terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 

Uma crítica exegética ao “arrebatamento secreto” defendido por John MacArthur, a partir de 1Ts.4:13-18.

As linhas escatológicas distintas trazem delineações fundantes que propiciam leituras particularizadas de 1Ts.4:16-18. Neste ensaio, observaremos a interpretação de John MacArthur (pressuposto dispensacionalista) deste texto, numa dialética inversa, de maneira que o movimento será da negação para a afirmação. Para tal, alguns estudiosos serão de vital importância pelas suas contribuições exegéticas (MacArthur, Beale, Hoekema, Wanamaker, Carson e outros). A defesa em voga neste texto nega esta invisibilidade e associa este “arrebatamento” com 5:1, destacando a definitiva e única 2ª vinda do Senhor. 

John MacArthur trabalha 1Ts.4:14-16 numa dinâmica exegética que envolve alguns elementos. Inicialmente, entende, a luz de 4:14,15a que “a bendita esperança do arrebatamento não se baseia nas areias movediças da especulação filosófica, mas em três pilares inabaláveis: a morte de Cristo, a ressurreição de Cristo e a revelação de Cristo” (MacArthur, John: 1 & 2 Thessalonians, 2002, p.127). Além disso, procura identificar (por 4:15b) quem são os participantes do arrebatamento, pois “dois grupos de pessoas participarão dele: aqueles que estiverem vivos na vinda do Senhor e aqueles que adormeceram” (MacArthur, John: 1 & 2 Thessalonians, 2002, p.131). Finalmente, expõe “a descrição (por 4:16,17), o passo a passo deste evento” (MacArthur, John: 1 & 2 Thessalonians, 2002, p.133). Reduziremos a análise aqui para 4:16,17.

Neste passo a passo, MacArthur trabalha com seis pontos fundantes. Em primeiro lugar, ele liga 1Ts.4:14-16 a Mc.13:26,27 (2ª vinda), afirmando que “o próprio Senhor retornará para a Sua igreja. Ele não enviará anjos para isso, em contraste com a reunião dos eleitos que ocorrerá na Segunda Vinda” (p.133). Em segundo lugar, “Jesus descerá do céu, onde esteve desde a sua ascensão” (At.1:9-11). Em terceiro lugar, “quando o Senhor descer do céu, Ele o fará com κέλευσμα (lê-se: kéleysma, “grito, sinal”), assim: “os justos mortos da era da igreja serão os primeiros a ressuscitar - uma verdade que deve ter confortado grandemente os ansiosos tessalonicenses” (p.134). Em quarto lugar, a voz do arcanjo soará. Não há nenhum artigo definido no texto grego, e por isso, literalmente diz “um arcanjo”. Assim, vemos como impossível dizer quem é este arcanjo, cuja voz, será ouvida naquele arrebatamento. Quem quer que seja, acrescentará sua voz ao grito de comando do Senhor. Em quinto lugar, ao mandamento do Senhor e à voz do arcanjo será adicionado “o som da trombeta de Deus” (cf. 1Co.15:52). Esta “trombeta” foi usada de várias maneiras na Escritura (Lv.23:24, Nm.10:2; Jz. 6:34, 1Sm.13:3; 2Sm.15:10; 20:1; 1Rs.1:34,39,41) e especificamente em Êx.19:16-19 e Zc 1:16; 9: 14-16 parece ter um duplo propósito: “reunir o povo de Deus e sinalizar a Sua libertação deles”. Em sexto lugar, os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Como mencionado acima, os santos mortos não serão inferiores aos que estão vivos no arrebatamento. De fato, se levantarão primeiro, seus corpos glorificados se unindo a seus espíritos glorificados, para torná-los à imagem de Cristo” (1Jo.3:2). Aqueles que estavam em Cristo em vida serão assim na morte; a morte não pode separar os crentes de Deus (Rm.8:38). Finalmente, aqueles crentes que estiverem vivos serão arrebatados junto com os santos mortos nas nuvens, para encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com Ele (MacArthur, John: 1 & 2 Thessalonians, 2002, p.133,134).

Em antítese as fundamentações de MacArthur, trabalharemos a tese que pensa 4:14-16 como apontamento para a 2ª vinda de Cristo. Inicialmente detectamos que o texto proposto (1Ts.4:13-18) está na seção que desenvolve “as exortações da carta”, divididas da seguinte forma: 1) manter as tradições 4:1,2; 2); 2) a pureza sexual 4:3-8; 3) o amor ao irmão 4:9-12; 4) o entendimento quanto aos fieis que morreram 4:13-18 e finalmente 5) os tempos e épocas 5:1-11 (Bruce, F.F: Word Biblical Commentary: 1 and 2 Thessalonians, p. 77). Ao recortarmos para 4:13-18, especificamente em 4:16-17, se destaca que “o Senhor descerá dos céus (ὁ κύριος [...] καταβήσεται ἀπ᾽ οὐρανοῦ) e assim, “os mortos em Cristo serão ressuscitados, e os crentes ainda vivos serão transformados” (cf.1Co.15:51,52).

A fala de Hoekema nos serve de argumento inicial: “o texto não ensina que, após o encontro dos ares, o Senhor inverterá sua direção e voltará para os céus, levando com ele os membros da igreja ressuscitados e transformados(HOEKEMA. A Bíblia e o Futuro, p.200). Esta premissa nos leva desde já a desconfiança quanto a separação da vinda do Senhor em duas etapas, sendo que a primeira funciona como “invisível”. No contexto dos Tessalonicenses a construção expõe a resolução da problemática presente na igreja, numa síntese que envolve “a vinda do Senhor” (παρουσίαν τοῦ κυρίου lê-se: parusían tû kyríu). Ela é tratada por Paulo em 1Ts em quatro situações contextuais (2:19; 3:13; 4:15; 5:23)[1] e vista em antítese com “a ira vindoura” (1:10; 5:9). Essa duplicidade determina a escatologia futura e presente no NT (Mt.25:31-46; Ap.21.1-27). Em conexão com isso, o apóstolo usa a expressão “dia do Senhor” (ἡμέρα κυρίου lê-se: heméra kyríu) como apontamento do contexto posterior (1Ts.5:2). Assim, como explica Beale “tanto 4:15-18 como 5:1-11 explicam que os mesmos eventos são discerníveis ao observar que ambas as passagens realmente formam uma representação contínua da mesma narrativa em Mateus 24” (BEALE. 1-2 Thessalonians IVP, p.136). Portanto, 1Ts não destaca algo incompleto ou transitório.

Ao reduzirmos a seção somente para o quarto ponto (1Ts.4:13-18), observaremos as elucidações quanto “aos que dormem” (dormir é um eufemismo para a morte nos antigos escritos pagãos e no Antigo Testamento - BEALE. 1-2 Thessalonians IVP, p.133), ligadas a Mt.244 com o seguinte desenho:

1 Ts

Mt

Cristo Retorna

4:16

24:30

Do céu

4:16

24:30

Acompanhado dos anjos

4:16

24:31

Com as trombetas de Deus

4:16

24:31

os crentes se reunem com Cristo

4:17

24:31, 40–41

Nas nuvens

4:17

24:30

Tempo desconhecido

5:1–2

24:36

Vindo como um ladrão

5:2, 4

24:43

Incrédulos ignorantes no julgamento iminente

5:3

24:37–39

Julgamento vindo como a dor de uma mãe que espera seu filho.

5:3

24:8

Os crentes não são enganados

5:4–5

24:43

Os crentes estão em vigilância

5:6

24:37–39

O Cuidado com a embriaguez

5:7

24:49

    

 

 











Os eventos desta “parusia” (παρουσία, lê-se: parusía, - “vinda”) destacam essa invisibilidade? As passagens Mt.24:31; 1Ts.4:16 vistas em coesão lexical nos ajudam e trazem a resposta, pois nelas “o toque da trombeta (σάλπιγξ) indica o comando para que “os escolhidos sejam reunidos”. Desta forma, o princípio da notoriedade é destacado, pois o ato divino destacado não pode funcionar de outra forma. A separação envolverá todos os homens (Mt.25:31-33), de maneira que nada ocorrerá em secreto (Ap.1:7,8). Além disso, esta “trombeta de Deus” é uma imagem que ocorre frequentemente no AT em contextos de teofania e julgamento escatológico (cf. Êx.19:16,19; Is.27:13; Jl.2:1; Zc.9:14), bem como nas tradições apocalípticas judaicas e cristãs (Sl.11: 1; Mt. 24:31; Ap. 8:2,6,13; 9:14). Ao nos voltarmos para 1Ts.4:16 as três locuções preposicionais (ἐν κελεύσματι, ἐν φωνῇ ἀρχαγγέλου καὶ ἐν σάλπιγγι no comando, na voz, na trombeta”) podem ser vistas como temporais e assim definirem o momento da descida de Cristo, entretanto é melhor pensar nas circunstâncias  que a envolvem, já que as três estão relacionadas a ressurreição dos mortos (“os que dormem”) em Cristo (WANAMAKER. The Epistles to the Thessalonians: A Commentary on the Greek Text, p.173). Até aqui não temos qualquer indicação de antítese escatológica com o restante do NT, portanto, reduzir a “parusia” desse texto não parece ter bases exegéticas maduras.

A segunda tese fundante quanto “o arrebatamento” envolve questões lexicais e sintáticas, pois o verbo “ἁρπάζω (lê-se: harpázo) está em foco. Seu uso (ἁρπάζω) no NT está delimitado a quatorze aparições (Mt.11:12; 12:29; 13:19; Jo.6:15; 10:12,28,29; At.8:39; 23:10; 2Co.12:2,4; 1Ts.4:17; Jd.1:23; Ap.12:5). Além desta análise lexical mais abrangente, devemos atentar para sua inserção em 4:16 (num viés sintático):

A. ἔπειτα ἡμεῖς οἱ ζῶντες οἱ περιλειπόμενοι ἅμα σὺν αὐτοῖς ἁρπαγησόμεθα

Depois nós mesmos os vivos, os que ficarmos juntamente com eles seremos arrebatados 

  A.1. ἐν νεφέλαις εἰς ἀπάντησιν τοῦ κυρίου εἰς ἀέρα·

    nas nuvens para o encontro do Senhor nos ares

  A.2. καὶ οὕτως πάντοτε σὺν κυρίῳ ἐσόμεθα. (4:17)   

    e assim, estaremos para sempre com o Senhor.

 

     Inicialmente observamos o continuísmo contextual, enfatizando a ordem dos eventos pois agora “os vivos (4:15) serão arrebatados”. Isso indica que “Deus realizará essa obra” (agente da passiva – “Deus nos reunirá juntos” - ELLINGWORTH; NIDA: A Handbook on Paul's Letters to the Thessalonians, p.103) e que ocorrerá locativamente nas “nuvens” e de forma espacial nos “ares”. Esse usos são metafóricos e destacam pelo AT em muitos casos a TEOFANIA – manifestação visível de Deus[2], significado esse, transportado para o NT[3]. Assim, “a nuvem” está associada não só a ascensão de Cristo, mas também com seu retorno futuro (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do AT no NT, p.1087). Em suma tudo o que Paulo está dizendo aqui “é que os crentes ressuscitados e transformados são elevados as nuvens para encontrar o Senhor, enquanto ele desce do céu, implicando que após este alegre encontro eles voltarão com ele para a terra” (HOEKEMA. A Bíblia e o Futuro, p.201).  Nessa dinâmica podemos ligar os dois verbos no futuro presentes em 4:17, pois “seremos arrebatados” e “estaremos para sempre com o Senhor”, (... καὶ οὕτως πάντοτε σὺν κυρίῳ ἐσόμεθα), indicando assim, o aspecto consumativo e imutável escatologicamente se falando. Portanto, “estar junto dele” significa participar de seus grandes feitos vindouros: da derrubada do império anticristão mundial, do governo do Senhor sobre esta velha terra, do juízo universal perante o grande trono branco e finalmente do governo do novo céu e da nova terra a partir da nova Jerusalém (BOOR. Comentário Esperança, Primeira Carta Aos Tessalonicenses; Comentário Esperança, 1Tessalonicenses, p. 77). A negação a participação de outros em outros tempos não tem nenhuma base nesse texto.

A tese de MacArthur tem alguns problemas, o primeiro deles parece ser a falta de inserção nos elementos textuais de 4:16,17, pois visa mais o contexto canônico (algo importante também). O segundo é a afirmação quanto ao aspecto transitório desta passagem, algo difícil de ser provado. O terceiro em sua descrição quanto a invisibilidade que parece não ser exposta no texto. Pensamos nos eventos da “parusia” (παρουσία - vinda), não destacando essa invisibilidade pela unidade do NT. Além disso,  “o arrebatamento” envolve questões lexicais e sintáticas, as quais serviram de substrato para a defesa em foco. Em nosso trato exegético entendemos que a “parusía” tem ligações consumativas e imutáveis e não apresenta apontamentos continuístas de conotação escatológica. “Todos os povos verão o Senhor voltar” para buscar os seus escolhidos, pois instaurará “o novo céu e terra” para “estar para sempre com os Seus”.      

 



[1] Outras vinte vezes no NT.

[2] Êx.13:21,22; 14:19,20,24; 16:10; Lv.16:2; Nm.9.15-22; 1Rs.8:10-12; 2Cr.5:13,14.

[3] Mt.17:5; Mc.9:7; Lc.9:34,35; 1Co.10:1,2.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

 

O Dom de Profecia visto em sua Qualificação e automaticamente Aplicação (Uma análise Exegética). 


       Este ensaio tem pretensões limitadas em sua análise por causa do espaço disposto. Entretanto, passaremos por algumas portas, para pensarmos “o dom de profecia” pela “dimensão interpretativa da teologia”. Assim, nosso interesse investigativo está fundamentado na qualificação deste dom pelo trato exegético, para entendermos seu viés teológico (cessou ou continua). Alguns estudiosos corroborarão com nossa análise (David Aune, James Dunn, Calvino, Carson e outros). As considerações teológicas, mesmo pressupostas, serão manifestas somente depois da análise em questão.

        Em nosso contexto evangelical comumente aparecem algumas problemáticas dirigido ao “dom de profecia”: cessou ou continua? Ele é um dos que cessaram, pois outros continuam? Sua descrição funciona como extraordinária, logo sua aplicabilidade não se torna mais justificada? Esta redução redundante acaba ofuscando algo primário ao meu ver: a qualificação do dom. Isso por uma questão óbvia: não há como falar em aplicabilidade sem uma compreensão definidora. Para responder estas problemáticas usemos o mesmo princípio de Agostinho (345-453) quando afirma a trindade: “primeiramente [...] é preciso demonstrar pela autoridade das santas escrituras, a certeza de nossa fé” (AGOSTINHO. A Trindade, p.27). Portanto, numa dinâmica de coesão veremos, sinteticamente, o dom de profecia em suas aparições no NT em seus devidos contextos.

        Inicialmente, precisamos correlacionar χάρισμα (khárisma, “dom ou manifestação da graça”) com προφητεία (profeteía, “profecia”) e isto ocorre, explicitamente, somente em duas passagens do NT: Rm.12:6; 1Co.12:8,9. A importância desta detecção em voga passa pelo entendimento da “profecia” como “dom” (melhor “manifestação da graça”, por causa de Rm.12:6) pelo viés do NT. Além disso, se faz necessário ter em mente os usos da προφητεία (profeteía, “profecia”) no NT. Neste caso, 19 constatados (na LXX são cinco: 2Cr.15:8; 32:32; Ed.5:1; 6:14; Ne.6:12 -  נְבוּאָה) sendo que a maioria presente no Apocalipse (1:3; 11:6; 19:10; 22:7,10,18,19), entretanto, os de nosso interesse (neste ensaio) aparece em: Rm.12:6; 1Co.12:10 (com certos desdobramentos). Estes serão os alvos de nossa análise exegética.

      Desta forma, comecemos por Rm.12:6 onde “o dom de profecia” aparece numa lista de sete (12:6-8). Nesta passagem não tem muitos elementos constitutivos para desenvolver a desejada qualificação, porquanto o apóstolo não o faz e além disso, só usa προφητεία aqui em Romanos. A primeira proposta de qualificação parte de João Calvino: “prefiro entender a palavra num sentido amplo, significando o dom especial de revelação, por meio do qual alguém exerce a função de intérprete com perícia e destreza, explicando a plicando a vontade de Deus. Portanto, na igreja cristã dos tempos atuais, profecia é o correto entendimento da Escritura e o dom particular de explicá-la, visto que todas as antigas profecias e todos os oráculos divinos já foram concluídos em Cristo e seu evangelho” (CALVINO. Romanos, p.442). Na contramão desta percepção está àquela que entende este dom como “revelação direta”, numa conotação preditiva (At.21:10,11, embora Carson considere esta profecia de Ágabo inexata, ver em: CARSON. A Manifestação do Espírito, p.100). Morris é cauteloso ao afirmar que “ninguém no NT explica, precisamente o que era esse dom, mas parece significar que havia pessoas que o tinham, a fim de transmitir palavras diretas de Deus. Eram aqueles que podiam dizer: ‘Assim diz o Senhor.’” (MORRIS. The Epistle to the Romans, PiNTC, p.440). Esta última fala de Morris é cercada de grande debate, pois diferentemente do exercício profético do AT, a construção do NT mostra que a profecia devia ser julgada (1Co.14:29) além disso, existia a subserviência dos profetas a liderança de Paulo (1Co.14:37, Existem outros elementos levantados para esta questão ver em: CARSON. A Manifestação do Espírito, pp.95-97).  Num terceiro momento, James Dunn traz outro elemento distinto (pela redução que envolve Rm.12:6) levando em conta as considerações anteriores, destaca que a velha disputa quanto a natureza da profecia (“revelação”, quase = pregação, o anúncio da palavra” ou como “predição”) obscureceu seu caráter mais básico como discurso inspirado, palavras dadas como de “fora” (pelo Espírito), e não formuladas conscientemente (DUNN. Vol. 38B: Word Biblical Commentary: Romans 9-16, p.726). Para fazer justiça a fala do  Dunn outros elementos são levantados em sua tese, pois a profecia como “algo não formulado conscientemente”, é uma característica distintiva daquela (profecia) judaico-cristã em oposição ao uso grego mais amplo, onde προφητεία não aparece na literatura não judaica e onde προφήτης e μάντις são distintos, com o último denotando inspiração imediata e o primeiro como porta-voz que declara a mensagem assim recebida ou que atua como aquele (porta-voz) oficial do santuário. O uso do substantivo “profecia” em vez de “profeta” (12:6) sublinha o ponto que Paulo tem em mente aqui, ou seja, a função de profetizar, χάρισμα como o falar real de palavras dadas por inspiração (DUNN. Vol. 38B: Word Biblical Commentary: Romans 9-16, p.726).[1] Assim, temos três elementos distintos quanto a qualificação tratada.

    Num segundo momento deste ensaio pensaremos numa trilogia por 1Co.12-14: προφητεία/προφητεύω/προφήτης.[2] Entretanto, nosso foco ainda continua na προφητεία em sua qualificação. Esta trilogia encontra amparo textual em algumas porções de 1Co: 12:10,28,29; 14:1,3,4,5,24,31. Assim, continuamos com nossa problemática: como qualificar “o dom de profecia” no NT? Estes textos trarão mais luzes para esta questão. Carson constrói uma importante distinção entre “o que é profecia e o que ela faz” (CARSON. A Manifestação do Espírito, p.93). Thiselton faz um trabalho exaustivo na qualificação proposta em alguns backgrounds e em outros aspectos, pois, como afirma: “é essencial comparar e avaliar o trabalho de certos estudos-padrão-chave” (THISELTON. The First Epistle to the Corinthians: A commentary on the Greek text, p.957). Garland entende este dom como: “declaração da vontade de Deus as pessoas”, visto que os cristãos entenderam que a profecia de Joel 2:28-29 foi cumprida, se conclui que a profecia estava “potencialmente ... disponível para todos, visto que todos agora possuíam o Espírito em plenitude (Atos 2:17-18). O Espírito é derramado sobre todos, filhos e filhas, jovens e velhos, escravos, homens e mulheres, que irão profetizar” (Garland. 1Corinthians. Baker Exegetical commentary on the New Testament, p. 582). Isso parece, segundo Fee, “se encaixar especialmente no que aprendemos no Cartas paulinas” (FEE. The new  International  Commentary  on The New   Testament The First Epistle to the Corinthians, p.536). Para sermos justos com os estudiosos precisamos ter em mente que análise exegética privilegia o contexto do texto, rejeitando anacronismos, contextualização sincrética e a falácia do texto prova (usado em algumas TS).

     Nesta dinâmica de análise a correlação entre 12:10 e 14:3 tem certa proeminência na qualificação deste dom. Observemos em forma de gráfico.

Porque a um é dada mediante o Espírito

            [o dom] a profecia

                  o que profetiza fala aos homens,

                          para edificação, exortação e consolação.

    Parece bem sugestivo por isso, entender a profecia como pregação, entretanto Carson questiona esta percepção, pois segundo ele, a ideia de Paulo neste verso não é essa (CARSON. A Manifestação do Espírito, p.94).  Comumente, neste momento alguns intérpretes gostam de usar a lógica em forma de silogismo (se é assim, logo...). Paradoxalmente, ainda assim, não podemos criar uma ruptura total entre profecia e pregação (que loucura!!!). Robertson e Plummer veem este verbo (“profetiza”) como algo que “era o poder de ver e tornar conhecida a natureza e a vontade de Deus, um dom de compreensão da verdade e de poder para transmiti-la e, portanto, a capacidade de edificar o caráter dos homens, vivificar sua vontade e encorajar seus espíritos” (ROBERTSON & PLUMMER. A critical and exegetical commentary on the First epistle of St. Paul to the Corinthians, p.306). Evidente que a premissa exposta tem outros substratos quanto a sua defesa, mas desde já podemos afirmar que todos contestados, exegeticamente.

    Depois destas considerações introdutórias temos mais problemas do que soluções. Realmente, as discussões  que envolvem “o dom de profecia” (ou até a mesmo a profecia no NT) são cercadas de profundas divergências. Talvez, a questão chave disto passe pela ausência explicita presente na intenção do autor em trazer tal qualificação. Parece que temos aqui algo de conotação nevrálgica para nossa compreensão e defesa, pois a progressividade envolvendo o binômio qualificação/aplicação traz grande dificuldade para o segundo. Portanto, a cessação aparentemente funciona como resposta para aquilo não definido exaustivamente.  

  



[1] Mais palavras de Dunn: “O caráter distintivo da profecia cristã deve ser definido com mais cuidado: distinto em sua imediação de inspiração espontânea e não estruturada (cf. 1 Cor 14:30), em oposição ao ritual profético mais formalizado e procedimentos dos santuários reconhecidos; e distinto na ênfase paulina na racionalidade (1 Coríntios 14: 12-19), em oposição às experiências extáticas valorizadas no manticismo, no frenesi das festas dionisíacas e também evidentemente dentro da igreja em Corinto (1 Co.12: 2; 14:12). A profecia é mencionada apenas aqui em Romanos. Mas o fato de Paulo colocá-lo no topo da lista de carismas é consistente com a proeminência que ele dá a ele em outros lugares (especialmente 1 Cor 14:1,39; 1 Ts.5:19-20); em duas listas que falam de pessoa ao invés de dom em si, ‘profetas’ vêm atrás apenas de ‘apóstolos’ (1 Co.12.28; Ef 4.11; cf. Ef 2.20). As razões são explicadas em 1 Co. 14: a profecia ‘edifica’ ou beneficia a congregação mais do que outros carismas (14:3-5) em virtude de trazer encorajamento e consolo (14: 3, 31; ver também em 12: 8 ), nova revelação (1 Cor 14: 6, 26,30) e autoconhecimento humilhante (14:24-25). DUNN. Vol. 38B: Word Biblical Commentary: Romans 9-16, p.726.

[2] Profecia, profetizo, profeta.

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...