sábado, 27 de maio de 2023

 

      O “Nu” (γυμνός - gymnós) em Ap.16:15 tem que significado/significância? 


       


      Neste ensaio procuraremos trabalhar a questão do “nu” em seu devido significado. Para tal nos valeremos da exegese contextual canônica, algo funcional para termos uma ideia mais ampla do tema. Este movimento está relacionado a exegese do Apocalipse vista pelo substrato da intertextualidade. A investigação trará informações introdutórias longe de prerrogativas exaustivas. Defenderemos neste ensaio γυμνός  (gymnós) num simbolismo que define um aspecto ético da igreja visto como algo inegociável.   

     O texto base que partiremos Ap.16:15 está num contexto que envolve os “sete flagelos” (16:1-21), mais especificamente o sexto (16:12-16). Em 16:15 segundo Beale uma exortação entre parênteses é dirigida aos crentes. A voz os exorta a estarem sempre vigilantes para a aparição final de Cristo, uma vez que virá inesperadamente, ‘como um ladrão’. No contexto, a exortação parece abrupta e desajeitada, mas num estudo mais detalhado funciona como as exortações em 13:9 e 14:12 (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek Text, p.836). Nesta dinâmica, a exortação objetiva a negação a “nudez” e este será nosso ponto em voga.

      O termo grego γυμνός (gymnós) aparece por 47 vezes na Bíblia. Inicialmente, no livro de Genesis (LXX- 2:25; 3:7,10,11) como tradução do hebraico עָרוֹם (arom). Posteriormente a isto, aparece em alguns outros livros do AT (1Sm.19:24; 2Cr.28:15; Pv.23:31; Ec.5:14; Jó.1:21; 22:6; 24:7,10; 26:6; 31:19; Os.2:5; Am.2:16; 4:3; Mq.1:8; Is.20:2,3,4; 32:11; 58:7; Ez.16:7,22,39; 18:16; 23:29). Encontramos também no NT em livros distintos (Mt.25:36,38,43,44; Mc.14:51,52; Jo.21:7; At.19:16; 1Co.15:37; 2Co.5:3; Hb.4:13; Tg.2:15). Neste viés, precisamos destacar os usos propriamente presentes no Apocalipse: 3:17; 16:15; 17:16. Cabe nesse momento analisar o viés lexical de γυμνός (gymnós), de modo que, possamos ter uma ideia da equivalência (língua fonte [grego] – língua receptora [português]).

    Inicialmente pelo BDAG observamos o uso literal de γυμνός (gymnós) visto como “nu” ou figurado como “descoberto” e finalmente, “estar inadequadamente vestido, sem uma vestimenta exterior, sem a qual uma pessoa decente não aparecia em público” (Arndt, Danker & Bauer. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p.208). Em suma, γυμνός (gymnós)  aparece 15 vezes no NT. Já o substantivo γυμνότης (gymnótes), que é raro em grego fora do NT e da LXX, aparece somente 3 vezes (Rm. 8:35; 2 Cor 11:27; Ap 3:18). Ambas as palavras podem ser usadas para a “nudez completa ou para roupas inadequadas ou escassas”. Eles também podem ser usados ​​para a condição de desprotegido, necessitado e desamparado. Numa recorrência ao AT como em Gn.3:7, a vergonha na presença da “nudez” é explicada como resultado do pecado (cf. 2:25; 3:10; 9:21). A pessoa começa e termina a vida na nudez (Jó.1:21; Ec.5:14). Os pobres estão nus e dependem dos verdadeiramente piedosos e justos para se vestir (Is 58:7; Ez 18:7, 16; Tob 4:16). A “nudez” é, portanto, predominantemente uma expressão de indefesa (cf. Jó 26:6 sobre o reino dos mortos, que não podem se esconder diante de Deus). (Balz & Schneider. Exegetical dictionary of the New Testament. 1:265).

     Depois destes elementos iniciais foquemos no que γυμνός (gymnós)  presente na exortação presente em Ap.16:15. Num insight interessante Beale destaca, inicialmente: “vestes’ simbolizam inflexibilidade ou ‘atos justos dos santos’, que são necessários para a admissão ‘à ceia das bodas do Cordeiro’ (19:8–9), ao passo que o ‘nu’ significa falta de retidão” (BEALE. The book of Revelation: A commentary on the Greek Text, p.836). Aune corrobora trazendo o fundamento da exegese joanina, pois no AT e no judaísmo primitivo, as noções de “nudez” e “vergonha” estavam intimamente associadas (Gn 9:20-24; Is 20:4; 47:3; Os 2:10; 1Co.12:23). O termo hebraico עֶרַוָה (erwâ), “nudez, genitália”, é traduzido oito vezes na LXX com o termo grego αἰσχύνη, (aiskhýne - “vergonha, desgraça”, Is.20:4; 47:3; Ez 16:36, 38; 22: 10; 23:10, 18, 29), sugerindo que em Ap 16:15 o paralelismo está em voga (αἰσχύνη também significa “nudez”). Segundo a protologia israelita, a “nudez” nem sempre foi associada à vergonha, como deixa claro Gn 2:25: “O homem e sua mulher estavam nus e não se envergonhavam”. As noções de “nudez” e “vergonha” também estão ligadas em Ap 3:18 na frase ἡ αἰσχύνη τῆς γυμνότητός σου, “a vergonha da tua nudez”. Ap 16:15 pode, então, ser uma alusão à tradição da “túnica de Adão” (baseada em Gn 3:7,10,11), uma vestimenta mágica que garantia invencibilidade, que foi venerada por seus descendentes e acabou enterrada no cemitério. Uma faceta é refletida na variante mitológica poética da tradição de Adão em Ezequiel 28:13, onde a vestimenta é descrita como uma série de pedras preciosas semelhantes às usadas nas vestimentas dos sumos sacerdotes. Adão e Eva perderam suas “vestimentas de luz” celestiais (עור ˓ôr, “pele”, em Gênesis 3:21, explicado como se estivesse escrito אור ˒ôr, “luz”) quando expulsos do Éden. Assim, esta “nudez” está associada à vergonha, juntamente com a fome, como castigos divinos. Havia uma atitude diferente em relação ao corpo no mundo grego, embora a nudez pública sempre fosse relativamente incomum; ela (a nudez) era considerada vergonhosa em alguns contextos, mas não em outros, por exemplo, atletismo, batalha. O primeiro homem nu apresentado na literatura grega é Ulisses, e ele expressa vergonha por sua nudez na presença de mulheres jovens (AUNE. Word Biblical Commentary: Revelation 6-16, p.897).

       Estas considerações fazem com que vejamos a questão por alguns ângulos possíveis. Entretanto, numa síntese podemos entender que em 16.15, os eleitos precisavam manter vestidas as suas roupas, uma metáfora estranha que pode ter a ideia de “manter” ou guardar o compromisso espiritual com Cristo. Embora, alguns exegetas afirmem que o quadro representa aqueles que vigiam suas roupas, para que não sejam perdidas nem roubadas, é melhor ver a figura descrevendo uma pessoa que está alerta e completamente vestida, em prontidão para o retorno de Cristo. O risco de não se manter trajado com as vestimentas espirituais é “andar nu e ter a nudez exposta”. Tal ideia é semelhante a 3.18, em que “a vergonha de tua nudez” retrata a igreja pecadora “exposta” por Deus, dando continuidade a uma imagem do AT, na qual a nudez é símbolo de juízo (Is 20.1-4; Ez 16.36; 23.10,29), e a “vergonha” implica desgraça e merecimento de juízo. (OSBORNE, Apocalipse.p.664). Portanto, a referência de guardar alguém suas roupas não tem nada a ver com nudismo, mas tem de ser considerada em termos figurativos. A alusão é de estar espiritualmente vestido com a Palavra de Deus, de modo que, quando o tentador chegar com imposturas e fraudes, o crente seja capaz de prestar boa conta de si mesmo, ou de si mesma, e assim malograr as tentações, desmascarar a fraude e frustrar os ataques diabólicos. Perambular espiritualmente nu, sem as vestimentas da Palavra de Deus, traz vergonha ao cristão e vexame a seu Senhor (KISTEMAKER. Apocalipse, p.569).

     Depois de observar γυμνός (gymnós)  por algumas portas de análise conseguimos ter algumas consolidações introdutórias. Nosso recorte (Ap.16:15) passa pelo uso figurado, de modo que a expressão imagética, vista em seu contexto histórico, traz delimitações importantes. As associações internas do Ap envolvendo γυμνός (gymnós) são suficientes para entendermos o aspecto negativo do adjetivo em voga. A ideia defendida de que a vestimenta aponta para o devido preparo para a chegada do noivo tem viés fundante no Apocalipse, por esta razão o nu é antítese disto. Além disso, a vestimenta aponta para posturas que caracterizam o povo de Deus e assim, novamente o “nu” está em oposição a isto. 

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