado (a perseguição, oposição e imperativo
idólatra), uma dinâmica de resposta descrita no Apocalipse neste quesito.
Observamos isso, em 15:2, de maneira que João vê “os
vencedores da besta, do número do seu nome e de sua imagem, entoando o cântico
de Moisés”, já em 20:4 “as
almas dos decapitados que não adoraram a besta”, numa contraposição em
14:11; 19:20 a condenação está em foco
dirigida aos adoradores da besta. Essa dinâmica que descreve a
diferença entre a comunidade dos santos e os ímpios o que não pertence a um
período histórico distinto, pois está limitada temporalmente ou figuradamente
ao tempo da escatologia futura. Por essa razão, a abordagem Idealista parece
ser a melhor resposta, evitando as personificações. Entretanto, de outro lado
parece claro que a perseguição dirigida a igreja tinha nomes relacionados
claramente. Por esta razão, a limitação reducionista (preterista, futurista) dos
eventos descritos no Apocalipse não reproduz seu propósito. Assim, quando lemos
o 666 simbolicamente na “FORMA
HISTÓRICO-REDENTORA DO IDEALISMO MODIFICADO”,[4] identificamos
uma descrição da perseguição presente no 1º século (talvez por causa do culto
ao imperador), mas também em tantas outras sofridas nos “últimos dias”. O local
da marca (χάραγμα – khápagma) nos ajuda nesse sentido, pois “a testa” representa um
compromisso ideológico e a “mão”, as consequências deste compromisso (Êx.13:16;
Dt.6:8; 11:18), isso visto em antítese a 7:2,3 (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento, p.1375). Essa dualidade é definida primeiramente pela
eleição (Ap.13:8; 17:14; 14:11; 19:20) e posteriormente por seus efeitos, definindo as respostas supracitadas que são
fundamentos imutáveis.
Portanto, em primeiro lugar, o 666 nada tem a ver com uma marca literal. Sua questão é simbólica e aponta para o compromisso ou descompromisso com a religião apóstata (baseada no critério da eleição) que nos “últimos dias” (1ª a 2ª vinda de Cristo) estará sempre presente como inimiga da igreja. A dinâmica do 666 foca o ataque ao povo de Deus, exigindo um compromisso fiel e exclusivo que pode ser dirigido unicamente ao Senhor. É verdade também que a identificação de modo exaustivo numa visão preterista (ligado aos leitores originais) não é possível. Entretanto, é certa percepção que nos une, independentemente do tempo, ou seja, os imperativos divinos descritos na Palavra de Deus. Nossos irmãos foram ameaçados com isso e nós também. Por isso, o “666” como convite antagônico a vontade do Senhor esteve, está e estará diante da igreja até a volta de Cristo. A falsa religiosidade antagônica ao verdadeiro evangelho é a arma do diabo para convencer, destruir e desviar o homem do grande Deus. Aqui encontramos a marca da besta: “666”.
[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a
Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).
[2]
Essa é uma parte quanto ao gênero, pois os estudiosos atribuem três ao
Apocalipse: epistolar, profético e apocalíptico.
[3]
666 também poderia ser concebido como um contraste com 888, o valor numérico
por gematria do nome "Jesus".
[4] Uma versão mais viável e modificada da perspectiva idealista reconheceria uma consumação final na salvação e no julgamento. Talvez seja melhor chamar essa quinta visão de "ecletismo". Portanto, nenhum evento histórico profetizado específico é discernido no livro, exceto para a vinda final de Cristo para entregar e julgar e estabelecer a forma final do reino em uma nova criação consumada - embora existam algumas exceções a esta regra. O Apocalipse retrata simbolicamente eventos ao longo da história, entendidos como sendo sob a soberania do Cordeiro como resultado de sua morte e ressurreição. Ele guiará os eventos retratados até que eles finalmente emitam no último julgamento e no estabelecimento definitivo de seu reino. Isso significa que eventos específicos ao longo da idade que se estendem da primeira vinda de Cristo para o segundo deles podem ser identificados com uma narrativa ou símbolo. Podemos chamar essa era inaugurada pela primeira vinda de Cristo e concluída por sua aparição final "a era da igreja", "a era interadvenual" ou "os últimos dias". A maioria dos símbolos no livro são transtemporais no sentido de que eles são aplicáveis aos eventos ao longo da "era da igreja" (veja a seção abaixo sobre "Interpretação do simbolismo"). Portanto, os historicistas às vezes podem estar certos em suas identificações históricas precisas, mas errados ao limitar a identificação apenas a uma realidade histórica. O mesmo veredicto pode ser passado na escola preterista do pensamento, especialmente a versão romana, pois certamente há profecias do futuro na Revelação. A tarefa crucial e problemática do intérprete é identificar através da exegese cuidadosa e contra o contexto histórico original esses textos que pertencem respectivamente ao passado, ao presente e ao futuro. BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1999, pp.48,49.