quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 

AS “OBRAS DA LEI” (Gl.2:16) VISTAS INTRODUTORIAMENTE SOB O VIÉS DA ABORDAGEM REFORMADA E DA NPP (Nova Perspectiva sobre Paulo)  
               

O presente ensaio tem como objetivo apresentar de forma introdutória, “as obras da lei” de Gálatas 2:16 sob o viés da abordagem Reformada e da NPP (Nova Perspectiva sobre Paulo), considerando assim, esta temática com esses contornos dialeticamente opostos.   
A questão que envolve as “obras da lei” em Gálatas está ligada ao legalismo ou ao aspecto social? Nossas leituras deste quesito em voga, no evangelicalismo brasileiro, foram dirigidas (quase que unicamente) pela primeira alternativa. Entretanto, com a tradução das obras de James Dunn a segunda possibilidade começou a ser conhecida.[1] Os elementos fundantes que desenvolvem estas teses têm uma gama considerável de informações. Entretanto, não podemos negar que historicamente a visão legalista das ἔργων νόμου (lê-se: érgon nómu, “obras da lei”) nos reporta a Lutero e Calvino, enquanto a social, num considerável hiato, parte das percepções da NPP (New Perspective on Paul), termo usado inicialmente por Dunn em 1982 (Título de sua palestra na “T.W Manson Memorial Lecture” realizada na universidade de Manchester, cf. DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.9). Neste ensaio, trabalharemos dialeticamente a abordagem reformada e da NPP quanto as ἔργων νόμου, reduzidas a Gl.2:16pensando: 1) o genitivo (ἔργων νόμου), 2) o desenvolvimento contextual de 2:16 e 3) sua relação com os argumentos precedentes e desdobramentos do próprio verso.
A construção genitiva ἔργων νόμου (lê-se: érgon nómu, “obras da lei”) é traduzida de formas disntintas nas versões em português. Nas NVI e BA suas traduções aparecem como “prática da lei”, já nas ARA, ARC, ACF como: “obras da lei”. Em Gálatas ἔργων νόμου aparece seis vezes (2:16; 3:2,5,10; cf Rm.3:28). A tradução e as implicações desta expressão são nossa primeira tarefa neste ensaio, a luz da dialética proposta. James Dunn entende que a melhor forma de traduzir a ἔργων νόμου é como: “serviço da lei ou [serviço] monista” (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.195). Nesse viés, este “serviço”, reduzido a leitura da NPP não é tanto no sentido de atos particulares já realizados, mas no sentido de obrigações estabelecidas pela lei, o sistema religioso determinado pela lei. Assim, a expressão não se refere ao esforço de um indivíduo por um melhoramento moral, mas há um modo de existência religioso, um modo de existência marcado em seu caráter distinto como determinado pela lei,[2] pelas práticas religiosas que demonstram a pertença da pessoa ao povo da lei (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.195).[3]
Na contramão desta percepção temos alguns posicionamentos disntintos (numa ordem antitética de posicionamento, e não cronológica) que focam a prática de lei. Lutero pensava ἔργων νόμου desta forma, num tom adversativo a justificação (e não como caracterização). Para tal, o reformador estabelece uma diferença entre justiça externa e interna. A primeira é proveniente de forças próprias (justiças humanas) produzidas pelas leis civis e eclesiásticas e todo o decálogo (LUTERO. Comentarios de Carta del Apóstol Pablo a los Gálatas, 1519).[4]  Calvino neste mesmo viés foca a total incompatibilidade entre fé e obras, de maneira que ἔργων νόμου funciona, a partir de delineamentos morais (CALVINO. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, 2010, pp.78,79). Damos um salto, para salientar também a percepção de Ernest DeWitt Burton (1856-1925), a qual definia a expressão em foco como: “base de aceitação para com Deus”, neste caso, “atos de obediência e formais oriundos de um espírito legalista,[5] com a expectativa de merecer e assegurar a aprovação divina” (BURTON. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians, 1920, p. 120).[6]  Com estas avaliações introdutórias, investigaremos agora a passagem em seus contextos.  
Ao pensarmos Gl.2:16 em sua dinâmica contextual, observaremos seu lugar nas percepções argumentativas usadas pelo apóstolo. Para Dunn sua compreensão das ἔργων νόμου (citada anteriormente) é a melhor maneira de interpretá-las no contexto em que Paulo as introduz (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.196). Ao voltarmos na delimitação de 2:16, temos algumas possibilidades, pois esta questão é vista de algumas formas entre os estudiosos. Longenecker inicialmente entende a extensão de 2:15-21 num viés retórico de propositio[7] (LONGENECKER. Word Biblical Commentary: Galatians, 2002, p. 80), [8]ou seja, a transição da seção anterior para o corpo principal da carta; estabelecendo a tese que Paulo irá defender na próxima seção (GEORGE. GalatiansThe New American Commentary, 2001, p.194). Pensemos agora o contexto anterior, a partir desta redução pressuposta.
Antioquia[9] como marcador de início do discurso em 2:11 funciona numa dinâmica geográfica que vem sendo descrita, de forma repetida com ἔπειτα (lê-se: épeita, “depois de disso”) em conexão com Jerusalém, Síria e Cilícia (1:18,21; 2:1). Quanto ao ocorrido ali (Antioquia), o texto expõe diretamente: Οτε δὲ ἦλθεν Κηφᾶς εἰς Ἀντιόχειαν, κατὰ πρόσωπον αὐτῷ ἀντέστην, ὅτι κατεγνωσμένος ἦν (e[10] quando Cefas[11] veio para Antioquia, o resisti face a face, pois[12] fora feito condenado[13]). O “γάρ (lê-se: gár, “porque”) no início de 2:11, segundo Runge, produz o “material explicativo que fortalece ou dá suporte ao que o precede (RUNGE. Discourse Grammar of the Greek New Testament: A Pratical Introduction for Teaching and Exegesis, 2013, p.54), embasando desta forma a postura de Paulo exposta em 2:12-14. Em suma a atitude de Cefas (“coluna” Gl.2:9) não estava condizente com “a verdade do evangelho” e produzia certa influência sobre os judeus e Barnabé, pois “foram dissimulados” (συνυπεκρίθησαν)[14] ou “caíram na mesma hipocrisia” (LOW; NIDA. Léxico Grego- Português Baseado em Domínios Semânticos, 2013, p.681) junto com ele. Assim, chegamos ao âmago da problemática que funciona em leituras distintas, isso num viés retrospectivo, de  maneira que 2:16 aparece como reação aos postulados descritos. Dunn entende que as controvérsias precedentes dizem respeito “a circuncisão e dietas alimentares”, as quais como “obras da lei”, caracterizam o pertencimento ao povo da aliançaDesta forma, para os cristãos de Jerusalém pertencer ao povo eleito  sem incluir fidelidade as leis alimentares e aos rituais de pureza na mesa de refeição era uma contradição conceitual inconcebível. Pedro e Barnabé concordaram seja com relutância ou não que a ameaça à identidade judaica era demasiadamente grande para ser ignorada. Esse caráter focado pela NPP em seu viés histórico chancela a crise de identidade que o trabalho de Paulo provocou em seus colegas judeus cristãos (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, pp.196,200).[15]  
Para preservar a dialética usada até agora, precisamos descrever a abordagem deste texto oriunda da reforma. Nesse viés, o foco segundo Calvino: “é a subordinação a lei como base da recusa de Pedro em ter comunhão com os gentios” (CALVINO. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, 2010, p.74). Desta forma, a separação hipócrita de Pedro tem sua explicação declarada. Além disso, mesmo depois do concílio de Jerusalém (At.15:19-21), havia o entendimento de que os judeus estavam sob a lei (At.21:18-26).[16] Evidentemente que a negação aos princípios que emanam da lei não estão sendo ignorados aqui, pois a questão é a oposição “a verdade do evangelho” (τὴν ἀλήθειαν τοῦ εὐαγγελίου, a qual aparece também em 2:5.
Com estas questões em foco, pensaremos os elementos textuais constituídos pela dualidade antitética existente em Gl.2:16 entre “obras da lei” e “ser justificado”.[17] A reação de Paulo ao trabalhar com esta distinção teológica (a luz do contexto) nos serve como substrato a problemática em voga. Como entendê-la?
A estrutura do verso apresenta as relações sintáticas, as quais definem as ligações argumentativas e paralelas. Em primeiro lugar, numa síntese, observamos que as ἐξ ἔργων[18] são sempre negadas em 2:16 (οὐ δικαιοῦται ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου [...] οὐκ ἐξ ἔργων νόμου [...] ἐξ ἔργων νόμου οὐ...) diretamente ou indiretamente. Isso associado ao particípio εἰδότες visto como causal (“por esta causa sei...”)[19] desenvolve a máxima próxima anterior: Nós somos judeus por natureza, e não pecadores dentre os gentios” (ARC, 2:15). Como observamos anteriormente, os reformadores pensavam esta questão sob o viés do legalismo. Neste caso, a “base de aceitação para com Deus, os atos de obediência e atos formais oriundos de um espírito legalista, com a expectativa de merecer e assegurar a aprovação divina” (BURTON. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians, 1920, p.120). De outro lado, Dunn entende que “pelo contexto o Nomismo era a razão, para os judeus se separarem de outros crentes, o que era essencial para serem considerados entre os justos. As “obras da lei” eram claramente a circuncisão e as leis alimentares” (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.37).  O paralelo contextual de certa forma destaca isto:

·         Contudo, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se. --- E isto por causa dos falsos irmãos [...] aos quais não nos submetemos, para que A VERDADE DO EVANGELHO permanecesse entre vós (2:3-5)
·         Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando, e se apartou delestemendo os que eram da circuncisão [...], quando, porem vi que não procediam segundo A VERDADE DO EVANGELHO... (2:12-14).
       
O benefício quanto ao “ser justificado pela fé” é o diferencial que estabelece a oposição ao viés da exclusividade nacionalista. Assim, a redução identificadora da lei não funciona no alcance da redenção de Cristo e seus benefícios. Podemos ainda ampliar a questão para pensarmos, se a justificação ou qualquer benefício soteriológico, em algum momento foi recebido pelas obras? Parece que a reposta neste caso só pode ser negativa (cf.At.15:10,11). Desta forma, a resposta positiva ao legalismo chancela uma compreensão nunca afirmada pelos judeus. George nos lembra isto pela antropologia teológica: “por causa da queda dos seres humanos [...] ‘nenhuma carne’ poderia ser justificada pela observação da lei. Além disso, o próprio Deus sabia e pretendia que fosse assim desde o princípio” (GEORGE. Galatians Logos Library System; The New American Commentary, 2001, p.195). Nesse viés, Vogt afirma que “a graça está presente desde as primeiras páginas de Gênesis” (VOGT. Interpretação do Pentateuco, 2015, p.76).
Realmente não podemos negar a complexidade da questão em voga, pois desmontar um edifício teológico continuado por séculos, é uma tarefa que exige muito do contestador. Dunn conseguiu pelo manos abalar ou provocar certa reflexão. As críticas dirigidas a NPP são redigidas por ele mesmo em sua obra com suas devidas justificativas (DUNN. A Nova Perspectiva sobre Paulo, 2011, p.49). Assim, depois deste levantamento introdutório reduzido a Gl.2:16, observamos a apresentação das teses interpretativas com seus postulados.    

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...