sexta-feira, 13 de março de 2020



Jo.20:22 Lido Num Viés Simbólico.
“...soprou [não diz “sobre eles”] e disse-lhes: começai a receber (aoristo ingressivo) o Espírito Santo.    
             A Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit[1]
Neste ensaio, investigaremos o evento de Jo.20:22, focando sua junção com At.2. Este trato traz certos fundamentos de complexidade, os quais desafiam nossa exegese. Eles serão tratados, introdutoriamente, a partir de um viés indutivo, por meios hermenêuticos oriundos do histórico-gramatical e dedutivo, a luz das contribuições de alguns estudiosos (Carson, Beasley-Murray, Köstenberger, Westcott e outros). A defesa deste ensaio afirma a leitura do imperativo pneumatológico de Jo.20:22 (λάβετε πνεῦμα ἅγιον) como “simbólico”, pois parece ser coerente por alguns substratos disntintos. Pensaremos, estruturalmente esta questão: 1) pela análise do co-texto, 2) descrevendo as percepções missiológica, teológica e simbólica, e finamente, com 3) a conclusão, a partir dos levantamentos exegéticos.   
λάβετε πνεῦμα ἅγιον (“ começai a recebei o Espírito Santo”) em seu micronível (“os cinco níveis” de George Guthrie; cf. OSBORNE. A Espiral Hermenêutica, pp.188-190) deve ser visto pela delimitação do macronível. Isso significa que se faz necessário, identificar os limites da unidade dentro do discurso de algumas formas. Nossa construção pensa Jo.20:22, delimitado pela seguinte extensão: 20:19-23. O primeiro substrato desta percepção é de cunho sintático, pois a conjunção transicional οὖν (lê-se: ûn, “portanto”) oferece em 20:19: “uma dedução, conclusão ou um sumário a discussão precedente”. WALLACE. Gramática grega, p.673). Além disso, no co-texto posterior a individualização de um personagem (Tomé) traz o fundamento da transição (20:24,25). Em suma constatamos por 20:19-22 que Jesus aparece aos seus discípulos no pós-ressureição algo paralelo a Lc.24:36-42 (Beasley-Murray, George R. WBC: John, 2002, p. 378). Entretanto, a falta de exatidão do número destes discípulos parece ser uma realidade aqui, pois como vimos, Tomé aparece somente depois (20:24) e Judas havia saído. Por esses considerandos pensamos que eram dez (CARSON. O Comentário de João, 2007 p.647).
Ainda com foco neste desdobramento contextual, observamos que o Senhor saúda seus discípulos: εἰρήνη ὑμῖν (20.19,21,26). Pelo contexto histórico esta saudação indicava um cumprimento judaico padrão, objetivando a comunicação da paz (Keener, [1993]. The IVP Bible Background Commentary: New Testament, s.Jo.20:19). De outro lado, Köstenberger entende εἰρήνη ὑμῖν num viés que envolve “um comissionamento”, pois, “Jesus os transmite a paz que precisam para cumprir sua missão”. Portanto, o foco da presente unidade é a declaração deste comissionamento oriundo do Senhor Jesus (“como o Pai me enviou, eu também o envio”, cf. Mt 28:18–20; Lucas 24:46–49) que culmina na Sua caracterização como o Filho enviado (KÖSTENBERGER. John, Baker Exegetical Commentary on the New Testament, 2004, p.573). O pós-saudação destaca isto: καθὼς ἀπέσταλκέν με ὁ πατήρ, κἀγὼ πέμπω ὑμᾶς (“...da mesma forma em que o Pai me enviou eu também envio a vós”). Ao fundamentarmos está missão, dada pelo Senhor, ligada ao Espírito Santo num viés missiológico, percebemos a funcionalidade de 20:23: ἄν τινων ἀφῆτε τὰς ἁμαρτίας ἀφέωνται αὐτοῖς, ἄν τινων κρατῆτε κεκράτηνται (“aqueles a quem perdoardes os pecados, lhes são perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são retidos”). Portanto, “nesse versículo, em que o co-texto é a missão dos discípulos de Jesus (v.21) e que o Espírito é quem os capacita (v. 22), o locus é sobre evangelismo” (CARSON. João, p.656). Ainda assim, o quando desta ação inegociável para o cristão. Neste caso, Jo.20:22 e At.2 precisam ser vistos num viés relacional. 
Depois de pensarmos estas questões de forma sintética, o ponto agora é o papel do imperativo pneumatológico: λάβετε πνεῦμα ἅγιον: “... começai a receber o Espírito Santo” (Jo.20:22), de maneira que sua relação com At.2 funcione numa unidade e diversidade. Inicialmente, não podemos deixar de observar o continuísmo do v.21 com o v.22 pelo καὶ τοῦτο (“e com isso” ou “após dizer isto”), pois como explica Carson: “a comissão fica assim associada à concessão do Espírito” (CARSON. O Comentário de João, 2007, p.650). Com estes considerandos, passemos a pensar as alternativas hermenêuticas para este “imperativo pneumatológico”.
Em primeiro lugar, observemos a tese de Westcott (1825-1901) em seu comentário de João (1881), pois entende πνεῦμα ἅγιον, por causa da ausência do artigo, “como um dom do Espírito Santo” (cf.7:39), objetivando a preparação dos discípulos para o evento de Pentecostes. Desta forma Westcott distinguiu entre a ação do Espírito quanto ao novo nascimento e a capacitação dos crentes para o ministério” (WESTCOTT. The Gospel According to St. John Introduction and Notes on the Authorized Version, 1908, p.295). Entretanto, esta tese é contestada por Borchert, porque “despersonaliza o Espírito e O transforma num dom”. Além disso, “em João 7:39 o Espírito também é mencionado sem o artigo”. De fato, “o Espírito Santo’ aparece mais de cinquenta vezes no Novo Testamento sem o artigo, três deles no Evangelho de João como em: 1:33; 14:26; 20:22” (BORCHERT. John 12-21, The New American Commentary, 2003, p. 307).
Em segundo lugar, na atualidade Beasley-Murray (1916-2000) trabalhou esta questão num viés teológico, e não cronológico. Neste caso, João não especifica os eventos da Páscoa de acordo com a cronologia. Ele poderia, perfeitamente ter conhecimento da tradição do pentecoste e escrever exatamente como ocorreu. Mas, não há dúvida de que o envio do Espírito acontece na Páscoa e no Pentecostes. É um ou outro, em vista da natureza da apresentação de cada evangelista do evento. Portanto, João sabe sobre Pentecoste, mas prefere escrever dessa forma, em íntima conexão temporal com a Páscoa, por causa de sua peculiar visão teológica que liga fortemente a descida do Espírito à morte/exaltação de Jesus (Beasley-Murray, George R. Word Biblical Commentary: John, 2002, p.382).
Em terceiro lugar, temos a fundamentação que pensa Jo.20:22 como “promessa simbólica do dom do Espírito que seria dado mais tarde (isto é, no dia de Pentecoste)”, algo defendido por Teodoro de Mopsuéstia (350-428). Essa tese foi condenada no quinto concílio ecumênico em Constantinopla no ano de 553 d.C., e não recebe muita atenção hoje, mas, muito pode ser dito em seu favor. Carson entende que esta proposta é mais viável, para entendermos Jo.20:22. Mas, quais são suas bases?
Comecemos com a tradução que corrobora, pois, καὶ τοῦτο ἐνεφύσησεν καὶ λέγει αὐτοῖς..., ao contrário do que a maioria das versões em português afirma, o texto grego não diz ‘ele soprou sobre eles, mas simplesmente ‘[ele] soprou’. Desta forma, o sentido desse pano de fundo bastante técnico, de maneira que o verbo ἐμφυσάω (Lê-se: emfysáo) é absoluto em João 20.22 – ou seja, não tem estrutura auxiliar, nem mesmo um objeto direto. Fora outras considerações de peso, portanto, o versículo deveria ser traduzido assim: “e com isso, soprou, e disse: “começai a receber o Espírito Santo”’. Ainda, alguns eventos descritos em João não são realizados naquele momento (12.23,31; 17.1,5), da mesma forma, como este viés simbólico lê o imperativo (λάβετε πνεῦμα ἅγιον) de 20:22.  Outro ponto fundante pode ser destacado pela postura dos discípulos com medo dos judeus (20:19), mostrando a falta de ousadia presente neles no pós At.2. Desta forma, o episódio em 20.22, que a maioria concordará que, em certo sentido simbólico, é mais bem entendido desta forma, como uma capacitação que ainda está por vir. Finalmente, a ‘exalação’ e a ordem de Jesus (“começai a receber o Espírito Santo”) são mais bem entendidas como um tipo de parábola encenada que aponta para o futuro, para a plena provisão ainda por vir (embora já passado para os leitores de João). O apóstolo tem, repetidamente desenvolvido esses passos antecipadores em sua narrativa; não é de surpreender se ele usa um desses (passos), para mostrar que a história não termina com esse livro (CARSON. O Comentário de João, 2007, pp.651-657).
           Em anexo aos considerando levantados pelo Carson outros pontos cooperam com esta percepção. O verbo ἐμφυσάω (lê-se: emfysáo) usado apenas aqui no NT (hapax), pode ser visto como ato foi simbólico, à maneira dos profetas hebreus (VINCENT. Word Studies in the New Testament, 2002, S. 2:29). Além disso, era algo simbólico, aparecendo na LXX, quando “Deus soprou o sopro da vida” em Gn.2:7 sobre Adão (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Jo 20:22). Isto é consumado com o restante do verso (λάβετε πνεῦμα ἅγιον), chancelando a consumação da primeira oração. Robertson pensa o aoristo imperativo como ingressivo (ROBERTSON. Word Pictures in the New Testament, 1997, S. Jo 20:22), desta forma a tradução é vista assim: “começai a receber o Espírito Santo.” Esta percepção corrobora com o natureza simbólica desta máxima. O contexto de 20:22 nos ajuda, a partir de seu viés missiológico (20:23). O relato de João descreve um estágio preliminar de preparação para o ministério. “A missão é inaugurada, mas na verdade não começou ... O início real desta missão está fora do escopo do Quarto Evangelho. Resta, portanto, espaço para o derramamento no dia de Pentecoste, após o qual os discípulos assumem a missão em público no poder do Espírito que desce do Pai e do Filho no céu. Tal preparação é claramente o ponto em Jesus levando os discípulos à fé em si mesmo e no comissionamento. Outro fundamentado desta tese está na ausência de Tomé, o qual confessou Jesus como Senhor e Deus (20:28). Whitacre entende que isto ocorreu pela ação do Espírito Santo (WHITACRE. John The IVP New Testament Commentary, 1999, p.482).
        Depois desta sintética jornada, observamos as três fundamentações exegéticas de Jo.20:22. Além disso, a dificuldade com a harmonização (com At.1:8; 2:1-4) mostrou ser a problemática em voga. Cronologicamente, pós Jo.20:22 se passaram provavelmente mais de 40 dias (At.1:3; 2:1-4). Assim, somos levados a ler esta passagem num viés futurista, por isso, as interpretações simbólica e teológica parecem fazer mais sentido. O problema da primeira é sua reprovação no quinto concílio ecumênico em Constantinopla no ano de 553 d.C.   



[1] Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).

domingo, 1 de março de 2020





      “As Setenta Semanas” de Dn.9:24-27 lidas pela Cronografia (não pela Cronologia)





O período sugere que os “setenta anos” de punição devidos, quando vistos de acordo com Jr.25:11; 29:10 estão exigindo sete vezes mais, de acordo com Lv.26 (GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p.257).

“...é possível argumentar que Jeremias estava cronologicamente certo, mas é improvável, uma pretensão quanto aos “setenta anos” que pudesse ter uma referência cronológica precisa, nem há razão para inferir que Daniel necessariamente entendeu dessa maneira” (GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p.239).

       No presente ensaio, trabalharemos uma leitura/interpretação de Dn.9:24-27 pelo viés da Cronografia. Esta percepção foge da comum, aplicada a interpretação dos “Setenta setes” (semanas) presente no evangelicalismo brasileiro. A inversão exposta funcionará, de maneira que a história terá preeminência sobre os seus dados. O comentário de John Goldingay[1] (WBC: Daniel, 2002) nos servirá de base principal, mas outras obras também serão consultadas.
        O marcador usado em Dn.9:1 funciona como elemento transicional na macroestrutura de Daniel: “no primeiro ano de Dario, filho de Assuero, da linhagem dos medos, o qual foi constituído rei sobre o reino dos caldeus. Em onze capítulos deste livro, os versos iniciais começam com a descrição de reis disntintos: “Nabucodonosor 1:1; 2:1; 3:1; 4:1 - Belsazar 5:1 – Dario, o medo 5:31; 6:1; 11:1 - Belsazar, rei da Babilônia, 7:1; 8:1 - Dario, filho de Assuero 9:1 - Ciro, rei da Pérsia 10:1” (cf. GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002; MILLER. Daniel, NAC, 2001, p.194). Propriamente em 9:1 é feita a menção de “Dario, filho de Assuero da linhagem dos Medos...” Nas outras aparições ele (Dario) é descrito como “o medo” (5:31 [6:1]; 11:1). Assim, problematizamos ao questionar: estes podem ser identificados como os mesmos personagens? Goldingay pensa que a associação pode ser legitima entre 9:1 e 6:1 [5:31], pois “Dario (o medo) recebeu a aquisição da realeza oriunda da Babilônia” (GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p.239). Esta data é repetida no v.2, porque com a derrubada do reino do Caldeu, a esperança dos exilados de libertação foi despertada novamente, e naturalmente recorreram aos seus “livros”, para julgar, se o término de exílio havia chegado (MONTGOMERY. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel, 1927, p.359). Depois desta questão inicial (data e ocasião), a progressividade da argumentação deste capítulo envolve: uma oração de adoração (9:4), confissão (9:5-14) e petição (9:15-19). Posteriormente, a visão e seus desdobramentos (9:20-27). Em nossa redução focaremos “as setenta semanas” שָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים)) de Dn.9:24-27. 
        A expressão שָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים (Setenta/setes-setes) passa por delimitações variadas, a partir de pressupostos teológicos distintos. Em primeiro lugar, pelo viés da Intertextualidade pode indicar uma ocasião de sete anos que era o ciclo do ano sabático. Noutra somatização estes sete ciclos de anos sabáticos constituem o ano jubileu, no final do qual, os escravos eram libertados e a terra devolvida ao seu dono (Lv.25). É claro que esses números são carregados de significado teológico, dando-lhe uma aparência esquemática. Além disso, associações históricas podem ser feitas, pois na Mesopotâmia os números “setenta setes” representavam uma medida completa do tempo. Essa dinâmica estava presente também na literatura Judaica no uso esquemático do termo “semanas”, o qual podia ser vista em 1Enoque (no Apocalipse de Semanas), e o período de 70 semanas em Qumran (MATTHEWS;  CHAVALAS;   WALTON. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament, 2000, S. Dn. 9:24).
          Outras questões são levantadas por Goldingay, a partir de premissas disntintas. Inicialmente, ele trabalha a seguinte somatização, seguida de uma conclusão:

·         שִׁבְעִ֥ים שָׁנָֽה (setenta anos) Dn.9:2
·         שָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים – (setenta setes [semanas] Dn.9:24
·         שָׁבֻעִ֖ים שִׁבְעָ֑ה  - (sete semanas) Dn.9:25

        Assim, pelo co-texto Goldingay mostra “a importância do estudo corporativo das Escrituras (9:2) que caracterizava a Sinagoga e a aplicação da Intertextualidade ao ligar os “setenta’ (períodos de anos) originais de Jeremias 25:11-29:10 [Dn.9:2] com Lv.26 [v.18], desta forma, indicando a exigência de sete vezes mais, de acordo com Lv 26[2] (GOLDINGAY, John. WBC: Daniel, 2002, p.257). Esta percepção está fundamentada também nas dificuldades existentes na interpretação cronológica (70 anos literais). Desta forma, ainda que possamos considerar estes 70 anos como literais, começando com a submissão de Judá à Babilônia em 605 a.C ou com a queda de Jerusalém em 597 ou 587 a.C, tendo como termino a derrubada da Babilônia em 539, ou o início do retorno judaico em 538 ou a conclusão da reconstrução do templo em 517 a.C. Ainda assim, Goldingay conclui: “...é possível argumentar que Jeremias estava cronologicamente certo, mas é improvável, uma pretensão quanto aos “setenta anos” que pudesse ter uma referência cronológica precisa, nem há razão para inferir que Daniel necessariamente entendeu dessa maneira” (GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p.239).
       Essa dificuldade cronológica está presente também na שָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים (Setenta setes [semanas]) de 9:24. Os cálculos feitos por alguns têm postulados disntintos em suas construções e infinitas dificuldades. Goldingay apresenta algumas problemáticas neste quesito (490 cronologicamente): 1) o período entre a profecia de Jeremias (605 a.C) e o período da ascensão de Ciro (556 a.C) foi de 49 anos - o período entre a profecia de Jeremias e a morte do sumo sacerdote Onias III (171a.C) 434 anos, de modo que a soma esses períodos é de 483 anos, os últimos sete anos produziram os eventos da outra dedicação do templo em 164 a.C. 2) O período de Neemias (445 ou 444 a.C) até a morte de Jesus na Páscoa em 32 ou 33 d.C foram exatamente de 483 anos, entretanto, setenta e sete foram preteridos (GOLDINGAY, John. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p. 257). Estas teses têm problemas quanto ao seu cumprimento integral, por isso, Goldingay entende esta questão “não pela cronologia, mas pela Cronografia: um esquema estilizado da história usado para interpretar dados históricos em vez de surgir deles, comparável à cosmologia, aritmologia e genealogia, como aparecem em escritos como o AT.” (GOLDINGAY. Daniel WBC, 2002, p.257).
   Esse fenômeno está presente nas indicações no livro de Reis, quanto ao período da dinastia, pois, embora produzisse alguns problemas, os autores buscavam transmitir informações cronológicas. Uma ilustração disso, encontramos em 1Rs.6:1, pois a construção do templo começou 480 anos (doze vezes quarenta anos!), após o Êxodo, e isso também não parece ser uma nota cronológica. Quando tratado como tal, levanta dificuldades, uma vez que outras evidências sugerem que este Êxodo ocorreu no século XIII a.C, e não no décimo quinto. Em outros lugares, 490 também parece ter sido usado como um princípio para a periodização da história. Eventualmente, os jubileus estruturam toda a história por períodos de 490 anos. Daniel 9 relata estas formas de comunicação. Portanto, nenhum desses antecedentes sugere que se deva esperar que o período total de 490 anos ou suas subdivisões necessariamente correspondam numericamente a períodos cronológicos. Nossa tentativa de vinculá-los a esses períodos deve ser feita com base em considerações exegéticas à medida que surgem da passagem, não na cronologia real. (GOLDINGAY. Daniel, WBC, 2002, p.258).  
     Com estas premissas em foco, nossa leitura dos desdobramentos desta porção textual serão regidos por este aspecto fundante. Assim, em 9:24 alguns elementos aparecem em conexão com “setenta setes” ligado ao construto “teu povo”  (עַֽל־עַמְּךָ֣) e “a tua cidade santa” עִ֣יר קָדְשֶׁ֗ךָ) ), estabelecendo a origem de Daniel, entretanto, isso (teu/tua) não significa rejeição. Calvino (contra Jerônimo) se opõe a esta ideia, pois: “por algum momento Deus rejeitou o Seu povo, todavia, agora, desejava ministrar alguma consolação a seu servo e a todos os santos, injetando-lhes confiança durante a opressão de seus inimigos. Além disso, havia fixado o tempo para enviar o Redentor” (CALVINO. Daniel, p.238). Depois disto, o texto é construído (9:24) com algumas locuções preposicionais com infinitivos construtos (ketihb/qere aparecem).

1.    הַפֶּ֜שַׁע  לְכַלֵּ֙א  -- “para cessar à rebelião...”
2.    [חַטָּאוֹת] (חַטָּאת֙) (וּלַחְתֹּם] (וּלְהָתֵ֤ם) kethib/qere- “e para dar fim aos pecados...”
3.    וּלְכַפֵּ֣ר עָוֹ֔ן  -- “e para expiar a iniquidade...”

1.    וּלְהָבִ֖יא צֶ֣דֶק עֹֽלָמִ֑ים  -- “e para trazer a justiça por longo tempo...”
2.    וְלַחְתֹּם֙ חָז֣וֹן וְנָבִ֔יא  - “e para selar a visão e a profecia...”
3.    וְלִמְשֹׁ֖חַ קֹ֥דֶשׁ קָֽדָשִֽׁים׃ – “e para ungir o santo dos santos...”

   James Montgomery pensa a trilogia “rebelião/pecados/iniquidade” como “sinônimos (MONTGOMERY. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel, 1927, p.374), por isso, “Daniel usou esses termos em sua oração, para descrever a iniquidade de Israel” (GOLDINGAY. Daniel, WBC, 2002, p.258). Pelo co-texto parece que estas ações divinas estão ligadas a resposta da oração de Daniel (9:23), entretanto, não há indicação de que todo o período pós-exílico seja caracterizado pela maldade. Somente os últimos “sete” são vistos desta forma, especificamente por maldade, ira e desolação. Os eventos dos vs. 24-27 prometem e emergem da vontade soberana de Deus e não são uma resposta ao pecado de Israel ou à confissão de Daniel (GOLDINGAY. 2002, p.259).
        Os correspondentes positivos na segunda trilogia chancelam pela “justiça” (צֶדֶק), uma ligação com 9:7,14,16,18, focando a oração. Além disso, o “selar” sugerindo um autenticar (1Rs.21:8), e isso se encaixa bem no contexto atual: a promessa que a profecia de Jeremias será cumprida e, portanto, confirmada. Em suma, um entendimento coerente do v.24 emerge, então, se a considerarmos como uma reafirmação das promessas visionárias do cap.8. (GOLDINGAY. 2002, p.260).
          A continuação da visão (vs.25-27) tem seu fundamento nas exortações iniciais descritas no v.25 (“e sabe e entende...”, וְתֵדַ֙ע וְתַשְׂכֵּ֜ל) e na repetição de 9:23b. Numa junção, podemos associar os números usados, tendo como matriz 9:24 (7,62,1) e os versos seguintes (vs.25-27) com seus desdobramentos:

שָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים    -
     setes (dias ou anos) - setes. 9:24.  
    |    |    |    |    |
    שָׁבֻעִ֖ים שִׁבְעָ֑ה
   setes - sete”. 9:25 
   וְשָׁבֻעִ֞ים שִׁשִּׁ֣ים וּשְׁנַ֗יִם  וְאַחֲרֵ֤י
  “e depois dos sessenta e dois setes”. 9:25,26
    שָׁב֣וּעַ אֶחָ֑ד  
    “um sete”. 9:27

        Em 9:25 שָׁבֻעִ֖ים שִׁבְעָ֑ה וְשָׁבֻעִ֞ים שִׁשִּׁ֣ים וּשְׁנַ֗יִם  (sete setes, sessenta e dois setes) temos uma redução associativa, de maneira que este tempo ganha uma específica qualificação: “desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até o Ungido, ao príncipe [...] as praças e as circunvalações se reedificarão, mas em tempos angustiosos” (9:25). Nossa tentativa inicial objetiva a compreensão da extensão exposta juntamente com suas associações. Assim, este “desde” com o “até” pode ser visto de algumas formas: 1) a profecia de Jeremias mencionada no em 9:2, 605 a.C (no caso de 25:12), 597 a.C (no caso de 29:10), ou suas profecias registradas em conexão com a queda de Jerusalém em 587 a.C. (30:18–22; 31:38–40); 2) as próprias palavras de Gabriel dirigidas a Daniel (? 539); 3) o decreto de Ciro em 539 a.C. (Is.45:1; Ed.1: 1–4; visto como uma reconstrução da cidade, não apenas do templo (4:12-16); 4) o decreto de Dario em 521 a.C. (Esdras 6:1–12; também visto como uma reconstrução da cidade em antecipação em 4:21); 5) o decreto de Artaxerxes em 458 a.C (Ed.7:12–26); 6) o mandado dado a Neemias em 445 a.C. presente em Ne.1. Goldingay entende que “os verbos ‘restaurar’ e ‘edificar’ são ricos e sugerem a combinação entre a restauração da comunidade e a reconstrução da cidade”. Além disso, quanto as perspectivas cronológicas, “uma destas datas deve ser a apropriada, pois todas fizeram parte da restauração de Sião” (GOLDINGAY. WBC: Daniel, 2002, p.260). Um maior aprofundamento nesta questão, traz consigo as problemáticas das alternativas mais aceitas. Desta forma, a interpretação que pensa o decreto de Ciro (Ed.1:1-3) como resposta (539. a.C), tem certa dificuldade, pois seu objetivo era a construção do templo, e não da cidade. Mesmo que alguns entendam, isto sendo implícito, o fato demonstrável, no entanto, descreve esta cidade não reconstruída até quase cem anos depois (Ne.2:17). A outra interpretação, vista nesse viés, é aquela que pensa o decreto de Artaxerxes como início dosשָׁבֻעִ֙ים שִׁבְעִ֜ים , (setes (dias ou anos) – setes, 9:24), entretanto, esse decreto permitiu que Esdras e outros judeus retornassem à Palestina, dizendo respeito ao estabelecimento e à prática dos serviços adequados no templo (Ed.7:11–26). Mas, novamente, não havia comando específico para reconstruir a cidade de Jerusalém. Uma terceira percepção funciona para alguns interpretes, neste caso o mandado dado a Neemias (445.a.C), visto em Ne.1 (cf. MILLER. Daniel NAC, 2001, p.262).  Em suma, a fala de Goldingay, quanto ao “desde” e “até”, nos ajuda nesta questão: “...não podemos identificar nem o começo nem o fim deles” (GOLDINGAY. Word Biblical Commentary: Daniel, 2002, p.260).
          A questão da identificação do “Ungido” (מָשִׁיחַ na LXX: χρῖσμα)” também deve ser pensada, pois pode se referir a um governante não-israelita (Ciro em Is.45:1, ou o governante de Tiro em Ez.28:2), mas é mais, caracteristicamente usado, para os líderes israelitas, poderia então indicar um príncipe (1Sm.2:10,35; 9:16; 10:1) ou um sumo sacerdote (Lv.4:3; Jr.20:1; Ne.11:11). Se os “setenta e setes” começam no momento do início do exílio e o governante “ungido” aparece após estes sete primeiros setes, então o termo provavelmente se refere a Zorobabel ou a Josué, “filhos do óleo”, de acordo com Zc.4:14 (GOLDINGAY. Daniel WBC, 2002, p.261).
     Depois dos “sessenta e dois setes”, este “Ungido será cortado (כָּרַת).[3]  A questão em voga, está fundamentada na relação de מָשִׁיחַ (na LXX: χρῖσμα, “Ungido”)” nos vs.25,26. Esses usos são sinonímicos ou antitéticos? Goldingay nega as duas possibilidades. Ele explica que as visões de Daniel são comumente “anarthrous” (“uma visão, um profeta, um lugar muito sagrado, v.24; uma palavra, um ungido, um líder, v.25; um ungido, um líder, um povo, v.26; uma aliança, uma ala, uma abominação, uma conclusão, uma desolada abominação, v.27”), por isso, o efeito é contribuir para essa alusão apropriada, uma visão, que não pode ser resolvida de dentro do cap. 9 em si. Assim, presumivelmente, o “líder por vir” também é um representante da linha do sumo sacerdócio, alguém que segue Onias. A referência será então ao sucessor deste Onias, Jason (mudança realizada por Antíoco IV), que tanto corrompeu quanto devastou - os dois sentidos possíveis de Israel - o povo de Jerusalém (“pela paganização da cultura”. cf. GUNDRY. Panorama do Novo Testamento, p.5). A hostilidade da ação de Jason pode muito bem ser indicada pela expressão “por vir” (הבא), o verbo é frequentemente usado para uma “vinda” agressiva presente no cap.11 (por exemplo, v.10, com o termo “inundação” [שטף] como aqui). “Seu fim” e “o fim” estão intimamente relacionados. (GOLDINGAY. WBC, Daniel, 2002, p.262). Neste tempo, devastação, batalha e desolação refletem a seriedade do problema trazido às pessoas, a cidade e o templo pela força combinada de governantes pagãos e sacerdotes usurpadores. Nesse momento, a exposição da destruição de Jerusalém num pós-Babilônia, parece estar em voga, definida pelo seguinte agente: עַ֣ם נָגִ֤יד הַבָּא֙  (“o povo de um príncipe que há de vir...”). Miller explica que, “historicamente, isso ocorreu pelos romanos (Josefo entendeu Daniel havia profetizado isto). Titus Vespasianus liderou as legiões romanas contra Jerusalém e destruiu completamente a cidade e o templo” (MILLER, Stephen. Daniel NAC, 2001, p. 268). De outro lado, Goldingay trabalha com uma junção entre eventos ocorridos no exílio e na crise do período de Antíoco Epifânio (GOLDINGAY. 2002, p.261).  
      A última sequência descrita no texto, שָׁב֣וּעַ אֶחָ֑ד (um sete/uma semana) presente em 9:27  aponta para “a aliança” (בְּרִית). Goldingay entende que esta pode se referir àquela ocorrida entre Deus e Israel, mencionada em 9:4; 11:22,28,30,32. (GOLDINGAY. Daniel  WBC, 2002, p.262). Entretanto, alguns teólogos pensam esta “aliança” ligada a Cristo, “o ungido” do v.26 (cf. MILLER. Daniel NAC, 2001, p.270). Realmente existem muitas complexidades exegéticas nesta questão. Ao pensar na profecia em seu viés histórico imediato, parece que Daniel foca as dificuldades que os judeus iriam passar numa parte do “período helenístico”. Assim, “a aliança” (בְּרִית) pode descrever a fidelidade dos judeus conservadores, apesar da pressão exercida sobre eles (cf. 1Mac.1:62-63), ou a fidelidade de Deus exposta (Lv 26:42). Entretanto, a crise antioquena funciona como substrato histórico-profético, de maneira que esta “aliança” (בְּרִית), aparentemente, passa a ter conotações negativas, ou seja, o decreto imposto por Antíoco IV. Este pacto firmado, provavelmente, refere-se à aliança entre judeus reformistas e gentios (1Mac.1:12 -- GOLDINGAY. Daniel  WBC, 2002, p.262). Além disso, no meio da sete final a adoração prescrita pela Torá cessará e será substituída por uma alternativa repulsiva. Como entender isto?
 Nesse momento, שִׁקּוּצִים֙ מְשֹׁמֵ֔ם  (“abominações/rebeliões desoladoras”, cf.8:13; 11: 31; 12:11 -- na LXX βδέλυγμα τῶν ἐρημώσεων) funcionam neste contexto de complexidade para os judeus. Assim, estas “abominações desoladora[s] vem sobre uma asa” (como o canto superior em forma de asa do templo, o “pináculo” de Mt.4:5). O sacrilégio “desolador” não estava no pináculo do templo, mas no altar dentro do templo. Agora, o altar tinha cantos superiores “em forma de asa”, geralmente descritos como chifres. A devastação continuará a dominar Jerusalém desolada até se esgote pelo que Deus decretou. No entanto, dentro da escuridão há raios de luz. A calamidade cumpre a profecia de Is.10:22–23 (GOLDINGAY. Daniel  WBC, 2002, p.263).
         Depois desta sintética peregrinação em Dn.9:24-27 algumas ideias conclusivas foram constatadas: 1) a importância da Cronografia como instrumento hermenêutico para entender “os setenta setes”, pois, ajuda nas infinitas problemáticas que envolvem a interpretação sob aspectos fundantes cronológicos. A primazia da história funcionando como primazia, de maneira que as cronologias funcionam em subserviência.   2) A ligação de Dn.9:24 com Lv.26:18 estabelecendo o aspecto validador, validado pelo viés da intertextualidade. 3) As direções proféticas de 25-27 passando pela delineações que envolvem a morte do Ungido (Zc.4:14) e o período de complexidade vivida pelo judeus no tempo de Antíoco IV.   




[1] Mais informações: https://www.fuller.edu/faculty/john-goldingay/. Acesso em 11/09 às 17:05.
[2] "Setenta anos" sugere a vida humana numa construção definida (cf. Is 23:15; Sl 91:10).
[3] Esse verbo pode ser usado literalmente (Êx.4:25; 1Sm.5:4; 1Rs.5:6; Jó.14:7) ou figurativamente, nesse viés, pode ser traduzida como “eliminar, remover ou destruir algo (Dt.12:29; Js.7:9; Sl.37:38), geralmente referindo-se especificamente a ser “cortado” na morte (Gn.9:11; Êx 31:14; Jr.9:21; 11:19). MILLER, Stephen R.: Daniel. electronic ed. Nashville : Broadman & Holman Publishers, 2001, c1994 (Logos Library System; The New American Commentary 18), p. 267


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