Análise
exegética de 1Co.5:5: “O autor da tal infâmia [...] seja entregue a
Satanás...”
Valério Nascimento [S.D.G]
A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]
O presente ensaio exegético busca
analisar 1Co.5:5, pensando no pressuposto reformado, o qual define a intrínseca
relação existente entre Doutrina/Escritura. Considera também a discussão
desenvolvida nos dias de hoje, tão presente nas percepções dialéticas oriundas
de pesquisadores atuais.
Quando
lemos a expressão “entregue a satanás” em 1Co.5:5 estamos diante de uma questão
complexa quanto a explicação e definição. Por isso, somos desafiados no trato
exegético em questão. Alguns autores nos ajudam em tal elucidação como Calvino,
Thiselton, Beale, Carson, Morris,
Ridderbos e Boor,
pois suas contribuições exegéticas funcionam como norteadores metodológicos.
Esse cuidado com o significado pretendido pelo Autor/autor é de fundamental
importância, para rejeitarmos as fantasias teológicas de alguns que atribuem
definições para a questão em foco, destituídos da exegese crítica.
Basicamente serão tratadas três
questões que envolvem o “entregue a satanás”: a
razão deste pronunciamento (1Co.5:1), a correção da postura indevida da igreja
em relação ao fato ocorrido (1Co.5:2) e finalmente, o devido trato com seus
desdobramentos distintos.
I. A razão do
“entregue a Satanás” (1Co.5:1).
Paulo de
alguma forma tomou conhecimento (ἀκούεται – lê-se: akúetai – “é ouvido”) que no meio da igreja (ἐν ὑμῖν – “entre vós”)[2],
havia “imoralidade” (πορνεία).[3] Thiselton
explica que Paulo usa a palavra “πορνεία”, imoralidade sexual ou uma relação sexual ilícita, seis
vezes em 1 Coríntios, das quais cinco ocorrem entre 5–7. Essa tradução ocorre,
porque o termo é genérico e inclui várias subcategorias como “μοιχεία” (adultério). A palavra abrange “todo tipo de relação
sexual ilegal”.[4]
A explicitação disto se dá na afirmação de Paulo: ... “a saber, [que] alguém
tem[5]
[como companheira] a mulher de seu pai” (“ὥστε γυναῖκά τινα τοῦ πατρὸς ἔχειν”). Diante disso, nosso questionamento contempla a
identificação desta mulher: para quem aponta?
Normalmente se pensa nesta “mulher” (γυνή) como “madrasta”, pois se fosse a
mãe, Paulo teria afirmado isso. Esta é uma possibilidade interpretativa, mas,
seja como for, o ato em questão de qualquer forma funciona em antítese a
vontade de Deus, pois o incesto é reprovado tanto pela Lei Mosaica como pelo
Novo Testamento (Lv.18:7,8; Dt.22:30; 27:20; At.15:20,29; 21:25).[6] Nesse caso, a ligação com o AT especificamente Lv.18:8, funciona
como apontamento para a madrasta. Entretanto, os detalhes dessa hedionda
relação de imoralidade não são explicitados por Paulo, já que os leitores
certamente estariam familiarizados (por exemplo, o pai estava morto, vivo ou
divorciado?). É digno de nota que o apóstolo acreditava, à luz de sua confiança
em Levítico e Deuteronômio aqui e em 5:13, que este corpo de legislação bíblica
da Lei Mosaica ainda se aplicava aos cristãos na igreja de Deus em Corinto.[7] Para agravar a questão, o apóstolo mostra que
isso “não ocorria nem entre os pagãos”
(καὶ τοιαύτη πορνεία ἥτις οὐδὲ ἐν τοῖς
ἔθνεσιν). Entretanto,
isso não significa que os pagãos tinham um padrão moral superior, mas sim que o
direito romano (não a lei grega) proibia essa união, mesmo quando o pai estava
morto.[8] Assim,
esta descrição expõe a seriedade do problema presente na igreja. Mas, como lidaram
com isso?
II. A resposta indevida
da igreja ao problema. 1Co.5:2.
Infelizmente, a igreja não se posicionou de
forma correta ao ato pecaminoso exposto. A descrição usada pelo apóstolo (5:2) chancela
isto, pois, “andais vós ensoberbecidos” (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι ἐστὲ)[9] e
“não estivestes tristes” (οὐχὶ
ἐπενθήσατε), desta forma, estes
paralelos contrários expõem o antagonismo em relação ao que devia ser feito. A primeira
postura reprovável (ὑμεῖς
πεφυσιωμένοι[10]
ἐστὲ) denota o conceito que
governava a conduta dos coríntios que estava em antítese a humildade cristã.[11] Quanto
a segunda expõe o que eles deixaram de fazer, pois “não entraram[12]
num estado de luto”[13]. Morris
pensa a partir deste verbo, que Paulo pode estar insinuando, que a igreja
perdeu um membro e assim: “deveis estar
chorando muito mais a perda de um membro!”[14] Entretanto, este verbo (πενθέω – “lamento”) é usado outra vez por Paulo apenas em
2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e
arrependimento.[15] Por esta razão, a contestação a tese de Morris passa a ter
fundamento. Ainda assim, o elemento reprovável da postura dos corintos está em
foco.
A mesma dinâmica antitética continua (5:2),
pois, o apóstolo traz uma pergunta retórica, cuja a resposta é negativa. Isso é feito em conexão com as duas
posturas reprováveis tratadas anteriormente. Elas não apresentaram o correto
resultado, apontado pelo apóstolo: “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que
cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο
πράξας;). Portanto,
todas posturas da igreja narradas até agora, foram antagônicas ao padrão divino,
tanto do incestuoso como dos restantes. Não houve um trato legitimo da questão
exposta. Entretanto, a partir de 5:3 Paulo começa a explicar o que deve ser
feito.
III.
A instrução de Paulo quanto ao trato legítimo da questão (o que fazer).
Depois dos antagonismos
passemos para o trato legitimo. Isso começa a ser feito com a conjunção grega “γάρ” (ignorada na ARA, ARC, ACF, NVI). Seu
uso conectivo enfático define a justificativa do que foi afirmado no v.2.[16] Além disso, o constraste pronominal
entre “vós” de 5:2 e o “eu” de 5:3 chancela a diferença de posturas. O conteúdo
deste trato legítimo envolve alguns momentos definidos estruturalmente, os
quais precisam ser analisados com cautela e precisão exegética.
Em primeiro lugar, mesmo “estando
Paulo ausente no corpo” (ἀπὼν
τῷ σώματι), ainda
assim, “estaria presente em espírito” (παρὼν δὲ τῷ πνεύματι).
Thiselton explica que estes particípios presentes antitéticos “ἀπών”, (“estando ausente”), e “παρών”, (“estando presente”) são
qualificados por dois dativos, isto é, “τῷ σώματι” (“no corpo”), isto é, fisicamente e “τῷ
πνεύματι”, (“no
espírito”), fora do corpo. Desde o século XIX até o final da década de 1950, a
interpretação praticamente unânime, a qual entende “em espírito”, isto é, em um
sentido não corporal, porque o contraste semântico entre “σῶμα” (“corpo”) e “πνεῦμα” (“espírito”) foi assumido como refletindo o dualismo clássico
mente-corpo ocidental de Platão e Descartes.[17] Morris
pensa nisso como uma assembleia disciplinar a ser realizada. Nesse caso Paulo
como presidente desta assembleia passou a sentença.[18] Nessa posição o apostolo expos o veredito, pois aquele que
cometeu o ato pecaminoso, “já o sentenciei” (ἤδη κέκρικα).
Em segundo lugar, o fundamento de autoridade
está em loco, pois o apóstolo mostra que isso é feito “em nome do Senhor Jesus”
(ἐν τῷ ὀνόματι τοῦ κυρίου [ἡμῶν] Ἰησοῦ). Além disso, a junção exposta pelo particípio “συναχθέντων” (“reunido”) e a preposição “σύν” (sýn – “com”)
mostra a igreja e Paulo juntamente com “o poder do Senhor Jesus” ligados
(Mt.18:20).
Depois destas premissas, em terceiro lugar, o
pronunciamento é apresentado: “... entregar tal pessoa a satanás, para a
destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”
(5:5).[19] O que isso significa neste contexto: Uma
completa apostasia? Ou: apontamento para disciplina (exclusão)?
Três expressões são usadas neste capítulo,
focando o afastamento do ofensor: em 5:2: “... fosse afastado do vosso meio” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν), 5:5: “entregar a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e 5:13: “expulsai dentre vós” (ἐξάρατε τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν
αὐτῶν). Ao
lermos estas conexões seremos melhor direcionados. Assim ao analisarmos o “entregar
a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e sua complementação, ou seja, “para destruição da carne”
(εἰς ὄλεθρον τῆς σαρκός), algumas teses interpretativas podem
ser destacadas: 1) maldição-morte,
nesse caso a sustentação é que Paulo profere uma maldição que resultará em
sofrimento físico e, por fim em morte (1Co.11:30). 2) “entregar o ofendido a satanás” é devolvê-lo a era satânica,
fora do ambiente edificante e acolhedor da igreja, onde Deus opera. A carne a
ser destruída é a carne pecaminosa (1Co.3:16,17). O homem deve ser excluído da
comunidade da fé (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento, p.880).[20] Calvino explica
isso, estabelecendo o seguinte paralelo: “... é por isso que o entrega a
Satanás, por que o diabo está fora da igreja como Cristo está na igreja”
(CALVINO. As Institutas, p.227). 3).
O posicionamento de Herman Ridderbos estabelece quase uma síntese, pois entende
que se trata da expulsão formal da igreja (Mt.18:20). Além disso, deve-se
entender essa “destruição da carne” como grave aflição física, afetando a vida
temporal que acometerá o pecador que foi entregue a Satanás[21]
(RIDDERBOS. A Teologia do Apóstolo Paulo,
pp.523,524).
Essa percepção guarda ainda uma questão, pois podemos
afirmar que o culpado por tal ato pecaminoso era realmente cristão? Boor defende que sim, já que, Satanás obtém poder apenas “para
a destruição da carne”. Pois esse homem é “cristão”. Fez algo terrível,
mas de sua parte não se desligou de Jesus. A morte sacrifical de Jesus
permanece válida para ele. Por um lado, um pecado tão flagrante, que causou enorme
dano para o evangelho entre judeus e gentios e trouxe vergonha ao nome do
Senhor, precisa obter um castigo claro. Por outro lado, justamente quando esse
castigo for suportado – e ser entregue a Satanás para a destruição da carne é
terrível (BOOR. Comentário
Esperança, Primeira Carta De Paulo Aos Coríntios; Comentário Esperança, 1
Coríntios, p. 100). Isso é sugerido pela
progressão do texto, pois o propósito da disciplina é descrito positivamente
(Hb.12:4-13): “... ἵνα τὸ πνεῦμα σωθῇ ἐν τῇ
ἡμέρᾳ τοῦ κυρίου” (hína tò pneûma sothê en tê heméra tû kyríu –
“... para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”). Portanto, o incestuoso foi entregue a condenação temporária, para que
fosse salvo eternamente (CALVINO. As
Institutas, p.227).
O v.5 apresenta dois propósitos estabelecidos pela
preposição “εἰς” (eis – “para”) e pela conjunção “ἵνα” (hína – “para que”), de maneira que desmembrá-las
não seria coerente. Portanto, num primeiro momento o crente foi disciplinado (para a destruição da carne), isso
seguido de seu referido objetivo: “a salvação” (para que seja salvo).
Como foi dito no início esse texto é realmente
desafiador, entretanto, alguns caminhos interpretativos expostos nos ajudam. Em
suma, sua ênfase é o trato eclesiológico de cunho disciplinar. “Entregar a
Satanás” funciona como exclusão estabelecida de alguma forma em que o crente é
tratado. Os pormenores não são descritos por Paulo. Portanto, fiquemos com o
princípio, o qual descreve a necessidade de posicionamento da igreja diante de
pecados notórios.
[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a
Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).
[2]
O “entre vós (ἐν ὑμῖν)” não localiza gramaticalmente o relatório,
mas, de fato, a ofensa: “foi entre eles que o rumor circulava, porque [no meio
deles] o pecado foi encontrado, a falta de castidade é relatada [como existe]
entre vocês”. O relatório chegou ao apóstolo através do mesmo canal que trouxe
informações sobre as facções (1:11). O peso da censura do apóstolo cai, não
sobre a conversa sobre o crime dentro da comunidade, mas sobre a ocorrência e a
falta de lidar com isso. ROBERTSON,
Archibald; PLUMMER, Alfred: A Critical
and Exegetical Commentary on the First Epistle of St. Paul to the Corinthians.
New York: C. Scribner's Sons, 1911, p. 95
[3] “πορνεία” (porneía) aparece dez vezes no corpus
paulinus: 1Co.5:1,2; 6:13,18; 7:2; Gl.5:19; Ef.5:3; Cl.3:5; 1Ts.4:3.
[4] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich. : W.B. Eerdmans,
2000, p. 385.
[5]
O tempo presente infinitivo ἔχειν”
(ékhein), “está tendo”, denota uma
relação contínua, contra um único ato que provavelmente seria o aoristo. THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans,
2000, p. 386.
[6] Por isso, que alguns entendem que o fundamento de tal
ação tem sua fonte numa distorção gnóstica do evangelho, nesse caso a raiz do
problema. Os gnósticos acreditavam que aquilo que era feito com o corpo não era
importante e assim, irrelevante para a religião de alguém. Embora seja verdade
que as doutrinas gnósticas atormentaram a igreja durante seus primeiros dias
(refletidas especialmente em Colossenses), não creio que esse fosse o pano de
fundo desse problema específico em Corinto. CHAFIN, Kenneth L. ; OGILVIE, Lloyd J.: The Preacher's Commentary Series, Volume 30 : 1, 2 Corinthians.
Nashville, Tennessee : Thomas Nelson Inc, 1985 (The Preacher's Commentary
Series 30), p. 66.
[7] OSTER, Richard: 1 Corinthians. Joplin, Mo.: College
Press Pub. Co., 1995 (The College Press NIV Commentary), s. 1Co 5:2.
[8] JOHNSON, Alan F.: 1 Corinthians. Downers Grove, Ill.:
InterVarsity Press, 2004 (The IVP New Testament Commentary Series 7), p. 88.
[9]
Particípio perifrástico. Perfeito (particípio) + Presente (verbo) = perfeito.
[10]
Quanto
ao verbo “φυσιόω” (fysióo – “eu ensoberbeço,
faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito
a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.
[11]
MORRIS
Leon. ICoríntios, Introdução e
Comentário. São Paulo: Vida Nova, p.69.
[12] ἐπενθήσατε – (epenthésate). “Aoristo ingressivo”, o qual denota a entrada ou começo de uma ação. O
verbo “πενθέω” (penthéo – lamentar) é utilizado no NT nas ocasiões de luto por um
ente querido (Mt.9:15; Mc.16:10) e para prantear e chorar por uma grande perda
(Ap.18:11,15,19). Por isso, alguns comentaristas entendem que Paulo está
lamentando a iminente perda do irmão pecador. Entretanto, a palavra é usada
outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do
conceito de tristeza divina e arrependimento. O uso do “lamento” na LXX sugere
que, para Paulo, em 5.2 os coríntios deveriam lamentar no sentido de confessar
o pecado do irmão ofensor como se fosse o pecado deles próprios. A palavra
ocorre apenas seis vezes na LXX com referência ao pecado (Ed.10:6; Ne.1:4; 8:9;
Dn.10:2). BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.879.
[13] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text, p.388.
[14] MORRIS
Leon. ICoríntios, Introdução e
Comentário, p.69 (grifo meu).
[15]
BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário
do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.879.
[16]
“...
de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας; - hína arthê ek mésu hymôn ho tò érgon tûto práksas?).
[17] THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text, p.390.
[18]
O verbo “sentenciei” (κέκρικα - kékrika) está no
perfeito em grego. MORRIS Leon. ICoríntios,
Introdução e Comentário, p.70.
[19]
Construção similar aparece em 1Tm.1:20.
[20]
Morris afirma: o significado mais palpável é o de excomunhão (ver os
vs.2,7,13). A ideia subjacente é que fora da igreja está a esfera de Satanás
(Ef.2:12; Cl.1:13; 1Jo.5:19). Ser expulso da igreja é Cristo é ser lançado
àquela região onde Satanás mantém o poder. É uma expressão muito forte
concernente a perda de todos os privilégios cristãos. MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70.
[21] 2Co.12:7; Lc.13:16; Jó.1 onde o sofrimento também é atribuído a Satanás.