A Monogamia da CRIAÇÃO (supracultural) e a Poligamia POSTERIOR (cultural) em Antítese vistas por uma relação com a GRAÇA DE DEUS: Alguns Apontamentos introdutórios sobre esta questão.
O presente ensaio exegético
tem como objetivo trabalhar a relação antitética existente entre a monogamia e
a poligamia. A metodologia para tal investigação passará
pela compreensão de dois textos que servirão de laboratório (Gn.2:24; Gn.16).
Em suma, a ideia fundante passará pela relação TESE-ANTÍTESE ou o elemento supracultural
e cultural visto nas informações textuais. Tal perspectiva tem conotação
pedagógica, de modo que, tenhamos diante de nós a clareza quanto a intertextualidade.
Finalmente, veremos a graça o funcionamento da graça de Deus nesta dinâmica.
De forma categórica lemos em Gn.2:24 o estabelecimento do casamento monogâmico/heterossexual. O texto acaba por funcionar numa dinâmica contextual em que alguns elementos são descritos. De forma, mais reduzida observamos o estabelecimento da mulher num viés distinto (2:21,22). Logo depois foi traga ao homem que disse: “esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada” (2:22). Nossa questão está fundamentada no comentário do narrador em 2:24:
“portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne” (דָבַ֣ק בְּאִשְׁתּ֔וֹ וְהָי֖וּ לְבָשָׂ֥ר אֶחָֽד׃).
Esta primeira expressão (“...e
apegar-se-á à sua mulher”) sugere que tanto a paixão quanto a
permanência devem caracterizar o casamento. O amor de Siquém é descrito como
“sua alma apegou-se a Diná” (Gn 34:3). As tribos de Israel têm a certeza de que
manterão sua própria herança; isto é, será deles permanentemente (Nm 36:7-9).
Israel é repetidamente exortado a “se apegar ao Senhor” (Dt 10:20; 11:22; 13:5,
etc.). O uso dos termos “abandonar” e “pegar” no contexto da aliança de Israel
com o Senhor sugere que o AT via o casamento também como uma espécie de aliança
(WENHAM. Vol. 1: Word Biblical Commentary: Genesis 1-15, p.71). Assim,
percebemos que o casamento heterossexual/monogâmico sempre foi visto como a
norma divina desde o início da criação. A instrução mosaica mostra esforços
consideráveis para salvaguardar esse ideal contra sua dissolução, esclarecendo
o que é “família”. A sexualidade foi fundamental para definir o que era uma
família em Israel; a abolição das fronteiras sexuais ameaçava a identidade
dessa instituição social central. Sem limites apropriados, a “família” cessou,
e a consequência foi a ruína de Israel como nação, o mesmo destino sofrido por
seus predecessores (Lv 18:24-30). Fortes proibições contra ofensas sexuais
muitas vezes prescreviam a pena de morte, como no caso dos pecados hediondos de
assassinato e idolatria (MATHEWS. Vol. 1A: Genesis 1-11:26, The New American
Commentary, p.224). Assim, o preceito em voga pode ser visto num viés
paradigmático para o estabelecimento do casamento com gêneros diferentes e um
só cônjuge, algo que acaba por expor o princípio da exclusividade.
A
primeira antítese ao padrão aparece em 4:19, quando o narrador fala de Lameque
(4:19), entretanto, talvez a questão mais problemática seja a postura de Sara e
Abraão em Gn.16. Algo que inicialmente é descrito num cenário em que “Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos
(depois de 10 anos que Abrão estava
morando em Canaã, 16:3), e ele tinha uma serva egípcia, cujo nome era Agar” (16:1).
Desta forma, observamos que Sarai teve uma ideia para resolver a dificuldade
em foco, mas tal percepção estava em antítese a Gn.2:24? Porquanto Abrão
teve relações com Hagar (16:4).
Para entender esta questão, passemos,
incialmente pelo background do texto. Assim, a plausibilidade da postura de
Sarai passa fato de que as escravas eram consideradas propriedades e extensões
legais de sua amante. Além disso, as concubinas não tinham o status pleno de
esposas, mas eram meninas que chegavam ao casamento sem dote e cujo papel
incluía ter filhos. Como resultado, o concubinato não seria visto como
poligamia. Em Israel, como na maior parte do mundo antigo, esta monogamia
era geralmente praticada. A poligamia não era contrária à lei ou aos padrões
morais contemporâneos ao tempo do texto, mas geralmente não era economicamente
viável. A principal razão para a poligamia seria que a primeira esposa era
estéril. Na Bíblia, a maioria dos casos de poligamia entre os plebeus ocorre
antes do período da monarquia (MATTHEWS, CHAVALAS, & WALTON, J. H. The
IVP Bible Background Commentary: Old Testament, Gn 16:4). Esta perspectiva
nos ajuda na compreensão do fundamento influenciados que os personagens tinham.
A forma como se via a ausência de filhos
funcionou como fundamento para a poligamia. Era um assunto sério para um homem
não ter filhos no mundo antigo, pois isso o deixaria sem herdeiro. Mas, era
ainda mais calamitoso para uma mulher: ter uma grande prole de filhos era a marca do sucesso como
esposa; não ter nenhum era um fracasso ignominioso. Assim, em todo o antigo Oriente, recorreu-se à poligamia
como meio de evitar a falta de filhos. Mas, as esposas mais ricas preferiam a
prática da maternidade de aluguel, por meio da qual permitiam que seus maridos tivessem
relações sexuais com suas empregadas, um eufemismo para estas relações sexuais (cf. 6:4; 30:3; 38:8, 9; 39:14). A amante podia
então sentir que o filho de sua empregada era seu e exercer algum controle
sobre ele de uma maneira que não poderia, se seu marido simplesmente tivesse
uma segunda esposa. Assim, Sarai expressa aqui a esperança de que pudesse “ter
filhos por meio dela”. “O verbo como está só pode significar “eu serei
edificado” (WENHAM. Vol. 2: Word Biblical Commentary: Genesis 16-50. Word
Biblical Commentary, p.7). Entretanto, a questão em foco passa pela identificação
do narrador quanto a aprovação ou desaprovação quanto a avaliação do ato de
Abrão e Sara.
Neste quesito Waltke afirma que Sarai, inicialmente
reconhece o Senhor como o Criador da vida; entretanto, não interpreta sua
infertilidade em termos da promessa de Deus. Sua queixa a condena por tirar a
iniciativa das mãos dele. Sem uma palavra de Deus a autorizar seu plano, Sarai
se faz culpada de sinergismo. Seu plano de lidar com o problema se compara ao
de Abraão em 12.11-13 (WALTKE. Gênesis, p.306). Dados os costumes
sociais do antigo Oriente Próximo, a sugestão de Sarai foi um curso de ação
perfeitamente adequado e respeitável. Portanto, é compreensível quando alguns
comentaristas supõem que o autor de Gênesis aprovava sua ação. No entanto, uma
leitura atenta do texto sugere o narrador considera sua ação um grande erro. Em
primeiro lugar, há a consideração geral de que a proposta de Sarai parece
ser a resposta humana normal ao problema da falta de filhos no mundo antigo,
enquanto a promessa de um herdeiro real em Gn.15:4 sugere que algo anormal
aconteceria. Segundo, a maneira como Sarai toma a iniciativa de resolver
um problema em vez de esperar pela intervenção do Senhor lembra a abordagem de
Abrão em 12:10-20, onde em uma situação difícil ele chamou Sarai de sua irmã. Em
terceiro lugar, muita atenção aos vs.2-3, porquanto sugerem a desaprovação
do narrador, pois ele claramente alude a Gênesis 3 (WENHAM. Vol. 2: Word
Biblical Commentary: Genesis 16-50. Word Biblical Commentary, p.7). Com
estes sintéticos apontamentos percebemos o lado da influência cultural dos personagens
definindo suas posturas, entretanto, o elemento supracultural que advém da
teologia da criação.
Ao observar essa relação TESE-ANTÍTESE pode
gerar alguma dificuldade, pois pode-se questionar: como Sarai e Abrão mesmo cometendo
esse pecado, tiveram acesso as ações de Deus? No contexto de Gn.16 o Anjo
do Senhor afirma a Hagar que deveria voltar a sua dona (Gn.16:9), além disso, a
narrativa no seu macro deixa claro que o Senhor continuou firme em Sua imutabilidade
quanto a promessa, ainda que as atitudes de Abrão e Sarai tenham sido antagônicas
ao padrão divino. Tal perspectiva acaba por gerar muita dificuldade para o legalista.
Entretanto, aqui temos claro diante de nós a importância da GRAÇA DE DEUS como substrato
inicial do aspecto relacional entre o homem e o SENHOR.
Vogt analisa esta questão, a partir do
Gênesis em alguns ocorridos no livro. Em primeiro lugar, na rebelião de
Adão e Eva (algo que gerou a perturbação do Shalom), pois Deus poderia ter
destruído suas criaturas e começado de novo, entretanto, Ele escolheu permitir
que suas criaturas teimosas vivessem. Com certeza esta é uma clara manifestação
da Sua graça. Talvez, a maior manifestação desta graça, segundo Vogt, venha do
chamado de Abrão (12:1-3). Tal perspectiva passa pelas afirmativas de todo o
Gênesis, onde os patriarcas são mostrados como criaturas frágeis, pequena e
propensas (como todos os humanos) a pecar. Apesar desta infame disposição dos
personagens, YHVH reitera Sua promessa de abençoar os descendentes de Abraão
para abençoar todas as nações e restaurar a criação à sua glória almejada
(VOGT. Interpretação do Pentateuco, p.77).
Longe de pretensões exaustivas este ensaio
procurou consolidar um modelo de diálogo antitético entre a monogamia e a poligamia
em construtos exegéticos. Foi possível ver que o “fato social” funcionava como
elemento direcionador. Tal direcionamento trazia considerações culturais,
entretanto, vistas numa contracultura pelo padrão presente na estrutura oriunda
da teologia da criação. Este exercício deve ser expandido para outros momentos
do AT, de modo que tenhamos uma ideia da antítese exposta.