sábado, 10 de fevereiro de 2018




Ap.22:18,19: APOSTASIA DO CRENTE OU ADVERTÊNCIA QUANTO A INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA? As linhas exegéticas antitéticas de Grant Osborne (apostasia) e Gregory Beale (advertência)

SE ALGUÉM LHES FIZER QUALQUER ACRÉSCIMO, DEUS LHE ACRESCENTARÁ os flagelos escritos neste livro;  ἐάν τις ἐπιθῇ ἐπ᾽ αὐτά, ἐπιθήσει ὁ θεὸς ἐπ᾽ αὐτὸν τὰς πληγὰς τὰς γεγραμμένας ἐν τῷ βιβλίῳ τούτῳ, (Rev 22:18 BNT)
SE ALGUÉM TIRAR qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, DEUS TIRARÁ A SUA PARTE DA ÁRVORE DA VIDA...

O livro do Apocalipse tem muitas discussões em foco, as quais dividem os estudiosos há séculos. Isso se torna claro, quando observaremos os posicionamentos exegéticos de Ap.22:18,19, pensados de forma antitética por Grant Osborne e Gregory Beale (outros como Aune, Pohl, Kistemaker e Barton também serão usados nesta dinâmica). Neste ensaio analisaremos dialeticamente as posturas hermenêuticas destes referidos estudiosos, seguindo alguns caminhos. Estruturalmente trabalharemos com alguns elementos vistos de forma progressiva, funcionando como bússola: 1) a identificação do  narrador de 22:18 (análise contextual); 2) “a fórmula de juramento” como descrição precedente, 3) a quem foram dirigidas as palavras (destinatários) e “as fórmulas condicionais de maldição” vistas pelas teses de Osborne e Beale e 4) o efeito conclusivo.
Para identificarmos o narrador (ἐγ, “eu”), devemos nos voltar ao fluxo contextual, reduzindo a argumentação em voga, vista num continuísmo que define a amarração dos elementos discursivos precedidos. Nesse viés Beale entende que 22:6-21, “funciona como conclusão formal de todo o livro e está especialmente relacionado com a introdução (1:1–3), de maneira que ambos identificam o livro como comunicação de Deus”. Além disso, “destaca que existem ‘cinco exortações’ na marcação de limite descrito: 22:6,7; 22:8-10; 22:11,12; 22:13-17; 22:18-20” (BEALE. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, S.1122). Não são todos os estudiosos que veem a delimitação desta forma, pois pela percepção de Aune, 22:6-9 funciona como “transição contextual”, desta forma, “as duas extensas unidades textuais usam imagens femininas antitéticas: a primeira (17:1-19:10) se concentra em Roma-Babilônia sob a metáfora dominante de uma prostituta, enquanto a segunda (21:9-22:9) se concentra na escatológica, ou seja, a cidade de Deus, a Nova Jerusalém, sob a metáfora da noiva, a esposa do Cordeiro” (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1146). Assim, a consonância neste caso (Aune e Beale), pode ser destacada pelo elemento parentético já que “nada menos que oito dos quinze versículos finais ressaltam essa intenção através de exortações à obediência, bênçãos prometidas em resposta a uma vida santa, ou advertências de julgamento para a vida ímpia (vs. 7, 9, 11-12, 14-15, 18-19)”. Desta forma, “a introdução e o epílogo são semelhantes em descrever a exortação, a santidade e a advertência do juízo sobre os eventos revelatórios que virão” (BEALE. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1122). Num último apontamento Pohl destaca a repetição de  ἰδοὺ ἔρχομαι ταχύ (“eis que venho rapidamente”) em 22:7,12,20 presente na divisão proposta por ele: “O epílogo sublinha inicialmente a autoridade divina do livro nos vs. 6-9, depois sua atualidade vs.10-17 e finalmente sua vigência normativa na igreja vs.18-21(POHL. Comentário Esperança, Apocalipse De João; Comentário Esperança, Apocalipse, 2008, p. 477). A apropriação da conotação parentética proposta por Beale e Aune será usada de forma basilar nas conclusões desta ensaio.  
Com esta percepção, focaremos em duas questões: a identificação do locutor de Ap.22:18 e a fórmula de juramento?  O “eu” (ἐγ, lê-se: egó) de 22:18 tem significados distintos segundo alguns estudiosos. Basicamente, são três as possibilidades interpretativas, pois, “alguns pensam ser Jesus (22:16) outros João (22:8). Essas são as duas possibilidades mais usadas, entretanto, uma terceira aparece, nela o “eu” (ἐγ) aponta para as maldições dirigidas” (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1229). Ao olharmos o contexto mais próximo que destaca os usos do ἐγ (“eu”) nos versos 16 e 20, provavelmente, esteja apontando para Jesus (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.888).
Além disso, precisamos atentar para “a fórmula de juramento” emitida pelo Senhor (Μαρτυρῶ ἐγὼ - eu mesmo testifico” 22:18). Assim, o verbo usado na construção com o pronome “eu” (ἐγ), chancela a seriedade do que será dito. Aune explica que o “testifico” usado é uma das várias fórmulas de juramento usuais no Apocalipse, para introduzir ou concluir pronunciamentos proféticos. Propriamente aqui tem como objetivo, enfatizar a integridade da fórmula da passagem (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1229). Portanto, o cenário introdutório apresentado pelo Senhor Jesus, expõe a grandeza das informações apresentadas, quanto ao trato com a Palavra.
Depois destas preliminares que são fundamentais para nosso objetivo, pensaremos a problemática em questão: a quem foram dirigidas estas palavras? (... παντὶ τῷ ἀκούοντι τοὺς λόγους τῆς προφητείας τοῦ βιβλίου τούτου· - “todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro” - 22:18). Diante da gravidade das informações apresentadas pelo texto quanto as maldições, naturalmente podemos pensar, se estas palavras foram realmente dirigidas aos cristãos. A expressão usada no texto (“todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro”) está presente também em Ap.1:3 (“cenário litúrgico” - David Aune).[1] Assim, numa coesão lexical, pensaremos nestes leitores interpretes, primeiramente como os cristãos das sete igrejas da Ásia juntamente com àqueles que ensinavam heresias nelas (2:14b,20,21). Com esta perspectiva não deixamos de pensar a primazia exposta por Beale: “... as advertências em 22:18,19 não são dirigidas primariamente àqueles que estão fora da igreja, mas a todos na comunidade da igreja, pois como em Deuteronômio (4:1-9) as advertências foram dirigidas a todos os israelitas” (BEALE, G. K. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1152). Essa mensagem mostra como devemos lidar com a Palavra de Deus (não somente o Apocalipse). O cuidado em não ser desonesto hermeneuticamente deve ser imenso. Como afirma Osborne: “todos nós somos responsáveis por nos empenharmos em interpretar o livro de acordo com o sentido pretendido por Deus” (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.890).   
Nessa dinâmica que envolve o apreço pela fuga do pecado que envolve a interpretação errada das Escrituras, voltemo-nos para a fórmula condicional de maldição (Aune) que aparece em duas construções (Prótase e Apódase): 1) ἐάν τις ἐπιθῇ [...] ἐπ᾽ αὐτά, ἐπιθήσει ὁ θεὸς καὶ 2) ἐάν τις ἀφέλῃ [...], ἀφελεῖ ὁ θεὸς... (Se alguém acrescer [...] Deus acrescentará... se alguém tirar [...] Deus tirará... 22:19). O texto expõe o paralelo entre “acrescer” (ἐπιθῇ) e “tirar” (ἀφέλῃ), mas como entender estas ações? Elas focam o que necessariamente?
Primeiramente observemos a ligação desse texto com o AT, assim, a resposta deve ser procurada inicialmente em Deuteronômio, pois em 4:1,2 e 12:32 a linguagem denota uma dupla advertência contra o ensino enganoso, o qual afirmava que a idolatria não era incompatível com a fé no Deus de Israel. Aqueles que enganam dessa forma são falsos profetas (Dt.13:1-18). Esse ensino falso corresponde a acrescentar algo a lei de Deus, uma vez que viola as prescrições positivas contra a idolatria (BEALE G.K ; CARSON.D.A. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, 2014, p.1409).


Além disso, podemos ligar este texto a Gl.1:6-8, entendendo que a proibição, de se pregar “outro evangelho” (ἕτερον εὐαγγέλιον), seria a questão aqui. Em terceiro lugar, pensando no próprio Apocalipse, poderíamos entender que estas ações estão relacionadas aos ensinos heréticos presentes nas igrejas da Ásia (Ap.2:6,14,20). Finalmente uma referência aos copistas que cometiam erros ao copiar o manuscrito de forma deliberada (KISTEMAKER Simon. Comentário do Novo Testamento Apocalipse, 2014, p.773).  Osborne nessa mesma dinâmica entende que essa passagem se refere a uma pessoa que usa o Apocalipse, para reestruturar a fé cristã como fazem algumas seitas, da mesma forma que os nicolaítas dos dias de João (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.888). Podemos então, pensar no “acrescer” ou “tirar” como desvios hermenêuticos, os quais adulteram a verdade singular que emana da Palavra de Deus.   
A outra parte desta fórmula condicional (prótase e apódase) chancela os atos futuros do próprio Deus (“acrescerá e tirará” - paranomásia).[2] No primeiro “os flagelos escritos no Apocalipse” serão acrescidos. Essas pragas são atormentadoras em seus registros (9:18-20; 11:6; 15:1,6,8; 16.9,21; 18:4,8). Osborne as pensa como juízos temporais (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.891). No segundo “a parte da árvore da vida, da cidade santa e das coisas escritas no Apocalipse”, tudo isso o próprio “Deus tirará”. Isso nos leva a questionar: esta ação divina deve ser entendida de que forma? Aponta para a apostasia ou advertência?
Inicialmente, observemos a percepção interpretativa de Osborne que ao comentar esta passagem, conclui que os juízos citados apontam para a apostasia. Ele entende que: “a apostasia é um tema teológico válido, e eu sustentaria a possibilidade de crentes perderem sua fé, com base em trechos paralelos de Jo.15:1-8; Hb.2:1-4; 10:26-31; Tg.5:19,20; 2Pe.2:20,21; 1Jo.5:16” (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.891). Assim, nesta linha não teríamos dificuldade em afirmar que o ensino do texto foca a radical mudança de salvo para condenado. A real possibilidade de alguém perder a salvação por causa dos desvios hermenêuticos que trabalham em antítese a verdade que emana da Palavra.
De outro lado Gregory Beale anexa outra possibilidade, quando questiona: ... essa punição divina está sendo dirigida aos que reivindicam ser cristãos, mas nunca tiveram uma fé verdadeira? (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, P. 1153). Por isso, a necessidade de tal advertência para os cristãos, incluindo escribas cristãos, é aparente por aqueles que “distorceram” as cartas de Paulo e “o restante das Escrituras para sua própria destruição” (2Pe.3:16). A advertência também é aparente dos primeiros gnósticos, que avançaram seu falso ensinamento adicionando ou eliminando material dos livros do NT (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1154). Ao olharmos para Ap.13:8;17:8,14 teremos algumas respostas, as quais funcionam como refutações a apostasia:

...e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. (Ap.13:8)
E aqueles que habitam sobre a terra, cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo, se admirarão, vendo a besta que era e não é, mas aparecerá (Ap.17:8).
Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com ele. (Ap. 17:14)

No mínimo por estes textos é possível afirmar que a decisão quanto a salvação foi tomada primeiramente por Deus em Cristo. Isso nos ajuda a entender a questão da garantia e imutabilidade do que foi doado. Pensar em oposição as referências indicadas, seria transformá-las em simples probabilidades. Além disso, o contexto canônico nos ajuda a entender nossa relação com a verdade, como algo que emana da ação do Espírito Santo (1Co.2:12,14). Além disso, a continuação desta postura é justamente o elemento que distingui a verdadeira igreja (1Jo.2:19,20).
Finalmente, ao nos voltarmos para o Apocalipse encontramos em 3:5 a seguinte afirmação: “O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida; pelo contrário, confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos”. As dinâmicas de confirmações textuais asseguram a veracidade da tese de Beale. A heresia faz parte das convicções daqueles que não foram escolhidos, chamados por Deus e não comprovam, automaticamente, em seus testemunhos a fidelidade exigida.
Depois de percorrer este caminho investigativo, observamos em primeiro lugar, a relação de Ap.22:18,19 com Dt.4. Essa junção mostra o foco exortativo apresentado a igreja. Em segundo lugar, a condenação pelas antíteses hermenêuticas é chancelada, as quais estavam presentes nos ensinos dos falsos mestres. Para a igreja esta advertência faz com que pensemos na seriedade e importância em ser um “leitor intérprete” (ouvinte intérprete no 1º séc.). Finalmente, a garantia da salvação destacada no contexto remoto do Apocalipse expõe a imutabilidade da salvação e da questão epistemológica que envolve o paradigma revelacional que destaca a ação do Espírito Santo que nos fez entender verdadeiramente a Palavra.  



[1] O verboἀναγινώσκω usado em 1:3 (o cognato ἀνάγνωσις aparece em Tm.4:13) torna-se fundamental como elemento probatório desta tese.(Ao ajo da igreja é o pastor). Isso se deve a sua tradução que é ler algo que está escrito, normalmente em voz alta, ou seja envolvendo expressão de viva voz (LOUW; NIDA, Léxico Grego- Português do Novo Testamento Baseado em Domínios Semânticos, p.355). Assim, podemos parafrasear 1:3 da seguinte forma: “bem-aventurado o que lê em voz alta e os que ouvem e os que guardam...” (Ap.1:3).
[2] Osborne entende a paranomásia como “figura de acréscimo ou de plenitude expressão”. Sua definição é a seguinte: “paranomásia se refere às palavras semelhantes no som e colocadas lado a lado no texto, para dar ênfase. Muitas vezes, as palavras são escolhidas para chamar a atenção do leitor e comunicar a mensagem com eficácia”. OSBORNE Grant. Espiral Hermenêutica: Uma Nova Abordagem a Interpretação Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, pp.156,157.    

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018


REFUTAÇÃO A TRADUÇÃO DE Rm.9:5 PRESNTE NA TNM QUE DESCONSIDERA QUE “CRISTO É DEUS”.  

Rm.9:5: ὁ Χριστὸς τὸ κατὰ σάρκα, ὁ ὢν ἐπὶ πάντων θεὸς εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας, ἀμήν

“... o Cristo segundo a carne. Deus, que está sobre tudo, seja louvado para sempre. Amém” (TNM).

“... Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém” (NVI

 

Neste ensaio focaremos nas questões oriundas da língua grega, para negarmos a tradução de 9:5 presente na TNM. Mas, por estarmos cientes de que a exegese não funciona num vácuo, traremos uma síntese teológica do tema teológico: trindade. Na verdade, este tema será visto com considerandos presentes na história do pensamento cristão. A defesa em foco aqui substancia, numa dimensão interpretativa, a divindade de Cristo como Deus.

A doutrina da Trindade passou por definições disntintas ao longo da história do pensamento cristão. Inicialmente, certas elaborações funcionaram numa dinâmica apologética (combate contra as heresias no período da patrística) e culminaram na conclusão de Niceia (325 d.C): “o símbolo de fé, onde a profissão de fé no mistério da Trindade confessa a existência de um só Deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo”. Agostinho (354 – 430), nesse mesmo viés, pensa numa “unidade divina realizada pela inseparável igualdade de uma única substância” (AGOSTINHO. A Trindade, 2016, p.31). No período da reforma, Calvino (1509-1564) com suas formulações sobre este tema, usa o termo “essência”, para expor suas percepções, pois “o que ensina na Escritura sobre esta essência infinita e espiritual de Deus deve valer tanto para destruir os delírios do vulgo quanto para refutar a filosofia profana” (CALVINO. A Instituição da Religião Cristã, 2007, p.114). Neste ensaio focaremos no que afirma Agostinho: “primeiramente [...] é preciso demonstrar pela autoridade das santas Escrituras, a certeza da nossa fé” (AGOSTINHO. A Trindade, 2016, p.27). O texto de Rm.9:5 funciona desta forma, numa dinâmica agostiniana.

O uso desta passagem em foco está fundamentada na associação singular entre Χριστὸς e θεὸς (termo usado na LXX para traduzir o tetragrama יהוה).[1] Entretanto, a problemática quanto a associação citada é a tradução, pois, em 9:5   (Χριστὸς τὸ κατὰ σάρκα, ὁ ὢν ἐπὶ πάντων θεὸς εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας, ἀμήν) a doxologia é dirigida a quem: Χριστὸς ou θεὸς? A TNM diferente de outras versões em português[2] entende que é dirigida a Deus: “... o Cristo segundo a carne. Deus, que está sobre tudo, seja louvado para sempre. Amém”.[3] Vemos esta tradução não condizente por alguns substratos distintos.

Nossa tarefa que prima por relacionar o dogma ao texto, passa inicialmente pela compreensão contextual de Rm.9:5. Para tal observemos o texto em seu continuísmo: ... ὧν οἱ πατέρες καὶ ἐξ ὧν ὁ Χριστὸς τὸ κατὰ σάρκα, ὁ ὢν ἐπὶ πάντων θεὸς εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας, ἀμήν (“... dos quais deles são os pais, dos quais é o Cristo segundo a carne, sobre todos DEUS bendito para sempre amém”). Basicamente pela linha do contexto lógico duas questões são trabalhadas: [1] a veracidade e intensidade da “dor” que Paulo sentia por seus compatriotas (Rm.9:1-3) e [2] a identificação e descrição destes compatriotas (Rm.9:4,5).  

       Paulo não usa nenhum tipo de conexão aparente (assíndeto) na transição para Rm.9:1[4], mas somente declara: “Digo a verdade, e não minto...”. Desta maneira as discussões precedentes foram concluídas e segundo Runge “o escrito não necessita de um tipo de relação entre as cláusulas” (RUNGE. Discourse Grammar of the Greek New Testament: A Pratical Introduction for Teaching and Exegesis, p.20).  Além disso, a questão iniciada em 9:1, pode ser uma correção quanto a percepção dos judeus daquela época, os quais tratavam Paulo como inimigo deles[5] (CALVINO. Comentário à Sagrada Escritura, Romanos, 2001, p.322.). Nesse viés, o apóstolo, neste capítulo, começa com uma série de provas quanto ao seu grande pesar e incessante “dor em seu coração” com referência a seu próprio povo (PFEIFFER; HARRISON. The Wycliffe Bible Commentary: New Testament, 1962, s. Rm 9:6.). Ao caminharmos mais um pouco, em Rm.9:3 fica clara a direção destes verdadeiros sentimentos de Paulo, quando afirma: “... por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne. Assim, descreve primeiro os judeus como “meus irmãos”, um termo que geralmente é usado (no corpo paulino) para os cristãos.[6] Entretanto, o apóstolo ainda faz parte da mesma comunidade com outros judeus, e devemos notar com isso, por meio da expressão: “segundo a carne”. Além disso, “meus compatriotas” [7] indica que havia laços que o ligavam à sua nação, evidente que ainda assim, via seus relacionamentos em Cristo como muito mais significativos do que esses, mas, isso não lhe impediu de esquecer-se da raça a que pertencia (MORRIS. The Epistle to the Romans, 1988, p. 347). A abrangência desta identificação (Rm.9:4,5) é exposta, por meio de certas indicações, algumas terminológicas outras pessoais. Assim, aos israelitas pertencem “a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas” (Rm. 9:4) e “deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo” (Rm.9:5).[8] Depois destas afirmações, a conclusão em forma de doxologia (dependente) expõe que “Cristo é Deus”. De que forma podemos entender isto?

Cabe inicialmente observar, pela análise dos conceitos o amplo uso de θεὸς no NT (1307 vezes). Entretanto, no contexto de Rm.9 sua delimitação envolve qualificações genitivas (vs.6,8,11,16,26), dativas (vs.14,20) e usos nominativos (vs.5,22). Este contexto sintático descreve a veracidade e singularidade, no qual θεὸς aparece em Rm.9. O primeiro uso neste capítulo será o alvo de nossa análise, o qual numa síntese com o contexto, segundo Kenner demonstra que “as bênçãos que Paulo atribuiu aos crentes em Jesus (8:2,15,18,29) pertenciam a Israel, de acordo com o Antigo Testamento. Reconhecendo Cristo como Deus, Paulo enfatiza ainda mais enfaticamente: o próprio Deus veio à humanidade através de Israel” (KEENER.  InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament, 1993, S. Rm 9:4). Essa tese passa por algumas comprovações que envolvem os nominativos Χριστὸς e θεὸς pelo substrato sintático, funcionando numa estruturação distinta. Pelo diagrama observamos a ligação com o precedente e aquelas presentes no próprio verso: 

(Ἰσραηλῖται)

        ὧν ἡ υἱοθεσία [...] “Israelitas dos quais é a adoção” [...]

       ὧν οἱ πατέρες  “dos quais são os pais”

       καὶ ἐξ ὧν ὁ Χριστὸς τὸ κατὰ σάρκα, e dos quais é o Cristo segundo a carne

                         ὢν ἐπὶ πάντων θεὸς εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας, ἀμήν.   

                             que é sobre todos, Deus bendito para sempre amém”.

 

A ligação entre  Χριστὸς  e θεὸς  tem sido problematizada na tradução, pois, são trabalhadas duas possibilidades: 1) A NVI traduz de forma dependente (usando a vírgula): “... Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém”. De outro lado, a TNM o faz de forma  independente (usando o ponto final): “o Cristo segundo a carne. Deus, que está sobre tudo, seja louvado para sempre. Amém”. A conclusão quanto a esta especificidade produzirá importantes conclusões teológicas. A defesa em voga neste ensaio pensa na primeira tradução como mais coerente.

“Cristo que é Deus” (NVI) faz mais sentido por algumas razões: 1) esta é a leitura mais natural e 2) está de acordo com o estilo paulino presentes em outros lugares (1:25; 2Co.11:31; Gl.1:5; 2Tm.4:18). Além disso, 3) numa doxologia independente (tradução da TNM), se espera que εὐλογητός (“bendito”) venha primeiro como em Lc.1:68; 2Co.1:3; Ef.1:3; 1Pe.1:3 (DUNN. Word Biblical Commentary: Romans 9-16, 2002, S.528).  O discurso em si, nesse formato doxológico, se fosse aplicado a Deus (como na TNM), mudaria de assunto de forma abrupta. O diagrama nos ajuda na compreensão desta percepção. Em último lugar, Bruce Metzger levanta alguns pontos que devem ser observados: 1) A interpretação que toma a construção da doxologia como assindética (quebrando os conectivos), sendo dirigida a Deus Pai é atrapalhada e antinatural. Na verdade as doxologias paulinas nunca são assindéticas, mas sempre se ligam aos precedentes como em:

ὅς ἐστιν εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας, ἀμήν - “... que é bendito eternamente amém”, Rm. 1:25;

ὁ ὢν εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας – “... que é bendito eternamente amém” 2Co 11:31;

 ᾧ ἡ δόξα εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων, ἀμήν – “... a quem seja a glória pelos séculos dos séculos amém” Gl.1:5.

Outra questão é 2) a presença do particípio (ὢν, “que é”) que sugere o funcionamento da cláusula como relativa (não “aquele que é…”, mas “quem é…”), descrevendo ὁ Χριστός (o Cristo) como “Deus sobre todos”. (METZGER; United Bible Societies: A Textual Commentary on the Greek New Testament, 1994, S. 461).  

Depois destes apontamentos sintáticos, a conclusão quanto ao texto em seu contexto “indica a fé total que confessamos: nosso Senhor, pelo fato de assumir a carne, é filho do homem e, segundo a eternidade, é o Verbo no princípio, Deus bendito acima de todos os séculos (AGOSTINHO. A Explicação de Algumas Proposições da Carta de Romanos, 2016, p.29). Assim, Ele não é uma criatura, mas era, é e permanece Deus, “que é sobre todos, bendito para sempre”  (BAVINK. The Doctrine of God, 1979, p.271). Essas considerações são conjugadas ao contexto, indicando a principal coisa que o povo judeu não conseguiu perceber, a divindade do Cristo. Paulo quer que seu povo entenda quem estão rejeitando, pois não é somente o Messias, mas o próprio Deus. Portanto, ὁ Χριστός (o Cristo) deve ser visto como digno de louvores eternos, e Paulo em 10:1–13 conclama os judeus a fazerem exatamente isso. O “Amém” forma uma afirmação normal de fechamento da validade da adoração como em Rm.1:25; 11:36; 15:33; 16:27 (OSBORNE. Romans IVP, S. 240).  

Depois de percorremos este caminho investigativo com elementos da pesquisa exegética, estabelecemos alguns pontos de fundamentação para o pressuposto hermenêutico em questão. Em primeiro lugar, a delimitação contextual, a qual nos fez entender a tratativa em questão sob um viés mais amplo com desdobramentos pontuais. Em segundo lugar, os levantamentos quanto a alguns considerandos de 9:5, os quais permitem uma leitura em associação de Χριστὸς com θεὸς, sendo que o segundo funciona como qualificador (“substância ou essência”) do primeiro. Esta passagem nos é cara, pois tem sua singularidade declarada no NT por essa dinâmica. Portanto, de forma introdutória entendemos a divindade de Cristo textualmente (ele é Deus) e estabelecemos o diálogo do Dogma com a Exegese, ou seja, “a dimensão interpretativa da teologia e a dimensão teológica da interpretação”.



[1] Como em Gn.2:5,7; Êx.4:1.

[2] Algumas: “... o Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém(ACF, ARC). “...o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém! (ARA). “... Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém” (NVI). 

[4] Sanday e Headlam explicam isso: “Talvez tenha havido uma pausa na redação da Epístola, o amanuense suspendeu por algum tempo seus trabalhos. Notamos também que Paulo não segue aqui seu hábito geral de declarar o assunto que vai discutir (como ele faz, por exemplo, no começo do capítulo 3), mas permite que se torne gradualmente evidente”. SANDAY, W.; HEADLAM, Arthur C.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans. 3d ed. New York : C. Scribner's sons, 1897, p. 226. A ausência de uma conjunção aqui definida como construção em “Assíndeto”. Runge o explica: “o uso do Assíndeto indica que o escrito não sente necessidade para especificar algum tipo de relação entre as cláusulas”. Além disso, pode ser usado para apontar um descontinuísmo como início de novo pensamento ou tópico. RUNGE Steven. Discourse Grammar of The Greek New Testament. Massachusetts: Hendrickson Publishers Marketing, 2010, pp.20,22.    

[5] Cf. Rm.2-3:1-8

[6] Na verdade, este é o único lugar onde Paulo usa o termo sendo ligado aos judeus.

[7] Este termo (συγγενής) aparece onze vezes no NT: Mc.6:4; Lc.1:58; 2:44; 14:12; 21:16; Jo.18:26; At.10:24; Rm.9:3; 16:7,11,21.

[8] A adoção” (υἱοθεσία aparece cinco vezes no NT: Rm.8:15,23; 9:4; Gl.4:5; Ef.1:5) denota o fato de Israel ter sido escolhido, para ser filho de Deus (Dt.14:1; Is.43:6; Jr.31:9; Os.1:10). Quanto “a glória” é uma referência clara a que pertence “ao Senhor”, particularmente, apontando as teofanias que tinham privilegiado de forma especial a Israel como povo de Deus (Êx.16:10; 24:15–17; 40:34–35; Lv.9:23; Nm 14:10). As alianças” chancelam aquilo que é exprimido com palavras solenes, e contém uma obrigação mútua (Gn.6:18; 9:9; 15:8; 17:2,4,7; Êx.19:5, CALVINO João. Comentário à Sagrada Escritura, Romanos, p.328). “A legislação (νομοθεσία aparece somente aqui em toda a Bíblia. Não consideramos os usos em Macabeus) aponta para as coisas que a lei decreta. De certa forma, isso está ligado ao “culto”, pois esse fundamentava-se nas prescrições do Senhor em Sua Palavra (CALVINO João. Comentário à Sagrada Escritura, Romanos, p.328). Quanto “as promessas” feitas no AT referendam em especial à vinda do Messias”. Elas foram feitas aos judeus inicialmente (SANDAY, W.; HEADLAM, Arthur C.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans, p. 231). Em penúltimo lugar, observamos que de Israel vieram “os patriarcas”, ou seja, aqueles homens chamados por Deus na dinâmica da história da redenção (Abraão, Isaque, Jacó).


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