Análise
exegética de 1Co.5:5: “O autor da tal infâmia [...] seja entregue a
Satanás, para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do
Senhor”.
Esse texto é um dos desafios hermenêuticos que
temos como leitores e estudantes da Bíblia. Por esta razão, nesse ensaio
introduzirei alguns caminhos, para buscarmos o significado desta porção da
Palavra. Estruturalmente, dividirei em três partes, para que possamos tratar o
texto com temáticas distintas.
A
questão em foco. 5:1,2.
Paulo de alguma forma tomou conhecimento (ἀκούεται – akúetai – “é ouvido”) que no meio da igreja (ἐν ὑμῖν – en hymîn – “entre vós”)[1],
havia “imoralidade” (πορνεία - porneía).[2]
Por causa da triste ocorrência, “a saber,
[que] alguém tem[3]
[como companheira] a mulher de seu pai” (“ὥστε γυναῖκά τινα τοῦ πατρὸς ἔχειν” - hóste gynaîka
tina tû ékhein). Normalmente, esta “mulher” (γυνή - gyné) é
identificada como “a madrasta”, pois se fosse a mãe, Paulo teria afirmado isso.
Esta é uma possibilidade interpretativa, mas, seja como for, o incesto é
reprovado pela Lei Mosaica como pelo Novo Testamento (Lv.18:8; Dt.22:30; 27:20;
At.15:20,29; 21:25). Para agravar a questão, o apóstolo mostra que isso “não ocorria nem entre os pagãos” (καὶ τοιαύτη πορνεία ἥτις οὐδὲ ἐν τοῖς
ἔθνεσιν – kaì toiaúte
porneía hètis udè en toîs éthenesin). Isso não significa que os pagãos tinham um padrão
moral superior, mas que o direito romano (não a lei grega) proibia essa união, mesmo
quando o pai estava morto (JOHNSON. 1Corinthians,
InterVarsity Press, p. 87). Assim, esta descrição expõe a seriedade do
problema presente na igreja. Mas, como lidaram com isso?
A
resposta indevida da igreja ao problema (o que não fazer). 5:2.
Infelizmente, a igreja não se posicionou de
forma correta ao ato pecaminoso exposto. A descrição usada pelo apóstolo (5:2) chancela
isto, pois, “andais vós ensoberbecidos” (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι[4] ἐστὲ - hymeîs pefysioménoi
estè)[5] e
“não estivestes tristes” (οὐχὶ
ἐπενθήσατε – uhkì epenthésate), desta forma, estes paralelos contrários expõem o antagonismo
em relação ao que devia ser feito. A primeira postura reprovável (ὑμεῖς πεφυσιωμένοι[6] ἐστὲ - hymeîs
pefysioménoi estè) denota o conceito que
governava a conduta dos coríntios que estava em antítese a humildade cristã
(MORRIS. ICoríntios, Introdução e
Comentário, p.69). Quanto a segunda expõe o que eles deixaram de fazer,
pois “não entraram num estado de luto”[7] (THISELTON.
The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on
the Greek Text, p.
388). Morris pensa a partir deste
verbo, que Paulo pode estar insinuando que a igreja perdeu um membro: “deveis
estar chorando muito mais a perde de um membro!” (MORRIS. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.69). Entretanto, este verbo (“πενθέω” - penthéo – “lamentar”) é usado outra vez por Paulo apenas em
2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do conceito de tristeza divina e
arrependimento (BEALE;
CARSON. Comentário do Uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento, p.879). Por esta razão, a
contestação a tese de Morris passa a ter fundamento.
A mesma dinâmica antitética continua (5:2),
pois, o apóstolo traz uma pergunta retórica, cuja a resposta é negativa. Isso é feito em conexão com as duas
posturas reprováveis tratadas anteriormente. Elas não apresentaram o correto
resultado, apontado pelo apóstolo: “... de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que
cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο
πράξας; - hína arthê ek mésu
hymôn ho tò érgon tûto práksas?). Portanto, todas posturas da igreja narradas até agora,
foram antagônicas ao padrão divino, tanto do incestuoso como dos restantes. Não
houve um trato legitimo da questão exposta. Entretanto, a partir de 5:3 Paulo começa
a explicar o que deve ser feito.
A instrução de Paulo quanto ao trato legítimo da questão
(o que fazer).
Depois dos antagonismos
passemos para o trato legitimo. Isso começa a ser feito com a conjunção “γάρ” (gár)
ignorada na ARA, ARC, ACF, NVI. Seu uso conectivo enfático define a justificativa
do que foi afirmado no v.2.[8] Além disso, o constraste pronominal
entre “vós” de 5:2 (ὑμεῖς – hymeîs) e o “eu” de 5:3 chancela a diferença
de posturas. O conteúdo deste trato legítimo envolve alguns momentos definidos
estruturalmente, os quais precisam ser analisados com cautela e precisão
exegética.
Em primeiro lugar, mesmo “estando
Paulo ausente no corpo” (ἀπὼν
τῷ σώματι – apòn tô sómati), ainda assim, “estaria presente em
espírito” (παρὼν δὲ τῷ πνεύματι – paròn dè tô pneúmati).
Thiselton explica que estes particípios presentes antitéticos “ἀπών”, (“estando ausente”), e “παρών”, (“estando presente”) são
qualificados por dois dativos, isto é, “τῷ σώματι” (no corpo), isto é, fisicamente e “τῷ
πνεύματι”, (no
espírito), fora do corpo. Desde o século XIX até o final da década de 1950, a
interpretação praticamente unânime, a qual entende “em espírito”, isto é, em um
sentido não corporal, porque o contraste semântico entre “σῶμα” (soma – “corpo”) e “πνεῦμα” (pneûma – espírito) foi assumido como refletindo o dualismo clássico
mente-corpo ocidental de Platão e Descartes. (THISELTON. The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, p.
390). Morris
pensa nisso como uma assembleia disciplinar a ser realizada. Nesse caso Paulo
como presidente desta assembleia passou a sentença[9] (MORRIS. ICoríntios, Introdução
e Comentário, p.70). Nessa posição o apostolo expos o veredito, pois aquele
que cometeu o ato pecaminoso, “já o sentenciei” (ἤδη κέκρικα – éde kékrika).
Em segundo lugar, o fundamento de autoridade
está em loco, pois o apóstolo mostra que isso é feito “em nome do Senhor Jesus”
(ἐν τῷ ὀνόματι τοῦ κυρίου [ἡμῶν] Ἰησοῦ - en tô onómati tû kyríu hemôn Iesû). Além disso, a junção exposta pelo particípio “συναχθέντων” (synakhthénton – “reunido”) e preposição “σύν” (sýn – “com”)
mostra a igreja e Paulo juntamente com “o poder do Senhor Jesus” ligados
(Mt.18:20).
Depois destas premissas, em terceiro lugar, o
pronunciamento é apresentado: “... entregar tal pessoa a satanás, para a
destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”
(5:5).[10] O que isso significa neste contexto: Uma
completa apostasia? Ou: apontamento para disciplina (exclusão)?
Três expressões são usadas neste capítulo,
focando o afastamento do ofensor: em 5:2: “... fosse afastado do vosso meio” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν), 5:5: “entregar a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e 5:13: “expulsai dentre vós” (ἐξάρατε τὸν πονηρὸν ἐξ ὑμῶν
αὐτῶν). Ao
lermos estas conexões seremos melhor direcionados. Assim ao analisarmos o “entregar
a satanás” (παραδοῦναι [...] τῷ σατανᾷ) e sua complementação, ou seja, “para destruição da carne”
(εἰς ὄλεθρον τῆς σαρκός – eis ólethron tês sarkós),
algumas teses interpretativas podem ser destacadas:
1)
maldição-morte, nesse caso a sustentação é que Paulo profere uma maldição que
resultará em sofrimento físico e, por fim em morte (1Co.11:30).
2) “entregar
o ofendido a satanás” é devolvê-lo a era satânica, fora do ambiente edificante
e acolhedor da igreja, onde Deus opera. A carne a ser destruída é a carne
pecaminosa (1Co.3:16,17). O homem deve ser excluído da comunidade da fé (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, p.880).[11] Calvino explica
isso, estabelecendo o seguinte paralelo: “... é por isso que o entrega a
Satanás, por que o diabo está fora da igreja como Cristo está na igreja”
(CALVINO. As Institutas, p.227).
3). O
posicionamento de Herman Ridderbos estabelece quase uma síntese, pois entende
que se trata da expulsão formal da igreja (Mt.18:20). Além disso, deve-se
entender essa “destruição da carne” como grave aflição física, afetando a vida
temporal que acometerá o pecador que foi entregue a Satanás[12]
(RIDDERBOS. A Teologia do Apóstolo Paulo,
pp.523,524).
Essa percepção guarda ainda uma questão, pois podemos
afirmar que o culpado por tal ato pecaminoso era realmente cristão? Boor defende que sim, já que, Satanás obtém poder apenas “para
a destruição da carne”. Pois esse homem é “cristão”. Fez algo terrível,
mas de sua parte não se desligou de Jesus. A morte sacrifical de Jesus
permanece válida para ele. Por um lado, um pecado tão flagrante, que causou enorme
dano para o evangelho entre judeus e gentios e trouxe vergonha ao nome do
Senhor, precisa obter um castigo claro. Por outro lado, justamente quando esse
castigo for suportado – e ser entregue a Satanás para a destruição da carne é
terrível (BOOR. Comentário
Esperança, Primeira Carta De Paulo Aos Coríntios; Comentário Esperança, 1
Coríntios, p. 100). Isso é sugerido pela
progressão do texto, pois o propósito da disciplina é descrito positivamente
(Hb.12:4-13): “... ἵνα τὸ πνεῦμα σωθῇ ἐν τῇ
ἡμέρᾳ τοῦ κυρίου” (hína tò pneûma sothê en tê heméra tû kyríu –
“... para que o espírito seja salvo no dia do Senhor”). Portanto, o incestuoso foi entregue a condenação temporária, para que
fosse salvo eternamente (CALVINO. As
Institutas, p.227).
O v.5 apresenta dois propósitos estabelecidos pela
preposição “εἰς” (eis – “para”) e pela conjunção “ἵνα” (hína – “para que”), de maneira que desmembrá-las
não seria coerente. Portanto, num primeiro momento o crente foi disciplinado (para a destruição da carne), isso
seguido de seu referido objetivo: “a salvação” (para que seja salvo).
Como foi dito no início esse texto é realmente desafiador, entretanto, alguns caminhos interpretativos expostos nos ajudam. Em suma, sua ênfase é o trato eclesiológico de cunho disciplinar. “Entregar a Satanás” funciona como exclusão estabelecida de alguma forma em que o crente é tratado. Os pormenores não são descritos por Paulo. Portanto, fiquemos com o princípio, o qual descreve a necessidade de posicionamento da igreja diante de pecados notórios (ao contrário do ocorre em Mt.18).
[1]
O “entre vós (ἐν ὑμῖν)” localiza gramaticalmente o relatório, mas, de
fato, a ofensa: foi entre eles que o rumor circulava, porque [no meio deles] o
pecado foi encontrado: “a falta de castidade é relatada [como existe] entre
vocês.” O relatório chegou ao apóstolo através do mesmo canal que trouxe
informações sobre as facções (1:11), ou através de Estefanas (16:17). O peso da
censura do apóstolo cai, não sobre a conversa sobre o crime dentro da
comunidade, mas sobre a ocorrência e a falta de lidar com isso. ROBERTSON, Archibald; PLUMMER,
Alfred: A Critical and Exegetical
Commentary on the First Epistle of St. Paul to the Corinthians. New
York: C. Scribner's Sons, 1911, p. 95
[2]
“πορνεία” (porneía) aparece
dez vezes no corpus paulinus: 1Co.5:1,2; 6:13,18; 7:2; Gl.5:19; Ef.5:3; Cl.3:5;
1Ts.4:3.
[3]
O tempo presente infinitivo ἔχειν”
(ékhein), “está tendo”, denota uma
relação contínua, contra um único ato que provavelmente seria o aoristo. THISELTON, Anthony C.: The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans, 2000,
p. 386.
[4]
Quanto
ao verbo “φυσιόω” (fysióo – “eu ensoberbeço,
faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito
a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.
[5]
Particípio perifrástico. Perfeito (particípio) + Presente (verbo) = perfeito.
[6]
Quanto
ao verbo “φυσιόω” (fysióo – “eu ensoberbeço,
faço com que alguém fique orgulhoso”) seu uso é quase totalmente restrito
a 1Coríntios: 4:6,18,19; 5:2; 8:1; 13:4. Somente Cl.2:18 fica de fora.
[7] ἐπενθήσατε – (epenthésate). “Aoristo ingressivo”, o qual denota a entrada ou começo de uma ação. O
verbo “πενθέω” (penthéo – lamentar) é utilizado no NT nas ocasiões de luto por um
ente querido (Mt.9:15; Mc.16:10) e para prantear e chorar por uma grande perda
(Ap.18:11,15,19). Por isso, alguns comentaristas entendem que Paulo está
lamentando a iminente perda do irmão pecador. Entretanto, a palavra é usada
outra vez por Paulo apenas em 2Co.12:21, em que o sentido se aproxima muito do
conceito de tristeza divina e arrependimento. O uso do “lamento” na LXX sugere
que, para Paulo, em 5.a os coríntios deveriam lamentar no sentido de confessar
o pecado do irmão ofensor como se fosse o pecado deles próprios. A palavra
ocorre apenas seis vezes na LXX com referência ao pecado (Ed.10:6; Ne.1:4; 8:9;
Dn.10:2). BEALE Gregory, CARSON D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.879.
[8]
“...
de modo que fosse afastado do vosso meio, aquele que cometeu esse ato” (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν ὁ τὸ ἔργον τοῦτο πράξας; - hína arthê ek mésu hymôn ho tò érgon tûto práksas?).
[9] O verbo “sentenciei” (κέκρικα - kékrika) está no perfeito em grego.
[10]
Construção similar aparece em 1Tm.1:20.
[11]
Morris afirma: o significado mais palpável é o de excomunhão (ver os
vs.2,7,13). A ideia subjacente é que fora da igreja está a esfera de Satanás
(Ef.2:12; Cl.1:13; 1Jo.5:19). Ser expulso da igreja é Cristo é ser lançado
àquela região onde Satanás mantém o poder. É uma expressão muito forte
concernente a perda de todos os privilégios cristãos. MORRIS Leon. ICoríntios, Introdução e Comentário, p.70.
[12] 2Co.12:7; Lc.13:16; Jó.1 onde o sofrimento também é atribuído a Satanás.