sábado, 10 de fevereiro de 2018




Ap.22:18,19: APOSTASIA DO CRENTE OU ADVERTÊNCIA QUANTO A INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA? As linhas exegéticas antitéticas de Grant Osborne (apostasia) e Gregory Beale (advertência)

SE ALGUÉM LHES FIZER QUALQUER ACRÉSCIMO, DEUS LHE ACRESCENTARÁ os flagelos escritos neste livro;  ἐάν τις ἐπιθῇ ἐπ᾽ αὐτά, ἐπιθήσει ὁ θεὸς ἐπ᾽ αὐτὸν τὰς πληγὰς τὰς γεγραμμένας ἐν τῷ βιβλίῳ τούτῳ, (Rev 22:18 BNT)
SE ALGUÉM TIRAR qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, DEUS TIRARÁ A SUA PARTE DA ÁRVORE DA VIDA...

O livro do Apocalipse tem muitas discussões em foco, as quais dividem os estudiosos há séculos. Isso se torna claro, quando observaremos os posicionamentos exegéticos de Ap.22:18,19, pensados de forma antitética por Grant Osborne e Gregory Beale (outros como Aune, Pohl, Kistemaker e Barton também serão usados nesta dinâmica). Neste ensaio analisaremos dialeticamente as posturas hermenêuticas destes referidos estudiosos, seguindo alguns caminhos. Estruturalmente trabalharemos com alguns elementos vistos de forma progressiva, funcionando como bússola: 1) a identificação do  narrador de 22:18 (análise contextual); 2) “a fórmula de juramento” como descrição precedente, 3) a quem foram dirigidas as palavras (destinatários) e “as fórmulas condicionais de maldição” vistas pelas teses de Osborne e Beale e 4) o efeito conclusivo.
Para identificarmos o narrador (ἐγ, “eu”), devemos nos voltar ao fluxo contextual, reduzindo a argumentação em voga, vista num continuísmo que define a amarração dos elementos discursivos precedidos. Nesse viés Beale entende que 22:6-21, “funciona como conclusão formal de todo o livro e está especialmente relacionado com a introdução (1:1–3), de maneira que ambos identificam o livro como comunicação de Deus”. Além disso, “destaca que existem ‘cinco exortações’ na marcação de limite descrito: 22:6,7; 22:8-10; 22:11,12; 22:13-17; 22:18-20” (BEALE. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, S.1122). Não são todos os estudiosos que veem a delimitação desta forma, pois pela percepção de Aune, 22:6-9 funciona como “transição contextual”, desta forma, “as duas extensas unidades textuais usam imagens femininas antitéticas: a primeira (17:1-19:10) se concentra em Roma-Babilônia sob a metáfora dominante de uma prostituta, enquanto a segunda (21:9-22:9) se concentra na escatológica, ou seja, a cidade de Deus, a Nova Jerusalém, sob a metáfora da noiva, a esposa do Cordeiro” (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1146). Assim, a consonância neste caso (Aune e Beale), pode ser destacada pelo elemento parentético já que “nada menos que oito dos quinze versículos finais ressaltam essa intenção através de exortações à obediência, bênçãos prometidas em resposta a uma vida santa, ou advertências de julgamento para a vida ímpia (vs. 7, 9, 11-12, 14-15, 18-19)”. Desta forma, “a introdução e o epílogo são semelhantes em descrever a exortação, a santidade e a advertência do juízo sobre os eventos revelatórios que virão” (BEALE. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1122). Num último apontamento Pohl destaca a repetição de  ἰδοὺ ἔρχομαι ταχύ (“eis que venho rapidamente”) em 22:7,12,20 presente na divisão proposta por ele: “O epílogo sublinha inicialmente a autoridade divina do livro nos vs. 6-9, depois sua atualidade vs.10-17 e finalmente sua vigência normativa na igreja vs.18-21(POHL. Comentário Esperança, Apocalipse De João; Comentário Esperança, Apocalipse, 2008, p. 477). A apropriação da conotação parentética proposta por Beale e Aune será usada de forma basilar nas conclusões desta ensaio.  
Com esta percepção, focaremos em duas questões: a identificação do locutor de Ap.22:18 e a fórmula de juramento?  O “eu” (ἐγ, lê-se: egó) de 22:18 tem significados distintos segundo alguns estudiosos. Basicamente, são três as possibilidades interpretativas, pois, “alguns pensam ser Jesus (22:16) outros João (22:8). Essas são as duas possibilidades mais usadas, entretanto, uma terceira aparece, nela o “eu” (ἐγ) aponta para as maldições dirigidas” (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1229). Ao olharmos o contexto mais próximo que destaca os usos do ἐγ (“eu”) nos versos 16 e 20, provavelmente, esteja apontando para Jesus (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.888).
Além disso, precisamos atentar para “a fórmula de juramento” emitida pelo Senhor (Μαρτυρῶ ἐγὼ - eu mesmo testifico” 22:18). Assim, o verbo usado na construção com o pronome “eu” (ἐγ), chancela a seriedade do que será dito. Aune explica que o “testifico” usado é uma das várias fórmulas de juramento usuais no Apocalipse, para introduzir ou concluir pronunciamentos proféticos. Propriamente aqui tem como objetivo, enfatizar a integridade da fórmula da passagem (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 17-22, 2002, p.1229). Portanto, o cenário introdutório apresentado pelo Senhor Jesus, expõe a grandeza das informações apresentadas, quanto ao trato com a Palavra.
Depois destas preliminares que são fundamentais para nosso objetivo, pensaremos a problemática em questão: a quem foram dirigidas estas palavras? (... παντὶ τῷ ἀκούοντι τοὺς λόγους τῆς προφητείας τοῦ βιβλίου τούτου· - “todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro” - 22:18). Diante da gravidade das informações apresentadas pelo texto quanto as maldições, naturalmente podemos pensar, se estas palavras foram realmente dirigidas aos cristãos. A expressão usada no texto (“todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro”) está presente também em Ap.1:3 (“cenário litúrgico” - David Aune).[1] Assim, numa coesão lexical, pensaremos nestes leitores interpretes, primeiramente como os cristãos das sete igrejas da Ásia juntamente com àqueles que ensinavam heresias nelas (2:14b,20,21). Com esta perspectiva não deixamos de pensar a primazia exposta por Beale: “... as advertências em 22:18,19 não são dirigidas primariamente àqueles que estão fora da igreja, mas a todos na comunidade da igreja, pois como em Deuteronômio (4:1-9) as advertências foram dirigidas a todos os israelitas” (BEALE, G. K. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1152). Essa mensagem mostra como devemos lidar com a Palavra de Deus (não somente o Apocalipse). O cuidado em não ser desonesto hermeneuticamente deve ser imenso. Como afirma Osborne: “todos nós somos responsáveis por nos empenharmos em interpretar o livro de acordo com o sentido pretendido por Deus” (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.890).   
Nessa dinâmica que envolve o apreço pela fuga do pecado que envolve a interpretação errada das Escrituras, voltemo-nos para a fórmula condicional de maldição (Aune) que aparece em duas construções (Prótase e Apódase): 1) ἐάν τις ἐπιθῇ [...] ἐπ᾽ αὐτά, ἐπιθήσει ὁ θεὸς καὶ 2) ἐάν τις ἀφέλῃ [...], ἀφελεῖ ὁ θεὸς... (Se alguém acrescer [...] Deus acrescentará... se alguém tirar [...] Deus tirará... 22:19). O texto expõe o paralelo entre “acrescer” (ἐπιθῇ) e “tirar” (ἀφέλῃ), mas como entender estas ações? Elas focam o que necessariamente?
Primeiramente observemos a ligação desse texto com o AT, assim, a resposta deve ser procurada inicialmente em Deuteronômio, pois em 4:1,2 e 12:32 a linguagem denota uma dupla advertência contra o ensino enganoso, o qual afirmava que a idolatria não era incompatível com a fé no Deus de Israel. Aqueles que enganam dessa forma são falsos profetas (Dt.13:1-18). Esse ensino falso corresponde a acrescentar algo a lei de Deus, uma vez que viola as prescrições positivas contra a idolatria (BEALE G.K ; CARSON.D.A. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, 2014, p.1409).


Além disso, podemos ligar este texto a Gl.1:6-8, entendendo que a proibição, de se pregar “outro evangelho” (ἕτερον εὐαγγέλιον), seria a questão aqui. Em terceiro lugar, pensando no próprio Apocalipse, poderíamos entender que estas ações estão relacionadas aos ensinos heréticos presentes nas igrejas da Ásia (Ap.2:6,14,20). Finalmente uma referência aos copistas que cometiam erros ao copiar o manuscrito de forma deliberada (KISTEMAKER Simon. Comentário do Novo Testamento Apocalipse, 2014, p.773).  Osborne nessa mesma dinâmica entende que essa passagem se refere a uma pessoa que usa o Apocalipse, para reestruturar a fé cristã como fazem algumas seitas, da mesma forma que os nicolaítas dos dias de João (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.888). Podemos então, pensar no “acrescer” ou “tirar” como desvios hermenêuticos, os quais adulteram a verdade singular que emana da Palavra de Deus.   
A outra parte desta fórmula condicional (prótase e apódase) chancela os atos futuros do próprio Deus (“acrescerá e tirará” - paranomásia).[2] No primeiro “os flagelos escritos no Apocalipse” serão acrescidos. Essas pragas são atormentadoras em seus registros (9:18-20; 11:6; 15:1,6,8; 16.9,21; 18:4,8). Osborne as pensa como juízos temporais (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.891). No segundo “a parte da árvore da vida, da cidade santa e das coisas escritas no Apocalipse”, tudo isso o próprio “Deus tirará”. Isso nos leva a questionar: esta ação divina deve ser entendida de que forma? Aponta para a apostasia ou advertência?
Inicialmente, observemos a percepção interpretativa de Osborne que ao comentar esta passagem, conclui que os juízos citados apontam para a apostasia. Ele entende que: “a apostasia é um tema teológico válido, e eu sustentaria a possibilidade de crentes perderem sua fé, com base em trechos paralelos de Jo.15:1-8; Hb.2:1-4; 10:26-31; Tg.5:19,20; 2Pe.2:20,21; 1Jo.5:16” (OSBORNE Grant. Apocalipse Comentário Exegético, 2014, p.891). Assim, nesta linha não teríamos dificuldade em afirmar que o ensino do texto foca a radical mudança de salvo para condenado. A real possibilidade de alguém perder a salvação por causa dos desvios hermenêuticos que trabalham em antítese a verdade que emana da Palavra.
De outro lado Gregory Beale anexa outra possibilidade, quando questiona: ... essa punição divina está sendo dirigida aos que reivindicam ser cristãos, mas nunca tiveram uma fé verdadeira? (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, P. 1153). Por isso, a necessidade de tal advertência para os cristãos, incluindo escribas cristãos, é aparente por aqueles que “distorceram” as cartas de Paulo e “o restante das Escrituras para sua própria destruição” (2Pe.3:16). A advertência também é aparente dos primeiros gnósticos, que avançaram seu falso ensinamento adicionando ou eliminando material dos livros do NT (BEALE, G. K.: The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, 1999, p.1154). Ao olharmos para Ap.13:8;17:8,14 teremos algumas respostas, as quais funcionam como refutações a apostasia:

...e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. (Ap.13:8)
E aqueles que habitam sobre a terra, cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo, se admirarão, vendo a besta que era e não é, mas aparecerá (Ap.17:8).
Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com ele. (Ap. 17:14)

No mínimo por estes textos é possível afirmar que a decisão quanto a salvação foi tomada primeiramente por Deus em Cristo. Isso nos ajuda a entender a questão da garantia e imutabilidade do que foi doado. Pensar em oposição as referências indicadas, seria transformá-las em simples probabilidades. Além disso, o contexto canônico nos ajuda a entender nossa relação com a verdade, como algo que emana da ação do Espírito Santo (1Co.2:12,14). Além disso, a continuação desta postura é justamente o elemento que distingui a verdadeira igreja (1Jo.2:19,20).
Finalmente, ao nos voltarmos para o Apocalipse encontramos em 3:5 a seguinte afirmação: “O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida; pelo contrário, confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos”. As dinâmicas de confirmações textuais asseguram a veracidade da tese de Beale. A heresia faz parte das convicções daqueles que não foram escolhidos, chamados por Deus e não comprovam, automaticamente, em seus testemunhos a fidelidade exigida.
Depois de percorrer este caminho investigativo, observamos em primeiro lugar, a relação de Ap.22:18,19 com Dt.4. Essa junção mostra o foco exortativo apresentado a igreja. Em segundo lugar, a condenação pelas antíteses hermenêuticas é chancelada, as quais estavam presentes nos ensinos dos falsos mestres. Para a igreja esta advertência faz com que pensemos na seriedade e importância em ser um “leitor intérprete” (ouvinte intérprete no 1º séc.). Finalmente, a garantia da salvação destacada no contexto remoto do Apocalipse expõe a imutabilidade da salvação e da questão epistemológica que envolve o paradigma revelacional que destaca a ação do Espírito Santo que nos fez entender verdadeiramente a Palavra.  



[1] O verboἀναγινώσκω usado em 1:3 (o cognato ἀνάγνωσις aparece em Tm.4:13) torna-se fundamental como elemento probatório desta tese.(Ao ajo da igreja é o pastor). Isso se deve a sua tradução que é ler algo que está escrito, normalmente em voz alta, ou seja envolvendo expressão de viva voz (LOUW; NIDA, Léxico Grego- Português do Novo Testamento Baseado em Domínios Semânticos, p.355). Assim, podemos parafrasear 1:3 da seguinte forma: “bem-aventurado o que lê em voz alta e os que ouvem e os que guardam...” (Ap.1:3).
[2] Osborne entende a paranomásia como “figura de acréscimo ou de plenitude expressão”. Sua definição é a seguinte: “paranomásia se refere às palavras semelhantes no som e colocadas lado a lado no texto, para dar ênfase. Muitas vezes, as palavras são escolhidas para chamar a atenção do leitor e comunicar a mensagem com eficácia”. OSBORNE Grant. Espiral Hermenêutica: Uma Nova Abordagem a Interpretação Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, pp.156,157.    

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