quinta-feira, 29 de novembro de 2018



“O ESPINHO NA CARNE” DE PAULO: SEU DOLOROSO CONFLITO COM OS FALSOS MESTRES.  




O enigmático “espinho na carne” de Paulo foi explicado de várias formas ao longo da história da interpretação. No período patrístico (100-451) Agostinho (354-430) o entendia como apontamento para os adversários do apóstolo que o perseguiam em Corinto. Posteriormente, os pensadores medievais (como Aquino) pela interpretação da Vulgata (... est mihi stimulus carnis 2Co.12:7 VUL) o definiam como uma “tentação sexual”. Já os reformadores (Lutero e Calvino) como uma “tentação espiritual”. Os mais modernos identificam este “espinho” como uma doença física, neste caso, oftalmia (baseado em Gl.4:13 e 6:11), epilepsia (com resultado da experiência que Paulo teve em sua conversão At.9:1-9) ou uma febre malárica (o apóstolo contraiu esta enfermidade na Panfília, pois, essa doença cobre todos os sintomas descritos por ele). Além disso, destaca-se outra categoria de sofrimento (psicológico), neste caso aquele que estava fundamentado na rejeição dos judeus ao evangelho (MARTIN. Word Biblical Commentary: 2 Corinthians, p. 414).[1]
Neste ensaio, a defesa delimitada entende o espinho na carne” de Paulo como apontamento ao seu doloroso conflito para com os falsos mestres. O desenvolvimento estrutural será construído pelos seguintes pontos: 1) a observância da tradução do texto com suas definições sintáticas, 2) o desenvolvimento do contexto lógico nas argumentações progressivas e 3) as definições conceituais de σκόλοψ τῇ σαρκί seguidas da conclusão.     
A tradução de 2Co.12:7 e suas considerações sintáticas. A problemática que envolve a tradução questiona, se  τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων (lê-se: tê hyperbolê tôn apokalýpseon, “a grandeza das revelações) está conectado a 12:6 como sua conclusão ou a 12:7 como o início de uma nova sentença? O diagrama com seus desdobramentos sintáticos nos ajudará inicialmente na compreensão da questão em voga.

DIAGRAMA: 12:6
φείδομαι δέ, - mas, abstenho-me
         μή τις εἰς ἐμὲ λογίσηται ὑπὲρ ὃ βλέπει με ἢ ἀκούει [τι] ἐξ ἐμοῦ       
           para que ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve
         καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων
         mesmo por causa das revelações extraordinárias.
DIAGRAMA: 12:7  
       καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων
         e por causa da excelência das revelações
             διὸ ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι,
             portanto, para que não me exaltasse
                ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί, ἄγγελος σατανᾶ,
                foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás
                 ἵνα με κολαφίζῃ,
                      para me esbofetear,
                 ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι
                      a fim de não me exaltar.
No primeiro diagrama, a tradução da expressão de καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων funciona da seguinte forma: “... mas deixo isto, para que ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve, mesmo por causa das revelações extraordinárias. No segundo diagrama a dinâmica (de καὶ τῇ ὑπερβολῇ τῶν ἀποκαλύψεων) é outra: E, para que não me exaltasse por causa da excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de não me exalte. O uso da conjunção inferencial διὸ (“portanto”) é o principal argumento da primeira alternativa, pois descreve onde está o início da nova sentença (“portanto, para que não me exaltasse”v.7). Entretanto, noutro viés, o dativo τῇ ὑπερβολῇ pode funcionar como referencial, instrumental ou causal (quanto à grandeza [...], pela grandeza [...], por causa da grandeza [...], foi me dado...), ligado a ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι, ἐδόθη μοι (“para que não me exaltasse, foi-me dado...”) Harris entende que “é mais natural relacionar ‘a grandeza das revelações’ ao recebimento do espinho, do que propriamente ao ato gloriar-se” (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, 2005, p. 853). Assim, podemos destacar que as “revelações extraordinárias” (BAGD. ὑπερβολή) são vistas mais naturalmente, como razão para a imposição do “espinho”. Certamente seria por conta dessas experiências, principalmente, que Paulo seria tentado a “exaltar-se”. Se 12.7a está conectado com 12.6b, então διό (“portanto”, de v.7b) deve relacionar-se logicamente com o todo dos versos em questão, mas isso não faria sentido (THRALL. A Critical and Exegetical Commentary on the Second Epistle of the Corinthians, 2004, S. 805). Com esses apontamentos que trazem luzes sobre a tradução, partiremos agora para pensar o contexto.
O desenvolvimento do contexto lógico. No contexto observamos o trato contínuo de Paulo para com seus opositores. Isto envolve sua defesa contra as acusações que destacavam seu “andar segundo a carne” (2Co.10:2) e sua “covardia”, pois diferentemente das cartas, “sua presença pessoal é fraca e sua palavra desprezível” (2Co.10:10). Além disso, a dinâmica que envolve o “gloriar-se” chancela a antítese entre o apostolo e seus opositores, os quais “louvam a si mesmos” (2Co.10:12). Esta postura é contrastada de algumas formas (2Co.10:13,15) e tem sua conclusão exposta em 2Co.10:17,18. Além do ataque dirigido aos falsos mestres, o apóstolo também o faz para com a indevida “tolerância” dos corintos, para com aqueles que pregavam “outro Jesus” (2Co.11:4,19). Isso está intrinsecamente ligado as demonstrações de amor do apóstolo para com a igreja (2Co.11:7-11). Assim, o retorno quanto ao “gloriar-se” torna-se real pela repetição quanto a diferenciação, neste sentido exposta anteriormente (2Co.10:12-15; 11:18-33). Em síntese os falsos mestres “se gloriam segundo a carne” e Paulo o fazia “em sua fraqueza”.
Nesse viés, 2Co.12:1 continua com o “gloriar-se” (καυχάομαι aparece 15 vezes entre 2Co.10-12),[2] descrevendo a experiência de Paulo como marca da veracidade de seu apostolado. Ainda assim, como explica Martin: “ele demonstra preocupação em não chamar atenção para si mesmo, falando em terceira pessoa. O apóstolo conhecia ‘esse homem’ que teve a visão celestial, contendo palavras, as quais não podem ser proferidas por ninguém” (MARTIN. Word Biblical Commentary: 2Corinthians, p.390). Os desdobramentos de 2Co.11:33;12:1-3,5 em primeira pessoa chancelam esta máxima. Em suma, como foi observado, a rejeição a auto recomendação está realmente em foco como sinal do verdadeiro apostolado, numa construção apologética feita com uma Aretologia. Esta pintura paulina funciona como reminiscência dos sofistas (MARTIN. Word Biblical Commentary: 2 Corinthians, p. 391).
Esta delimitação que envolve 12:1-10, pode ser estruturada da seguinte forma: (A) 12.1 introduz o tema das “visões e revelações”; (B) 12.2–6 descrevem a ascensão de Paulo ao paraíso; (C) 12.7–10 relata o subsequente recebimento do “espinho na carne” e o seu resultado  (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, 2005, S. 827). Não Podemos negar que a explicação dos conceitos desta passagem (como: τρίτου οὐρανοῦ, “terceiro céu”;  παράδεισος, “paraíso”) é realmente desafiadora, mas nossa questão neste ensaio focará somente uma destas complexidades que é entender o conceito σκόλοψ τῇ σαρκί (“espinho na carne”).  
Explicação do conceito: σκόλοψ τῇ σαρκί (“espinho na carne”) e conclusão. Para pensar a explicação do conceito em questão, observaremos suas ligações sintáticas descritas em 2Co.12:7. Em primeiro lugar, destacaremos a causa do “espinho na carne”. Desta forma, o dativo de causa ὑπερβολῇ (seguido do genitivo τῶν ἀποκαλύψεων lê-se: tê hyperbolê tôn apokalýpseon) chancela isto, em conexão com  ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί (lê-se: edóthe moi skólopsi tê sarkí), pois, expressa a seguinte construção: “...por causa da grandeza das revelações, foi me dado um espinho na carne...(NVI). O contexto (12:2-4) descreve o conteúdo que define “a grandeza das revelações” em foco (cf ὑπερβολή em 2Co.4:7,17). O plural ἀποκαλύψεων (“revelações”) corrobora com isto, por meio de sua ligação com o recebimento das “palavras” (ῥήματα, lê-se: rémata, 12:4), por mais que alguns pensem em outras experiências que pudessem estar em foco (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, 2005, p. 853).
Em segundo lugar, o propósito passa a ser a questão em foco. Neste caso, o ἵνα (lê-se: hína) introduz essa dinâmica de análise. Assim, a construção διὸ ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι, ἐδόθη μοι σκόλοψ τῇ σαρκί iniciada pela conjunção inferencial διὸ é seguida pelo ἵνα: portanto, para impedir que eu me exaltasse, foi me dado um espinho na carne (NAB). Esta rejeição está ligada “a grandeza da experiência”, a qual não podia funcionar como prerrogativa pessoal, funcionado como promoção do eu em detrimento da glória dirigida a Deus. Paulo nega isto, de forma antitética, também no contexto em relação aos falsos mestres (12:18,30). Em 2Ts.2:4 o apóstolo usa o mesmo verbo (ὑπεραίρομαι, lê-se: hyperaíomai), mas em relação ao Homem da iniquidade que “se exalta contra Deus”.
Em terceiro lugar, Paulo define σκόλοψ τῇ σαρκί (“ῇ σαρκί dativo incommodi[3] “contra a carne”) de forma apositiva com ἄγγελος σατανᾶ (lê-se: á[n]guelos satanâ), desta forma, pelo contexto parece apontar para os opositores de Paulo: “...foi me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás (ACF). Não podemos negar que esta tese tem suas complexidades como a difícil associação com 11:13-15. Os críticos explicam que em 11:14 “Satanás” é usado de forma pessoal, neste caso, os seus “servos” descrevem os falsos apóstolos. Além disso, o uso do singular de “Satanás” relacionado com o plural “falsos apóstolos” (cf. THRALL. A Critical and Exegetical Commentary on the Second Epistle of the Corinthians, 2004, p. 817).   
Ainda assim, destacamos a questão em foco como o conflito (Agostinho), e nesse viés a tese que envolve os opositores (como “o espinho”) tem amplo fundamento no contexto. Lemos isso em 2Co.10–13, onde encontramos a luta de Paulo contra seus adversários. Propriamente em 12:12 observarmos que o apóstolo está em conflito com aqueles que questionam seu apostolado. Em 11:13-15 entendemos este conflito com seus oponentes, como algo entre Deus e Satanás, ou seja, ele como um representante do Senhor e os falsos apóstolos como representantes de Satanás. Desta forma, segue-se que o uso do mensageiro é em referência a uma pessoa, não uma doença. Se isto é assim, então o uso de σκόλοψ (“espinho”) em 12:7 não deve ser entendido, como se referindo a alguma enfermidade física. (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text, 2005, S. 413).[4] Essa percepção tem substanciação também no contexto canônico. O substantivo σκόλοψ (“espinho”) aparece algumas vezes na LXX[5] e a partir disto, parece que Paulo faz alusão ao “espinho do lado de Israel” como apontamento aos cananeus que Deus deixou na terra, para impedir que Israel se exaltasse (Nm 33:55; Jz.2:3; cf. Js.23:13; Ez 28:24). Além disso, como no AT e na maioria dos pensamentos judaicos, Deus é soberano mesmo sobre Satanás e seus anjos (KEENER. InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament, 1993, S. 2Co 12:7).
Além deste aspecto, ἄγγελος σατανᾶ (“um mensageiro de satanás”) aparece positivamente e negativamente: ἵνα με κολαφίζῃ, ἵνα μὴ ὑπεραίρωμαι (“...para me esbofetear, a fim de não me exalte” ARA). A primeira destaca a veemência do sofrimento, pois o verbo  κολαφίζω (Lê-se: kolafízo) aparece cinco vezes no NT nesta dinâmica (Mt.26:67; Mc.14:65; 1Co.4:11; 2Co.12:7; 1PE.2:20). Este verbo  implica numa violência humilhante e seu tempo presente sugere que isso acontecia de forma persistente e repetida. A mesma palavra é usada para a agressão sofrida por Jesus em sua paixão (Mc.14:65; Mt.26:67), por isso, ao usa-la, Paulo pode estar conectando seus sofrimentos como apóstolo àqueles de Cristo” (GARLAND. 2 Corinthians, The New American Commentary 2001, p. 522). Propriamente aqui κολαφίζω (Lê-se: kolafízo) (2Co.12:7) pode ter sentido metafórico, por causa de seu sujeito (ἄγγελος). É importante lembrar o passivo-divino, pois se faz necessário identificar o agente da passiva de ἐδόθη (lê-se: edóthe, “foi dado”). Baker entende que este agente é o próprio Deus (BAKER. 2 Corinthians, The College Press NIV Commentary, 1999, S. 430). Entretanto, este verbo ἐδόθη parece estar ligado diretamente a ἄγγελος, desempenhando o papel em foco. Plummer é crítico a este pensamento, por causa de seu uso (ἑδόθη) que frequentemente aparece, concedendo favores Divinos como em Gl.3:21; Ef.3:8, 6:19; 1Tm.4:14 (PLUMMER. A Critical and Exegetical Commentary on the Second Epistle of St. Paul to the Corinthians, 1915, p. 348).
Depois de percorrer este caminho investigativo, algumas introdutórias conclusões podem ser expostas.  Em primeiro lugar, pelas considerações que envolvem o uso do dativo de causa e a naturalidade da leitura, adotamos a tradução que  pensa “a grandeza das revelações” ligada a 12:7. Em segundo lugar, pelos desenvolvimentos do contexto lógico, detectamos a forte ênfase no trato para com os falsos apóstolos. Os apontamentos em questão podem ser pensados na dinâmica do conflito. Em terceiro lugar, “o espinho na carne” visto em aposição com “um mensageiro de Satanás” parece definir o doloroso conflito de Paulo para com os falsos mestres. A base mais forte desta percepção parte das premissas contextuais.



[1] Ver também em: HARRIS, Murray J.: The Second Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.;  Milton Keynes, UK : W.B. Eerdmans Pub. Co.;  Paternoster Press, 2005, S. 858.
[2] 10:8,13,15,16,17; 11:12,16,18,30; 12:1,5,6,9.
[3] Sobre este uso do Dativo ver em: WALLACE Daniel. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento. São Paulo: Batista Regular, 2009, pp.142,143. ROBERTSON A.T. Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research, 2006, p.538. Disponível em: http://faculty.gordon.edu/hu/bi/ted_hildebrandt/new_testament_greek/text/robertson-greekgrammar.pdf. Acesso em 02/05/19 às 05:31.
[4] Crisóstomo (347-407) observa que Σατανᾶς significa “mensageiro” e estende essa identificação, pois em sua percepção “refere-se também aos oponentes de 2 Timóteo (2:17, Himeneu e Fileto; 4:14, Alexandre, o latoeiro) e a todos os adversários do evangelho. THRALL. A Critical and Exegetical Commentary on the Second Epistle of the Corinthians, 2004, S. 812.
[5] Em hebraico שֵׂךְ. Alguns traduzem σκόλοψ como espinho ou estaca, desta forma, equivalente a σταυρός (cruz). Entretanto Martin afirma: A tradução mais comum de “espinho” é bem atestada (ver LXX (Num 33:55; Ez 28:24; Os 2:6). Dizer que “estaca” implica a intensidade do problema de Paulo, enquanto espinhos sugerem que tem uma aflição superficial não é algo satisfatória. Além disso, retratar a situação sugerindo que Paulo estava impotente em uma estaca, negligencia o poder que sentia estar trabalhando nele. MARTIN, Ralph P.: Word Biblical Commentary: 2 Corinthians. Dallas : Word, Incorporated, 2002, S. 412.

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