“O ESPINHO NA CARNE” DE PAULO: SEU DOLOROSO CONFLITO COM OS FALSOS MESTRES.
O
enigmático “espinho na carne” de Paulo foi explicado de várias formas ao longo
da história da interpretação. No período patrístico (100-451) Agostinho
(354-430) o entendia como apontamento para os adversários do apóstolo que o
perseguiam em Corinto. Posteriormente, os pensadores medievais (como Aquino) pela
interpretação da Vulgata (... est
mihi stimulus carnis 2Co.12:7 VUL) o definiam como uma “tentação sexual”. Já os reformadores (Lutero e
Calvino) como uma “tentação espiritual”. Os mais modernos identificam este “espinho”
como uma doença física, neste caso, oftalmia (baseado em Gl.4:13 e 6:11), epilepsia
(com resultado da experiência que Paulo teve em sua conversão At.9:1-9) ou uma febre
malárica (o apóstolo contraiu esta enfermidade na Panfília, pois, essa doença
cobre todos os sintomas descritos por ele). Além disso, destaca-se outra
categoria de sofrimento (psicológico), neste caso aquele que estava
fundamentado na rejeição dos judeus ao evangelho (MARTIN. Word Biblical Commentary: 2 Corinthians, p. 414).[1]
Neste
ensaio, a defesa delimitada entende “o
espinho na carne” de Paulo como apontamento ao seu doloroso conflito para com os falsos mestres. O desenvolvimento estrutural será construído
pelos seguintes pontos: 1) a observância da tradução do texto com suas
definições sintáticas, 2) o desenvolvimento do contexto lógico nas argumentações
progressivas e 3) as definições conceituais de σκόλοψ τῇ σαρκί seguidas da conclusão.
A
tradução de 2Co.12:7 e suas considerações sintáticas. A problemática que envolve a tradução questiona, se τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων (lê-se: tê hyperbolê tôn apokalýpseon, “a grandeza das revelações”) está
conectado a 12:6 como sua conclusão ou a 12:7 como o início de uma nova sentença?
O
diagrama com seus desdobramentos sintáticos nos ajudará inicialmente na
compreensão da questão em voga.
1º DIAGRAMA: 12:6
φείδομαι δέ, - mas,
abstenho-me
μή τις εἰς ἐμὲ λογίσηται ὑπὲρ ὃ βλέπει με ἢ ἀκούει [τι] ἐξ ἐμοῦ
para que ninguém cuide de mim mais
do que em mim vê ou de mim ouve
καὶ τῇ ὑπερβολῇ
τῶν ἀποκαλύψεων
mesmo por causa das
revelações extraordinárias.
2º DIAGRAMA: 12:7
καὶ τῇ ὑπερβολῇ
τῶν ἀποκαλύψεων
e por causa da excelência das revelações
διὸ ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι,
portanto, para que não me exaltasse
ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί, ἄγγελος
σατανᾶ,
foi-me dado um espinho na carne, a saber,
um mensageiro de Satanás
ἵνα
με κολαφίζῃ,
para me esbofetear,
ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι
a fim de
não me exaltar.
No primeiro diagrama, a tradução da expressão de καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων funciona da seguinte forma: “... mas deixo isto, para que ninguém cuide de mim mais do que
em mim vê ou de mim ouve, mesmo por causa
das revelações extraordinárias”. No segundo diagrama a dinâmica
(de καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων) é outra: “E, para que não me exaltasse por causa da excelência das revelações, foi-me
dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear,
a fim de não me exalte”. O
uso da conjunção inferencial διὸ (“portanto”) é o principal argumento da primeira
alternativa, pois descreve onde está o início da nova sentença (“portanto,
para que não me exaltasse”v.7). Entretanto, noutro viés, o dativo τῇ ὑπερβολῇ pode funcionar como referencial,
instrumental ou causal (quanto à
grandeza [...], pela grandeza [...], por causa da grandeza [...], foi me dado...), ligado a ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι, ἐδόθη μοι (“para que não me exaltasse, foi-me dado...”) Harris entende que “é mais natural
relacionar ‘a grandeza das revelações’ ao recebimento do espinho, do que
propriamente ao ato gloriar-se” (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on
the Greek Text, 2005, p. 853). Assim, podemos destacar que as “revelações
extraordinárias” (BAGD. ὑπερβολή) são vistas mais naturalmente, como razão para a
imposição do “espinho”. Certamente seria por conta dessas experiências,
principalmente, que Paulo seria tentado a “exaltar-se”. Se 12.7a está conectado
com 12.6b, então διό (“portanto”, de v.7b) deve
relacionar-se logicamente com o todo dos versos em questão, mas isso não faria
sentido (THRALL. A Critical and
Exegetical Commentary on the Second Epistle of the Corinthians,
2004, S. 805). Com esses
apontamentos que trazem luzes sobre a tradução, partiremos agora para pensar o
contexto.
O desenvolvimento do contexto lógico. No contexto observamos o trato contínuo
de Paulo para com seus opositores. Isto envolve sua defesa contra as acusações
que destacavam seu “andar segundo a carne” (2Co.10:2) e sua “covardia”, pois
diferentemente das cartas, “sua presença pessoal é fraca e sua palavra
desprezível” (2Co.10:10). Além disso, a dinâmica que envolve o “gloriar-se”
chancela a antítese entre o apostolo e seus opositores, os quais “louvam a si
mesmos” (2Co.10:12). Esta postura é contrastada de algumas formas (2Co.10:13,15)
e tem sua conclusão exposta em 2Co.10:17,18. Além do ataque dirigido aos falsos
mestres, o apóstolo também o faz para com a indevida “tolerância” dos corintos,
para com aqueles que pregavam “outro Jesus” (2Co.11:4,19). Isso está
intrinsecamente ligado as demonstrações de amor do apóstolo para com a igreja (2Co.11:7-11).
Assim, o retorno quanto ao “gloriar-se” torna-se real pela repetição quanto a
diferenciação, neste sentido exposta anteriormente (2Co.10:12-15; 11:18-33). Em
síntese os falsos mestres “se gloriam segundo a carne” e Paulo o fazia “em sua
fraqueza”.
Nesse viés, 2Co.12:1 continua com o “gloriar-se” (καυχάομαι aparece 15 vezes entre 2Co.10-12),[2] descrevendo
a experiência de Paulo como marca da veracidade de seu apostolado. Ainda assim,
como explica Martin: “ele demonstra preocupação em não chamar atenção para si
mesmo, falando em terceira pessoa. O apóstolo conhecia ‘esse homem’ que teve a
visão celestial, contendo palavras, as quais não podem ser proferidas por ninguém”
(MARTIN. Word Biblical Commentary: 2Corinthians, p.390). Os desdobramentos de 2Co.11:33;12:1-3,5
em primeira pessoa chancelam esta máxima. Em suma, como foi observado, a
rejeição a auto recomendação está realmente em foco como sinal do verdadeiro
apostolado, numa construção apologética feita com uma Aretologia. Esta pintura
paulina funciona como reminiscência dos sofistas (MARTIN. Word Biblical
Commentary: 2 Corinthians, p. 391).
Esta delimitação que envolve 12:1-10, pode ser
estruturada da seguinte forma: (A) 12.1
introduz o tema das “visões e revelações”;
(B) 12.2–6 descrevem a ascensão de Paulo ao paraíso;
(C) 12.7–10 relata o subsequente recebimento do “espinho
na carne” e o seu resultado (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on
the Greek Text, 2005, S. 827). Não Podemos negar que a explicação dos conceitos desta
passagem (como: τρίτου οὐρανοῦ, “terceiro céu”; παράδεισος, “paraíso”) é realmente desafiadora, mas nossa
questão neste ensaio focará somente uma destas complexidades que é entender o
conceito σκόλοψ τῇ σαρκί (“espinho na carne”).
Explicação do conceito: σκόλοψ τῇ σαρκί (“espinho na carne”) e conclusão. Para pensar a explicação do
conceito em questão, observaremos
suas ligações sintáticas descritas em 2Co.12:7. Em primeiro lugar, destacaremos a causa do “espinho na
carne”. Desta forma, o dativo de causa ὑπερβολῇ (seguido do genitivo τῶν ἀποκαλύψεων lê-se: tê hyperbolê tôn apokalýpseon) chancela isto, em conexão
com ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί (lê-se: edóthe moi skólopsi tê sarkí), pois, expressa a seguinte
construção: “...por causa
da grandeza das revelações, foi me dado um espinho na carne...” (NVI). O contexto
(12:2-4) descreve o conteúdo que define “a grandeza das revelações” em foco (cf
ὑπερβολή em 2Co.4:7,17).
O plural ἀποκαλύψεων (“revelações”) corrobora com isto,
por meio de sua ligação com o recebimento das “palavras” (ῥήματα, lê-se: rémata, 12:4), por mais que alguns pensem em outras
experiências que pudessem estar em foco (HARRIS. The
Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text,
2005, p. 853).
Em segundo lugar, o propósito passa a ser a
questão em foco. Neste caso, o ἵνα (lê-se:
hína) introduz essa dinâmica de análise. Assim, a construção διὸ
ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι, ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί iniciada pela conjunção inferencial διὸ é seguida pelo ἵνα: “portanto, para impedir que eu me exaltasse, foi me dado um espinho na carne”
(NAB). Esta rejeição está ligada “a grandeza da experiência”, a qual não podia
funcionar como prerrogativa pessoal, funcionado como promoção do eu em
detrimento da glória dirigida a Deus. Paulo nega isto, de forma antitética, também
no contexto em relação aos falsos mestres (12:18,30). Em 2Ts.2:4 o apóstolo usa
o mesmo verbo (ὑπεραίρομαι, lê-se: hyperaíomai),
mas em relação ao Homem da iniquidade que “se exalta contra Deus”.
Em terceiro lugar, Paulo define σκόλοψ
τῇ σαρκί (“ῇ σαρκί dativo
incommodi[3] “contra a carne”) de forma apositiva com ἄγγελος
σατανᾶ (lê-se: á[n]guelos satanâ), desta
forma, pelo contexto parece apontar para os opositores de Paulo: “...foi me dado um
espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás” (ACF). Não podemos negar que esta tese tem
suas complexidades como a difícil associação com 11:13-15. Os críticos explicam
que em 11:14 “Satanás” é usado de forma pessoal, neste caso, os seus “servos”
descrevem os falsos apóstolos. Além disso, o uso do singular de “Satanás” relacionado
com o plural “falsos apóstolos” (cf. THRALL. A Critical and Exegetical Commentary on the Second
Epistle of the Corinthians, 2004, p. 817).
Ainda assim, destacamos a questão em foco como o
conflito (Agostinho), e nesse viés a tese que envolve os opositores (como “o espinho”) tem
amplo fundamento no contexto. Lemos isso em 2Co.10–13, onde encontramos a
luta de Paulo contra seus adversários. Propriamente em 12:12 observarmos
que o apóstolo está em conflito com aqueles que questionam seu apostolado. Em 11:13-15
entendemos este conflito com seus oponentes, como algo entre Deus e Satanás, ou
seja, ele como um representante do Senhor e os falsos apóstolos como
representantes de Satanás. Desta forma, segue-se que o uso do
mensageiro é em referência a uma pessoa, não uma doença. Se isto é assim, então
o uso de σκόλοψ (“espinho”) em 12:7 não deve ser
entendido, como se referindo a alguma enfermidade física. (HARRIS.
The Second Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text, 2005, S. 413).[4] Essa percepção tem substanciação também
no contexto canônico. O substantivo σκόλοψ (“espinho”) aparece algumas vezes na LXX[5] e a
partir disto, parece que Paulo faz alusão ao “espinho do lado de Israel”
como apontamento aos cananeus que Deus deixou na terra, para impedir que Israel
se exaltasse (Nm 33:55; Jz.2:3; cf. Js.23:13; Ez 28:24). Além disso, como no AT
e na maioria dos pensamentos judaicos, Deus é soberano mesmo sobre Satanás e
seus anjos (KEENER. InterVarsity
Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament,
1993, S. 2Co 12:7).
Além deste aspecto, ἄγγελος
σατανᾶ (“um
mensageiro de satanás”) aparece positivamente e negativamente: ἵνα
με κολαφίζῃ, ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι (“...para
me esbofetear, a fim de não me exalte” ARA). A primeira destaca a veemência do
sofrimento, pois o verbo κολαφίζω (Lê-se: kolafízo) aparece cinco vezes no NT nesta dinâmica (Mt.26:67;
Mc.14:65; 1Co.4:11; 2Co.12:7; 1PE.2:20). Este verbo implica numa violência humilhante e seu tempo
presente sugere que isso acontecia de forma persistente e repetida. A mesma
palavra é usada para a agressão sofrida por Jesus em sua paixão (Mc.14:65; Mt.26:67),
por isso, ao usa-la, Paulo pode estar conectando seus sofrimentos como apóstolo
àqueles de Cristo” (GARLAND. 2
Corinthians, The New American Commentary 2001, p. 522). Propriamente aqui κολαφίζω
(Lê-se: kolafízo) (2Co.12:7) pode ter sentido metafórico, por causa de seu
sujeito (ἄγγελος). É importante
lembrar o passivo-divino, pois se faz necessário identificar o agente da
passiva de ἐδόθη (lê-se: edóthe, “foi dado”). Baker entende que este agente é o
próprio Deus (BAKER. 2 Corinthians, The College Press NIV
Commentary, 1999, S. 430). Entretanto, este verbo ἐδόθη
parece estar ligado
diretamente a ἄγγελος, desempenhando o papel em foco. Plummer é crítico a este
pensamento, por causa de seu uso (ἑδόθη) que frequentemente aparece, concedendo favores Divinos como
em Gl.3:21; Ef.3:8, 6:19; 1Tm.4:14 (PLUMMER.
A Critical and
Exegetical Commentary on the Second Epistle of St. Paul to the Corinthians,
1915, p. 348).
Depois de percorrer este caminho investigativo, algumas
introdutórias conclusões podem ser expostas. Em primeiro lugar, pelas considerações
que envolvem o uso do dativo de causa e a naturalidade da leitura, adotamos a
tradução que pensa “a grandeza das
revelações” ligada a 12:7. Em segundo lugar, pelos desenvolvimentos do
contexto lógico, detectamos a forte ênfase no trato para com os falsos
apóstolos. Os apontamentos em questão podem ser pensados na dinâmica do
conflito. Em terceiro lugar, “o espinho na carne” visto em aposição com
“um mensageiro de Satanás” parece definir o doloroso conflito de Paulo para com
os falsos mestres. A base mais forte desta percepção parte das premissas
contextuais.
[1] Ver também em: HARRIS, Murray J.: The Second Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.; Milton Keynes, UK : W.B. Eerdmans Pub.
Co.; Paternoster Press, 2005, S. 858.
[2] 10:8,13,15,16,17; 11:12,16,18,30; 12:1,5,6,9.
[3] Sobre este uso do Dativo ver em: WALLACE Daniel. Gramática
Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento. São Paulo: Batista Regular, 2009,
pp.142,143. ROBERTSON A.T. Grammar of the
Greek New Testament in the Light of Historical Research, 2006, p.538. Disponível em: http://faculty.gordon.edu/hu/bi/ted_hildebrandt/new_testament_greek/text/robertson-greekgrammar.pdf. Acesso em 02/05/19 às 05:31.
[4]
Crisóstomo (347-407) observa que Σατανᾶς significa “mensageiro” e estende essa
identificação, pois em sua percepção “refere-se também aos oponentes de 2
Timóteo (2:17, Himeneu e Fileto; 4:14, Alexandre, o latoeiro) e a todos os
adversários do evangelho. THRALL. A Critical and Exegetical
Commentary on the Second Epistle of the Corinthians, 2004, S. 812.
[5]
Em hebraico שֵׂךְ. Alguns traduzem σκόλοψ como espinho ou
estaca, desta forma, equivalente a σταυρός
(cruz). Entretanto Martin afirma: A tradução mais comum de “espinho” é bem
atestada (ver LXX (Num 33:55; Ez 28:24; Os 2:6). Dizer que “estaca” implica a
intensidade do problema de Paulo, enquanto espinhos sugerem que tem uma aflição
superficial não é algo satisfatória. Além disso, retratar a situação sugerindo
que Paulo estava impotente em uma estaca, negligencia o poder que sentia estar
trabalhando nele. MARTIN,
Ralph P.: Word Biblical Commentary: 2
Corinthians. Dallas : Word, Incorporated, 2002, S. 412.