“NA CASA DE MEU PAI HÁ
MUITAS MORADAS”: qual o significado de “μοναὶ” (monaì - moradas) em Jo.14?
Problemática: “Na casa de meu Pai” (ἐν τῇ
οἰκίᾳ τοῦ πατρός μου – en tẽ
oikía tũ patrós mũ) onde “as moradas” (μοναὶ - monaì) estão presentes,
aponta para a habitação celestial ou humana (pelo Espírito) com conotações
distintas?
Síntese
explicativa. Observemos, inicialmente que alguns exegetas interpretaram “οἰκία” (oikía - casa) [1] num
sentido corporativo, à luz do conceito de Igreja como casa espiritual ou templo
de Deus (1Co.3:16-17; Ef.2:20-22; 1Pe. 2:5); A promessa de 14:2,3 é então
usada, para relacionar com a comunhão que será possível, através da partida de
Cristo e retorno através do Espírito.[2]
O termo “moradas” (ligado
“a casa do Pai” Jo.14:2) tem sido definido no evangelicalismo brasileiro em sua
ampla maioria, como um apontamento para o céu. Não podemos negar a complexidade
desta análise mesmo no meio dos estudiosos da Bíblia. As defesas são
distintas, entretanto, no nosso contexto trabalhamos apenas com uma alternativa
e desconhecemos qualquer outra. Nesse ensaio proponho, exegeticamente a
identificação da expressão supracitada com um viés diferente.
A
partir de Jo.13 “a narrativa da paixão e ressurreição de Cristo” está em
voga. De início, João nos mostra que “o Senhor amou os seus até o fim” (13:1),
logo depois deu um exemplo majestoso de humildade, ao “lavar os pés dos
discípulos”, mostrando que deveriam fazer o mesmo (13:20). Depois disso, o
traidor é indicado (13:21-30) e o Senhor afirma que Sua “glorificação é chegada”
(Ele tem pouco tempo – 13:31-33). Os discípulos devem obedecer ao “novo
mandamento” (13:34,35). Este tempo difícil que viria deveria ser enfrentado com
dois imperativos dados pelo Senhor de forma soberana: “não se turbe o
vosso coração; credes em Deus, crede também em mim” (Μὴ ταρασσέσθω ὑμῶν ἡ καρδία· πιστεύετε εἰς
τὸν θεὸν καὶ εἰς ἐμὲ πιστεύετε – 14:1).
Logo depois
destes imperativos (14:1) o Senhor afirma: “... na casa de Pai existem muitas
moradas; do contrário não teria dito a vós que vou preparar lugar a vós” (ἐν τῇ οἰκίᾳ τοῦ πατρός μου μοναὶ
πολλαί εἰσιν· εἰ δὲ μή, εἶπον ἂν ὑμῖν ὅτι πορεύομαι ἑτοιμάσαι τόπον ὑμῖν; Jo.14:2).
Como entender o significado destas “moradas” (μοναὶ - monaì) nesse
texto?
Primeiramente observemos que a palavra grega
usada para “morada” (um lugar onde alguém pode morar ou ficar – lugar, morada)[3] é “μονή” (moné). Ela aparece somente duas vezes
em toda a Bíblia[4],
justamente em Jo.14.1,23. Desta forma, a coesão lexical fica restrita em sua
análise a este capítulo. Nesse sentido, é importante observar que temos duas
ideias locativas presentes no texto joanino: a primeira, pois está “... na
casa do Pai” - a segunda definida pela expressão: “...faremos nele
morada”. Dificilmente poderemos separar o significado de “μονή” (moné) neste
capítulo. Portanto, esta ligação aponta justamente para a manifestação do
Pai e Filho na vida do crente pela presença do Espírito Santo (interpretação
validada pelo contexto).
Quanto a palavra “Pai” (πατήρ - patér) seu uso é manifesto em
Jo.14 por vinte e três vezes (vs.2,6,7,8,9-13,16,20-24,26,28). Nesses usos é
estabelecida a ligação entre o Pai e Filho com propósitos distintos. Em síntese
o próprio Senhor a define: “eu estou no Pai e o Pai em mim (14:10); quem me vê
a mim, vê o Pai” (14:9), Ele é “o caminho” para o Pai (14:6) e que “se
tivésseis me conhecido, conheceríeis também a meu Pai” (14:7). De forma
conclusiva esta ligação é estendida ao cristão. Em Jo.14:20 observamos isso: “naquele dia, vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu em vós”. Ao pensarmos que o propósito de
Cristo era levar os Seus ao Pai, esta ligação estabelecida em comunhão faz todo
o sentido (1:18; 14:9). Portanto, Cristo está no Pai e assim, os cristãos
também estarão na casa do Pai”, ou seja, em comunhão Ele, “naquele dia”.
Sobre
essa expressão “naquele dia” pode parecer referir-se ao “dia escatológico do
Senhor”, como em Isaías 2:11 e em outros lugares, que no Novo Testamento
apontariam para a “Parusia”. Mas, a expressão aqui deve referir-se novamente ao
evento de ressurreição, embora também possa ser vista como a inauguração da
escatologia cristã. “Naquele dia” - Jesus indicou que a conexão entre o Pai e
Si mesmo se tornaria clara (“conhecido” / “realizado”). O “inter-habitar” do
Pai e do Filho serviria como padrão de “inter-moradia” de Jesus e seus
seguidores. Como resultado da morte e ressurreição de Cristo, aqueles que creem
“têm vida” por meio dele (20:31).[5] Além disso, Jesus explica essa nova
relação em outros termos. Ele já ensinou que “o Pai está nele, e que [ele] está
no Pai”. Agora adiciona um novo elemento. Os seguidores de Jesus podem ser
considerados “nele” e “neles”. Por extensão, isto também significa que seus
discípulos estão “no Pai”, porque essa é a posição de Jesus. Esta relação é
definida como sendo amado pelo Pai e pelo Filho.[6]
Desde
de 13:33,36 o Senhor expõe aos apóstolos que “para onde iria, eles não poderiam
segui-Lo agora”. Isso culmina na centralidade de Cristo, pois “ir preparar
lugar” (πορεύω - ἑτοιμάζω – poreýo hetoimázo) e “voltar” (ἔρχομαι - érkhomai) são dinâmicas presentes no
texto por duas vezes (14:3,28), focando a singularidade do Senhor. Ao reduzirmos somente as aparições do segundo verbo
(14:3,6,18,23,28), ficará claro que esta volta, tem a ver com eventos
pós-ressurreição, de forma restrita a pessoa do Consolador (παράκλητος – parákletos
14:18). Assim, entender a dinâmica exposta com um viés
escatológico (digo escatologia futura) traz algumas dificuldades. A primeira
delas é reduzir “as moradas na casa do Pai” como promessa ao céu, mas que não
pode ser entendido como algo definitivo.[7]
Além disso, a volta funciona de forma invertida também, pois isso ocorre em
direção aos discípulos (14:28).
Portanto,
“μονή” (moné) pode
estar ligado a volta do Senhor na pessoa do Consolador (14:25,26). Isso
faz sentido pela amarração argumentativa presente no capítulo. A dinâmica tão
enfatizada vista escatologicamente ultrapassa as construções feitas no contexto
canônico. É importante trabalhar com um princípio teológico distinto desse
texto, focando elementos pneumatológicos ligados aos cristológicos. A
missão do Filho leva em conta a ligação com o Pai numa interação indissociável.
Neste caso, somente o Senhor Jesus pode realizar de forma perfeita na posição
de servo.
Depois destas fundamentações o efeito
conclusivo importante é definidor na exegese de Jo.14. Em suma de forma
resumida a tese da conclusão é: O consolador nos levou “a casa do Pai”.
Não podemos deixar de considerar o papel do
“Consolador,[8]
o Espírito da verdade” (... παράκλητον, τὸ πνεῦμα τῆς ἀληθείας) nesta premissa relacional exposta. Existem duas questões sobre
“o consolador” descritas no texto: 1)
“o Pai O enviará” e 2) Sua
manifestação é representada pela volta de Cristo (14:2,3). Portanto nessa
comunhão da igreja com Pai, por Cristo, se faz necessário também entender o
papel do Espírito Santo. Assim, é necessário novamente estabelecer os paralelos
com o verbo “ἔρχομαι” (épkhomai - voltar):
E, quando eu for e vos preparar lugar,
voltarei... (Jo.14:3).
Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros. (Jo.14:18).
Ouvistes que eu vos disse:
vou e volto para junto de vós
(Jo.14:28).
Esses
paralelos constituem uma compreensão que
não destituem o devido significado. Automaticamente, quando Cristo promete que
voltará (14:3), isso está totalmente ligado ao papel do Consolador presente no
coração dos discípulos (14:16-18,26,28): “Eu voltarei para vós – vou e
volto para junto de vós”. A diferenciação é concebida aqui, pois não se
pensa, como no v.3, na Parusia, mas depois da Sua Ressurreição, quando o
Espírito será transmitido (20:22).[9]
Esta distinção quebra o fluxo definido pelo contexto de forma abrupta. Borchert
depois de considerar as possibilidades de significado, afirma que esta seja uma
referência a páscoa e ressurreição de Cristo Jesus.[10]
Na verdade a explicação encorajadora da razão da morte iminente de Jesus e da
promessa de seu retorno, dada em v. 2-3, deveria ter trazido alegria aos
discípulos, uma vez que é uma partida para estar com o Pai; o verdadeiro amor a
Jesus significaria regozijar-se com ele nessa perspectiva. Outro fundamento de
tal alegria é o lembrete de que o Pai, que enviou Jesus e lhe deu suas palavras
para dizer e fazer, é maior do que Jesus, e assim tudo está sob controle.[11]
Portanto, temos estabelecida a relação da promessa (v.3)
com os fundamentos de seu cumprimento. A ideia defendida quanto a dinâmica
relacional (PAI – FILHO - em extensão a igreja) depende da ação do consolador.
A volta de Cristo n’Ele chancela o ensino e continuação da verdade (14:26).
Não podemos negar que “cavar mais fundo” é sempre um
desafio. Neste ensaio a proposta é justamente trabalhar com a interpretação
quanto “a casa do Pai”. Sabemos que estar neste maravilhoso lugar é um
privilégio e benefício conquistado por Cristo. Como Ele estava no Pai, isso é
estendido também a igreja. A concretização disso, se dá na pessoa do
Consolador. Suas ações estão ligadas ao Senhor Jesus, de maneira que as
conquistas da cruz são doadas por Ele.
[1]
Esta palavra aparece cinco vezes em João: 4:35; 8:35; 11:31; 12:3; 14:2. Nesse
caso “ναός” (naós – templo 1Co.3:16,17; 6:9) tem o mesmo sentido no texto paulino.
[2] BEASLEY-Murray, George R.: Word Biblical Commentary: John. Dallas:
Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 36), S. 249 (grifo meu).
[3]
LOW Johannes – NIDA Eugene. Léxico
Grego-Português do Novo Testamento, Baseado em Domínios Semânticos. São Paulo:
SBB, 2013, p.651.
[4] A
aparição em 1Macabeus 7:38 não é contabilizada aqui.
[5] BORCHERT, Gerald L.: John 12-21. electronic ed. Nashville:
Broadman & Holman Publishers, 2003, c2002 (Logos Library System; The New
American Commentary 25B), S. 127.
[6] BRYANT, Beauford H.; Krause, Mark S.: John. Joplin, Mo.: College Press Pub. Co., 1998 (The College Press
NIV Commentary), S. Jo 14:18.
[7] Diferentemente de algumas outras passagens que
apontam para a parúsia, esse texto focaliza o conforto a ser desfrutado pelos
crentes na presença de Deus (1Ts
4.15-18) — e não os elementos apocalípticos e o recolhimento do cosmos que se
enrola como se fosse um pergaminho (Mc
13.24-27; 2Ts 2) — o que é ainda diferente daquelas passagens que oferecem
consolo para os crentes na morte deles (e.g. 2Co 5.8; Fp 1.23). D.C.
Carson. João. São Paulo: Sheed Publicações, 2007, p.490
[8] A
palavra grega “παράκλητος” (parákletos) aparece cinco vezes no NT: 14:16,26; 15:26; 16:7;
1Jo.2:1.
[9] BERNARD, J. H.: McNeile, Alan Hugh
(Hrsg.): A Critical and Exegetical
Commentary on the Gospel According to St. John. New York: C. Scribner'
Sons, 1929, S. 2:547.
[10] BORCHERT, Gerald L.: John 12-21. electronic ed. Nashville:
Broadman & Holman Publishers, 2003, c2002 (Logos Library System; The New
American Commentary 25B), S. 126
[11] BEASLEY-Murray, George R.: Word
Biblical Commentary: John. Dallas : Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical
Commentary 36), S. 262.