sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 

Análise exegética de 1Co.5:5: “O autor da tal infâmia [...] seja entregue a Satanás...”

      Valério Nascimento [S.D.G]

A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]

 

O presente ensaio exegético busca analisar 1Co.5:5, pensando no pressuposto reformado, o qual define a intrínseca relação existente entre Doutrina/Escritura. Considera também a discussão desenvolvida nos dias de hoje, tão presente nas percepções dialéticas oriundas de pesquisadores atuais.

           Quando lemos a expressão “entregue a satanás” em 1Co.5:5 estamos diante de uma questão complexa quanto a explicação e definição. Por isso, somos desafiados no trato exegético em questão. Alguns autores nos ajudam em tal elucidação como Calvino, Thiselton, Beale, Carson, Morris, Ridderbos  e Boor, pois suas contribuições exegéticas funcionam como norteadores metodológicos. Esse cuidado com o significado pretendido pelo Autor/autor é de fundamental importância, para rejeitarmos as fantasias teológicas de alguns que atribuem definições para a questão em foco, destituídos da exegese crítica.

           Basicamente serão tratadas três questões que envolvem o “entregue a satanás”: a razão deste pronunciamento (1Co.5:1), a correção da postura indevida da igreja em relação ao fato ocorrido (1Co.5:2) e finalmente, o devido trato com seus desdobramentos distintos.      

I. A razão do “entregue a Satanás” (1Co.5:1).

        Paulo de alguma forma tomou conhecimento (ἀκούεται – lê-se: akúetaié ouvido) que no meio da igreja (ἐν ὑμῖν entre vós)[2], havia “imoralidade” (πορνεία).[3] Thiselton explica que  Paulo usa a palavra “πορνεία”, imoralidade sexual ou uma relação sexual ilícita, seis vezes em 1 Coríntios, das quais cinco ocorrem entre 5–7. Essa tradução ocorre, porque o termo é genérico e inclui várias subcategorias como “μοιχεία” (adultério). A palavra abrange “todo tipo de relação sexual ilegal”.[4] A explicitação disto se dá na afirmação de Paulo: ... “a saber, [que] alguém tem[5] [como companheira] a mulher de seu pai” (“ὥστε γυναῖκά τινα τοῦ πατρὸς ἔχειν).  Diante disso, nosso questionamento contempla a identificação desta mulher: para quem aponta?

      Normalmente se pensa nesta “mulher” (γυνή) como “madrasta”, pois se fosse a mãe, Paulo teria afirmado isso. Esta é uma possibilidade interpretativa, mas, seja como for, o ato em questão de qualquer forma funciona em antítese a vontade de Deus, pois o incesto é reprovado tanto pela Lei Mosaica como pelo Novo Testamento (Lv.18:7,8; Dt.22:30; 27:20; At.15:20,29; 21:25).[6]  Nesse caso, a ligação com o AT especificamente Lv.18:8, funciona como apontamento para a madrasta. Entretanto, os detalhes dessa hedionda relação de imoralidade não são explicitados por Paulo, já que os leitores certamente estariam familiarizados (por exemplo, o pai estava morto, vivo ou divorciado?). É digno de nota que o apóstolo acreditava, à luz de sua confiança em Levítico e Deuteronômio aqui e em 5:13, que este corpo de legislação bíblica da Lei Mosaica ainda se aplicava aos cristãos na igreja de Deus em Corinto.[7]  Para agravar a questão, o apóstolo mostra que isso “não ocorria nem entre os pagãos” (καὶ τοιαύτη πορνεία ἥτις οὐδὲ ἐν τοῖς ἔθνεσιν). Entretanto, isso não significa que os pagãos tinham um padrão moral superior, mas sim que o direito romano (não a lei grega) proibia essa união, mesmo quando o pai estava morto.[8] Assim, esta descrição expõe a seriedade do problema presente na igreja. Mas, como lidaram com isso?

II. A resposta indevida da igreja ao problema. 1Co.5:2.

Infelizmente, a igreja não se posicionou de forma correta ao ato pecaminoso exposto. A descrição usada pelo apóstolo (5:2) chancela isto, pois, “andais vós ensoberbecidos” (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι ἐστὲ)[9] e “não estivestes tristes” (οὐχὶ ἐπενθήσατε), desta forma, estes paralelos contrários expõem o antagonismo em relação ao que devia ser feito. A primeira postura reprovável (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι[10] ἐστὲ) denota o conceito que governava a conduta dos coríntios que estava em antítese a humildade cristã.[11] Quanto a segunda expõe o que eles deixaram de fazer, pois “não entraram[12] num estado de luto”[13]. Morris pensa a partir deste verbo, que Paulo pode estar insinuando, que a igreja perdeu um membro e assim: “deveis estar chorando muito mais a perda de um membro![14] Entretanto, este verbo (πενθέω – “lamento”) é usado outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e arrependimento.[15] Por esta razão, a contestação a tese de Morris passa a ter fundamento. Ainda assim, o elemento reprovável da postura dos corintos está em foco.

A mesma dinâmica antitética continua (5:2), pois, o apóstolo traz uma pergunta retórica, cuja a resposta é negativa. Isso é feito em conexão com as duas posturas reprováveis tratadas anteriormente. Elas não apresentaram o correto resultado, apontado pelo apóstolo: “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας;). Portanto, todas posturas da igreja narradas até agora, foram antagônicas ao padrão divino, tanto do incestuoso como dos restantes. Não houve um trato legitimo da questão exposta. Entretanto, a partir de 5:3 Paulo começa a explicar o que deve ser feito.

III. A instrução de Paulo quanto ao trato legítimo da questão (o que fazer).

Depois dos antagonismos passemos para o trato legitimo. Isso começa a ser feito com a conjunção grega “γάρ (ignorada na ARA, ARC, ACF, NVI). Seu uso conectivo enfático define a justificativa do que foi afirmado no v.2.[16]  Além disso, o constraste pronominal entre “vós” de 5:2 e o “eu” de 5:3 chancela a diferença de posturas. O conteúdo deste trato legítimo envolve alguns momentos definidos estruturalmente, os quais precisam ser analisados com cautela e precisão exegética.

Em primeiro lugar, mesmo “estando Paulo ausente no corpo” (ἀπὼν τῷ σώματι), ainda assim, “estaria presente em espírito” (παρὼν δὲ τῷ πνεύματι). Thiselton explica que estes particípios presentes antitéticos “ἀπών”, (“estando ausente”), e “παρών”, (“estando presente”) são qualificados por dois dativos, isto é, “τῷ σώματι” (“no corpo”), isto é, fisicamente e “τῷ πνεύματι”, (“no espírito”), fora do corpo. Desde o século XIX até o final da década de 1950, a interpretação praticamente unânime, a qual entende “em espírito”, isto é, em um sentido não corporal, porque o contraste semântico entre “σῶμα” (“corpo”) e “πνεῦμα” (“espírito”) foi assumido como refletindo o dualismo clássico mente-corpo ocidental de Platão e Descartes.[17] Morris pensa nisso como uma assembleia disciplinar a ser realizada. Nesse caso Paulo como presidente desta assembleia passou a sentença.[18] Nessa posição o apostolo expos o veredito, pois aquele que cometeu o ato pecaminoso, “já o sentenciei” (ἤδη κέκρικα).

Em segundo lugar, o fundamento de autoridade está em loco, pois o apóstolo mostra que isso é feito “em nome do Senhor Jesus” (ἐν τῷ ὀνόματι τοῦ κυρίου [ἡμῶν] Ἰησοῦ). Além disso, a junção exposta pelo particípio “συναχθέντων (“reunido”) e a preposição “σύν (sýn – “com”) mostra a igreja e Paulo juntamente com “o poder do Senhor Jesus” ligados (Mt.18:20).

Depois destas premissas, em terceiro lugar, o pronunciamento é apresentado: “... entregar tal pessoa a satanás, para a destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor” (5:5).[19] O que isso significa neste contexto: Uma completa apostasia? Ou: apontamento para disciplina (exclusão)?

Três expressões são usadas neste capítulo, focando o afastamento do ofensor: em 5:2: “... fosse afastado do vosso meio” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν), 5:5: “entregar a satanás(παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e 5:13: “expulsai dentre vós” (ἐξάρατε τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν αὐτῶν). Ao lermos estas conexões seremos melhor direcionados. Assim ao analisarmos o “entregar a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e sua complementação, ou seja, “para destruição da carne” (εἰς ὄλεθρον τῆς σαρκός), algumas teses interpretativas podem ser destacadas: 1) maldição-morte, nesse caso a sustentação é que Paulo profere uma maldição que resultará em sofrimento físico e, por fim em morte (1Co.11:30). 2) “entregar o ofendido a satanás” é devolvê-lo a era satânica, fora do ambiente edificante e acolhedor da igreja, onde Deus opera. A carne a ser destruída é a carne pecaminosa (1Co.3:16,17). O homem deve ser excluído da comunidade da fé (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.880).[20]  Calvino explica isso, estabelecendo o seguinte paralelo: “... é por isso que o entrega a Satanás, por que o diabo está fora da igreja como Cristo está na igreja” (CALVINO. As Institutas, p.227). 3). O posicionamento de Herman Ridderbos estabelece quase uma síntese, pois entende que se trata da expulsão formal da igreja (Mt.18:20). Além disso, deve-se entender essa “destruição da carne” como grave aflição física, afetando a vida temporal que acometerá o pecador que foi entregue a Satanás[21] (RIDDERBOS. A Teologia do Apóstolo Paulo, pp.523,524).

Essa percepção guarda ainda uma questão, pois podemos afirmar que o culpado por tal ato pecaminoso era realmente cristão? Boor defende que sim, já que, Satanás obtém poder apenas para a destruição da carne. Pois esse homem é “cristão”. Fez algo terrível, mas de sua parte não se desligou de Jesus. A morte sacrifical de Jesus permanece válida para ele. Por um lado, um pecado tão flagrante, que causou enorme dano para o evangelho entre judeus e gentios e trouxe vergonha ao nome do Senhor, precisa obter um castigo claro. Por outro lado, justamente quando esse castigo for suportado – e ser entregue a Satanás para a destruição da carne é terrível (BOOR. Comentário Esperança, Primeira Carta De Paulo Aos Coríntios; Comentário Esperança, 1 Coríntios, p. 100). Isso é sugerido pela progressão do texto, pois o propósito da disciplina é descrito positivamente (Hb.12:4-13): “... ἵνα τὸ πνεῦμα σωθῇ ἐν τῇ ἡμέρᾳ τοῦ κυρίου (hína tò pneûma sothê en tê heméra tû kyríu – “... para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”). Portanto, o incestuoso foi entregue a condenação temporária, para que fosse salvo eternamente (CALVINO. As Institutas, p.227).

O v.5 apresenta dois propósitos estabelecidos pela preposição “εἰς (eis – “para”) e pela conjunção “ἵνα (hína – “para que”), de maneira que desmembrá-las não seria coerente. Portanto, num primeiro momento o crente foi disciplinado (para a destruição da carne), isso seguido de seu referido objetivo: “a salvação” (para que seja salvo). 

Como foi dito no início esse texto é realmente desafiador, entretanto, alguns caminhos interpretativos expostos nos ajudam. Em suma, sua ênfase é o trato eclesiológico de cunho disciplinar. “Entregar a Satanás” funciona como exclusão estabelecida de alguma forma em que o crente é tratado. Os pormenores não são descritos por Paulo. Portanto, fiquemos com o princípio, o qual descreve a necessidade de posicionamento da igreja diante de pecados notórios.

  

  



[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

[2] O “entre vós (ἐν ὑμῖν)” não localiza gramaticalmente o relatório, mas, de fato, a ofensa: “foi entre eles que o rumor circulava, porque [no meio deles] o pecado foi encontrado, a falta de castidade é relatada [como existe] entre vocês”. O relatório chegou ao apóstolo através do mesmo canal que trouxe informações sobre as facções (1:11). O peso da censura do apóstolo cai, não sobre a conversa sobre o crime dentro da comunidade, mas sobre a ocorrência e a falta de lidar com isso. ROBERTSON, Archibald; PLUMMER, Alfred: A Critical and Exegetical Commentary on the First Epistle of St. Paul to the Corinthians. New York: C. Scribner's Sons, 1911, p. 95

[3]πορνεία (porneía) aparece dez vezes no corpus paulinus: 1Co.5:1,2; 6:13,18; 7:2; Gl.5:19; Ef.5:3; Cl.3:5; 1Ts.4:3.

[4] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich. : W.B. Eerdmans, 2000, p. 385.

[5] O tempo presente infinitivo ἔχειν” (ékhein), “está tendo”, denota uma relação contínua, contra um único ato que provavelmente seria o aoristo. THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans, 2000, p. 386.

[6] Por isso, que alguns entendem que o fundamento de tal ação tem sua fonte numa distorção gnóstica do evangelho, nesse caso a raiz do problema. Os gnósticos acreditavam que aquilo que era feito com o corpo não era importante e assim, irrelevante para a religião de alguém. Embora seja verdade que as doutrinas gnósticas atormentaram a igreja durante seus primeiros dias (refletidas especialmente em Colossenses), não creio que esse fosse o pano de fundo desse problema específico em Corinto. CHAFIN, Kenneth L. ;   OGILVIE, Lloyd J.: The Preacher's Commentary Series, Volume 30 : 1, 2 Corinthians. Nashville, Tennessee : Thomas Nelson Inc, 1985 (The Preacher's Commentary Series 30), p. 66.  

[7] OSTER, Richard: 1 Corinthians. Joplin, Mo.: College Press Pub. Co., 1995 (The College Press NIV Commentary), s. 1Co 5:2.

[8] JOHNSON, Alan F.: 1 Corinthians. Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 2004 (The IVP New Testament Commentary Series 7), p. 88.

[9] Particípio perifrástico. Perfeito (particípio) + Presente (verbo) = perfeito.

[10] Quanto ao verboφυσιόω (fysióo – eu ensoberbeço, faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.

[11] MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, p.69.

[12] ἐπενθήσατε – (epenthésate). “Aoristo ingressivo”, o qual denota a entrada ou começo de uma ação. O verbo “πενθέω (penthéo – lamentar) é utilizado no NT nas ocasiões de luto por um ente querido (Mt.9:15; Mc.16:10) e para prantear e chorar por uma grande perda (Ap.18:11,15,19). Por isso, alguns comentaristas entendem que Paulo está lamentando a iminente perda do irmão pecador. Entretanto, a palavra é usada outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e arrependimento. O uso do “lamento” na LXX sugere que, para Paulo, em 5.2 os coríntios deveriam lamentar no sentido de confessar o pecado do irmão ofensor como se fosse o pecado deles próprios. A palavra ocorre apenas seis vezes na LXX com referência ao pecado (Ed.10:6; Ne.1:4; 8:9; Dn.10:2). BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo TestamentoSão Paulo: Vida Nova, 2014, p.879.

[13] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, p.388.

[14] MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.69 (grifo meu).

[15] BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.879.

[16] “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας; - hína arthê ek mésu hymôn ho tò érgon tûto práksas?).

[17] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, p.390.

[18] O verbo “sentenciei” (κέκρικα - kékrika) está no perfeito em grego. MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70. 

[19] Construção similar aparece em 1Tm.1:20.

[20] Morris afirma: o significado mais palpável é o de excomunhão (ver os vs.2,7,13). A ideia subjacente é que fora da igreja está a esfera de Satanás (Ef.2:12; Cl.1:13; 1Jo.5:19). Ser expulso da igreja é Cristo é ser lançado àquela região onde Satanás mantém o poder. É uma expressão muito forte concernente a perda de todos os privilégios cristãos. MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70.

[21] 2Co.12:7; Lc.13:16; Jó.1 onde o sofrimento também é atribuído a Satanás.


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