domingo, 27 de outubro de 2019




“Toda Escritura (πᾶσα γραφὴ) é inspirada por Deus” (θεόπνευστος): Uma análise da Extensão e Qualificação singular da Escritura.  



Nos manuais de Teologia, 2Tm.3:16 tem certa proeminência, como substrato para provar que a Bíblia é “a comunicação verbalizada de Deus às Suas criaturas” (ARMSTRONG. Sola Scriptura, 2000, p.93). Reconhecemos neste ensaio, a importância deste pressuposto hermenêutico e partimos dele, para pensarmos, exegeticamente, 2Tm.3:16. Por isso, o roteiro em questão trará algumas problemáticas, a serem pensadas por dois elementos: a extensão: “Toda Escritura” (πᾶσα γραφὴ) aponta para que combinação: parte ou o inteiro do AT? O AT e o NT juntos? A qualificação: o adjetivo θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) tem conotação ativa ou passiva? Estas questões serão pensadas, a partir, de apontamentos exegéticos direcionadores.

πᾶσα γραφὴ (“Toda Escritura...”)
            Nossa primeira questão quanto a 3:16 é a extensão em foco: “toda Escritura”. Para tal análise passemos pelo texto grego, enfatizando o uso anarthro (sem artigo) da expressão: πᾶσα γραφὴ (lê-se: pâsa grafè). Neste viés, uma clarificação, quanto ao artigo no grego, deve ser observada, pois: “o nome pode ser definido se for anarthro e deve ser definido, se for articular” (WALLACE. Gramática Grega, 2009, p.243). Alguns estudiosos pensam este uso anarthro (πᾶσα γραφὴ) como definido. Robertson explica isto ao afirmar: “por duas vezes (1Pe.2:6; 2Pe.1:20) este γραφή (lê-se: grafé, “Escritura”) aparece no singular sem o artigo e ainda assim definido” (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, s.2Tm 3:16). Além disso, podemos questionar: o adjetivo anarthro πᾶσα (lê-se: pâsa, “toda”) aponta para algo partitivo ou holístico? O holístico parece ser mais coerente, pois, γραφή, se refere às Escrituras como um todo. Isso pode ser constatado em 2Pe.1:20 e frequentemente, mesmo quando uma passagem específica das Escrituras é citada. Vemos isto em 1Pe.2:6, por exemplo, pois, se diz que a passagem específica está “contida nas Escrituras”. O mesmo pode ser dito onde as Escrituras são personificadas (“as Escrituras dizem”) como em: Rm 4:3; 9:17; 10:11; Gl.4:30; 1Tm.5:18 (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.445).
          O contexto de 3:16 também deve ser considerado para a análise desta questão. Nele observarmos de forma paralela: [τὰ] ἱερὰ γράμματα (“as sagradas letras”) e πᾶσα γραφή (toda Escritura) funcionando numa conotação sinonímica. Quanto [τὰ] ἱερὰ γράμματα (“as sagradas letras”) esta expressão aparece somente aqui no NT e aponta para os escritos sagrados, os quais certamente referem-se às Escrituras judaicas, o AT (ARICHEA; HATTON: A Handbook on Paul's Letters to Timothy and to Titus, p.234). Este uso foi necessário, nesse contexto, provavelmente, por causa da origem judaica de Timóteo, já que a frase era usada entre os judeus de língua grega para designar o AT (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.443). Além disso, a expressão pode ter sido usada para enfatizar o caráter sagrado da aprendizagem de Timóteo, como um contraste total com as heresias estúpidas dos falsos mestres. Sendo assim, o aspecto pedagógico do pensamento judaico torna-se evidente aqui. A referência de Paulo às “sagradas Escrituras” em 3:15 é claramente uma declaração sobre o Antigo Testamento, algo continuado em 3:16 (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, pp.234,235).
      Essa constatação é correta pelo viés do contexto, mas, ainda assim, existem outros elementos que devem ser observados, os quais estão ligados ao poder das Sagras Escrituras (3:15). Antes deste postulado, o apóstolo reconhece a instrução dada a Timóteo, “desde a infância” (ἀπὸ βρέφους, genitivo adverbial de tempo), o que parece indicar por fontes rabínicas, que este ensino começava, a partir, do cinco ou seis anos de idade (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p.563). Talvez, esta prática tenha sido realizada por sua mãe, já que seu pai não era judeu (At.16:1). No restante de 3:15, o referido poder (τὰ δυνάμενά, “que podem”) das Sagradas Escrituras é construído numa progressividade distinta: ESCRITURA-SABEDORIA-SALVAÇÃO-FÉ  CRISTO. A frase εἰς σωτηρίαν (“para a salvação”) expressa o objetivo da instrução e do esforço cristão em geral [...] Provavelmente, a frase deva ser tomada amplamente com o precedente: todo o processo de vir à salvação pela fé. Corretamente entendido, o AT instrui no caminho cristão de salvação através da fé, mas, sem o conhecimento de Cristo e a devida fé nele, esta compreensão ficará prejudicada. Assim, se faz necessária uma interpretação cristã (MARSHALL; TOWNER. A Critical and Exegetical Commentary on the Pastoral Epistles, p.790).
Portanto, aqui começa a ser desenhado o estabelecimento do AT com o NT. O elemento comum a eles é justamente a salvação, διὰ πίστεως τῆς ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ (“...pela fé em Cristo Jesus”). Sobre isso Mounce afirma: A mensagem da salvação iniciada no AT tem sido cumprida no evangelho, e é isso que Timóteo deve pregar  (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p.564 [4:2]). Calvino é ainda mais enfático: “o apóstolo tem boas razões para lembrar-nos da fé que está em Cristo, a qual é o centro e a suma da Escritura(CALVINO João. Pastorais, p. 262). Desta forma, parece ser correta a percepção hermenêutica quanto a extensão “toda Escritura”, se dirigindo de forma holística ao AT juntamente com a hermenêutica cristológica presente no NT (cf. DOCKERY. Hermenêutica Contemporânea à Luz da Igreja Primitiva, 2001).  
 [πᾶσα γραφὴ] θεόπνευστος (“inspirada ou expirada”)  
Neste segundo momento, pensaremos a qualificação singular da Escritura exposta pelo adjetivo θεόπνευστος (lê-se: theópneystos). No léxico de Louw Nida este termo aparece no domínio “comunicação”, sendo desmembrado no subdomínio “pregar, proclamar”. Isso significa que pode ser visto como “algo relativo a comunicação que foi inspirada por Deus ou divinamente inspirada ou pode ser expresso ainda: Escritura, cujo escritor foi influenciado por Deus ou guiado por Ele (LOUW; NIDA. Léxico Grego- Português do NT, p.373). Como palavra composta θεόπνευστος é uma junção da palavra “Deus”, [θεὸς] e o verbo “respirar”, [πνέω]. Por esta razão, a tradução “inspirada por Deus”, embora sob a influência da Vulgata: “Omnis Scriptura Divinitus Inspirata” (MAIA. A Inspiração e Inerrância das Escrituras, 2008, p.64). Este θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) aparece somente aqui na Bíblia grega (hápax) e segundo Mounce “raramente pode ser encontrada na literatura pré-cristã” (MOUNCE. Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles, 2002, p. 565). Ainda assim, pelo contexto histórico observamos que a crença na inspiração da profecia e (geralmente em um sentido um pouco diferente), da poesia e da música era difundida na antiguidade mediterrânea. Essa crença foi aplicada naturalmente aos livros de profecia, e a maior parte do Antigo Testamento atribuída aos profetas. A reivindicação de Paulo pela inspiração das Escrituras corresponde às designações do Antigo Testamento para a lei e as profecias divinas como “Palavra de Deus”. Como o apóstolo, o judaísmo, virtualmente e universalmente, aceitava o Antigo Testamento como a Palavra de Deus (KEENER. InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament, 1993, S. 2Tm 3:16). Em suma, o caráter autoritativo da Escritura está em voga pelo viés lexical e histórico, pois descreve o papel de Deus como Seu autor.
Outra questão: θεόπνευστος (lê-se: theópneystos) deve ser visto como ativo ou passivo (θεὸς + πνέω – “Deus + respirar”)? Neste viés, a tradução pode passar por caminhos diferentes, pois, o verbo de ligação subentendido “é”, pode ser colocado depois de γραφή (“a Escritura é inspirada por Deus”) ou [depois] de θεόπνευστος (“a Escritura inspirada por Deus é ...”).  Para ser mais claro ainda estas diferenças afirmam: ativo no significado, sugerindo que toda a Escritura tem um efeito inspirador. Significado passivo, sugerindo que toda a Escritura tem sua origem em Deus, é o produto do Seu sopro (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, p.236)?
Portanto, como forma verbal passiva, indica que a fonte da Escritura é o sopro de Deus, ou seja, que a própria é um resultado dessa ação. (KNIGHT. The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, 1992, p.446). Warfield, talvez seja aquele que mais trabalhou esta questão, afirma o passivo, pois θεόπνευστος em sua percepção: “não indica que a Escritura foi aspirada por Deus ou que seja produto da inalação divina sobre Seus autores, mas que é soprada por Deus, produto do sopro criador de Deus” (WARFIELD. A Inspiração e Autoridade da Bíblia, 2010, p.107). A menção deste termo [θεόπνευστος] não é primariamente para definir a natureza da Escritura, mas para dar uma razão, para que seja útil e eficaz para as funções que são mencionadas.[1] Entretanto, esta é uma verdade que está fundamentada na autoridade da Escritura em si. Por isso, Calvino destaca uma ordem argumentativa mais fiel ao texto, pois primeiro, o apóstolo recomenda a Escritura por causa de sua autoridade; e a seguir por causa do benefício que dela advém (CALVINO João. Pastorais, p.262). Sendo assim, a autoridade final para um cristão deve ser a Palavra de Deus, que vem do Criador como [Palavra] unificadora da Sua aliança (ARMSTRONG John. Sola Scriptura, p.94). Este aspecto divino da Escritura apresenta assim, sua devida suficiência.[2] Assim, a idéia que o termo apresenta é que Deus soprou Seu caráter nas Escrituras, para que fosse, inerentemente, inspirada. Paulo não estava afirmando que as Escrituras são inspiradoras, porque, desta forma, inspiram informações sobre Deus. As Escrituras devem sua origem e distinção ao próprio Deus. Esse é o seu caráter permanente. Ao afirmar a inspiração das Escrituras, Paulo declarou este fato [teológico] sem discutir o processo pelo qual ocorreu sopro (LEA, Thomas; GRIFFIN. 1, 2 Timothy, Titus, NAC, 2001, p.236).
       Depois desta sintética trajetória, observamos algumas hipóteses sobre as problemáticas levantadas. Em suma, quanto a extensão, πᾶσα γραφὴ realmente, parece fazer referência ao AT, mas não sem a hermenêutica cristológica que estabelece uma leitura retrospectiva (ler o AT pela hermenêutica ensinada por Cristo, centrada Nele) dos escritores do NT. Em segundo lugar, trabalhamos θεόπνευστος como passivo, indicando que Deus soprou nas Escrituras Seu caráter. Isto diz respeito ao processo de Escrituração do texto num viés divino-humano (sem algo mecânico).



[1] ARICHEA, Daniel C.; Hatton, Howard: A Handbook on Paul's Letters to Timothy and to Titus. New York: United Bible Societies, 1995 (UBS Handbook Series; Helps for Translators), S. 235. Warfield explica esta percepção ao evocar a tese do Prof. Hermann Cremer, a qual afirma: “θεόπνευστος não indica a origem das Escrituras, mas seus efeitos - e não como inspirada por Deus, mas inspirando seus leitores”. WARFIELD Benjamin. A Inspiração e Autoridade da Bíblia, pp.197,198.  
[2] A Confissão de Fé de Westminster sobre isso afirma: VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm. Acesso em 16/08 às 09:56.

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