segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

 

“NA CASA DE MEU PAI HÁ MUITAS MORADAS”: qual o significado de μοναὶ (monaì - moradas) em Jo.14?


                                 

Problemática: “Na casa de meu Pai” (ἐν τῇ οἰκίᾳ τοῦ πατρός μουen t oikía tũ patrós mũ) onde “as moradas” (μοναὶ - monaì) estão presentes, aponta para a habitação celestial ou humana (pelo Espírito) com conotações distintas?

Síntese explicativa. Observemos, inicialmente que alguns exegetas interpretaram “οἰκία (oikía - casa) [1] num sentido corporativo, à luz do conceito de Igreja como casa espiritual ou templo de Deus (1Co.3:16-17; Ef.2:20-22; 1Pe. 2:5); A promessa de 14:2,3 é então usada, para relacionar com a comunhão que será possível, através da partida de Cristo e retorno através do Espírito.[2]

O termo “moradas” (ligado “a casa do Pai” Jo.14:2) tem sido definido no evangelicalismo brasileiro em sua ampla maioria, como um apontamento para o céu. Não podemos negar a complexidade desta análise mesmo no meio dos estudiosos da Bíblia. As defesas são distintas, entretanto, no nosso contexto trabalhamos apenas com uma alternativa e desconhecemos qualquer outra. Nesse ensaio proponho, exegeticamente a identificação da expressão supracitada com um viés diferente.

A partir de Jo.13 “a narrativa da paixão e ressurreição de Cristo” está em voga. De início, João nos mostra que “o Senhor amou os seus até o fim” (13:1), logo depois deu um exemplo majestoso de humildade, ao “lavar os pés dos discípulos”, mostrando que deveriam fazer o mesmo (13:20). Depois disso, o traidor é indicado (13:21-30) e o Senhor afirma que Sua “glorificação é chegada” (Ele tem pouco tempo – 13:31-33). Os discípulos devem obedecer ao “novo mandamento” (13:34,35). Este tempo difícil que viria deveria ser enfrentado com dois imperativos dados pelo Senhor de forma soberana: “não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim” (Μὴ ταρασσέσθω ὑμῶν ἡ καρδία· πιστεύετε εἰς τὸν θεὸν καὶ εἰς ἐμὲ πιστεύετε 14:1).      

Logo depois destes imperativos (14:1) o Senhor afirma: “... na casa de Pai existem muitas moradas; do contrário não teria dito a vós que vou preparar lugar a vós” (ἐν τῇ οἰκίᾳ τοῦ πατρός μου μοναὶ πολλαί εἰσιν· εἰ δὲ μή, εἶπον ἂν ὑμῖν ὅτι πορεύομαι ἑτοιμάσαι τόπον ὑμῖν; Jo.14:2). Como entender o significado destas “moradas” (μοναὶ - monaì) nesse texto?

Primeiramente observemos que a palavra grega usada para “morada” (um lugar onde alguém pode morar ou ficar – lugar, morada)[3] é “μονή (moné). Ela aparece somente duas vezes em toda a Bíblia[4], justamente em Jo.14.1,23. Desta forma, a coesão lexical fica restrita em sua análise a este capítulo. Nesse sentido, é importante observar que temos duas ideias locativas presentes no texto joanino: a primeira, pois está “... na casa do Pai” - a segunda definida pela expressão: “...faremos nele morada”. Dificilmente poderemos separar o significado de μονή (moné) neste capítulo. Portanto, esta ligação aponta justamente para a manifestação do Pai e Filho na vida do crente pela presença do Espírito Santo (interpretação validada pelo contexto).   

Quanto a palavra “Pai” (πατήρ - patér) seu uso é manifesto em Jo.14 por vinte e três vezes (vs.2,6,7,8,9-13,16,20-24,26,28). Nesses usos é estabelecida a ligação entre o Pai e Filho com propósitos distintos. Em síntese o próprio Senhor a define: “eu estou no Pai e o Pai em mim (14:10); quem me vê a mim, vê o Pai” (14:9), Ele é “o caminho” para o Pai (14:6) e que “se tivésseis me conhecido, conheceríeis também a meu Pai” (14:7). De forma conclusiva esta ligação é estendida ao cristão. Em Jo.14:20 observamos isso: “naquele dia, vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu em vós”. Ao pensarmos que o propósito de Cristo era levar os Seus ao Pai, esta ligação estabelecida em comunhão faz todo o sentido (1:18; 14:9). Portanto, Cristo está no Pai e assim, os cristãos também estarão na casa do Pai”, ou seja, em comunhão Ele, “naquele dia”.

Sobre essa expressão “naquele dia” pode parecer referir-se ao “dia escatológico do Senhor”, como em Isaías 2:11 e em outros lugares, que no Novo Testamento apontariam para a “Parusia”. Mas, a expressão aqui deve referir-se novamente ao evento de ressurreição, embora também possa ser vista como a inauguração da escatologia cristã. “Naquele dia” - Jesus indicou que a conexão entre o Pai e Si mesmo se tornaria clara (“conhecido” / “realizado”). O “inter-habitar” do Pai e do Filho serviria como padrão de “inter-moradia” de Jesus e seus seguidores. Como resultado da morte e ressurreição de Cristo, aqueles que creem “têm vida” por meio dele (20:31).[5] Além disso, Jesus explica essa nova relação em outros termos. Ele já ensinou que “o Pai está nele, e que [ele] está no Pai”. Agora adiciona um novo elemento. Os seguidores de Jesus podem ser considerados “nele” e “neles”. Por extensão, isto também significa que seus discípulos estão “no Pai”, porque essa é a posição de Jesus. Esta relação é definida como sendo amado pelo Pai e pelo Filho.[6] 

Desde de 13:33,36 o Senhor expõe aos apóstolos que “para onde iria, eles não poderiam segui-Lo agora”. Isso culmina na centralidade de Cristo, pois “ir preparar lugar” (πορεύω - ἑτοιμάζωporeýo hetoimázo) e “voltar” (ἔρχομαι - érkhomai) são dinâmicas presentes no texto por duas vezes (14:3,28), focando a singularidade do Senhor. Ao reduzirmos somente as aparições do segundo verbo (14:3,6,18,23,28), ficará claro que esta volta, tem a ver com eventos pós-ressurreição, de forma restrita a pessoa do Consolador (παράκλητος parákletos 14:18). Assim, entender a dinâmica exposta com um viés escatológico (digo escatologia futura) traz algumas dificuldades. A primeira delas é reduzir “as moradas na casa do Pai” como promessa ao céu, mas que não pode ser entendido como algo definitivo.[7] Além disso, a volta funciona de forma invertida também, pois isso ocorre em direção aos discípulos (14:28).   

Portanto, μονή (moné) pode estar ligado a volta do Senhor na pessoa do Consolador (14:25,26). Isso faz sentido pela amarração argumentativa presente no capítulo. A dinâmica tão enfatizada vista escatologicamente ultrapassa as construções feitas no contexto canônico. É importante trabalhar com um princípio teológico distinto desse texto, focando elementos pneumatológicos ligados aos cristológicos. A missão do Filho leva em conta a ligação com o Pai numa interação indissociável. Neste caso, somente o Senhor Jesus pode realizar de forma perfeita na posição de servo. 

 Depois destas fundamentações o efeito conclusivo importante é definidor na exegese de Jo.14. Em suma de forma resumida a tese da conclusão é: O consolador nos levou “a casa do Pai”.

Não podemos deixar de considerar o papel do “Consolador,[8] o Espírito da verdade” (... παράκλητον, τὸ πνεῦμα τῆς ἀληθείας) nesta premissa relacional exposta. Existem duas questões sobre “o consolador” descritas no texto: 1) “o Pai O enviará” e 2) Sua manifestação é representada pela volta de Cristo (14:2,3). Portanto nessa comunhão da igreja com Pai, por Cristo, se faz necessário também entender o papel do Espírito Santo. Assim, é necessário novamente estabelecer os paralelos com o verbo “ἔρχομαι (épkhomai - voltar):

E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei... (Jo.14:3).

 

Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros. (Jo.14:18).

                                            

Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós (Jo.14:28).

 

Esses paralelos constituem uma compreensão que não destituem o devido significado. Automaticamente, quando Cristo promete que voltará (14:3), isso está totalmente ligado ao papel do Consolador presente no coração dos discípulos (14:16-18,26,28): “Eu voltarei para vós – vou e volto para junto de vós”. A diferenciação é concebida aqui, pois não se pensa, como no v.3, na Parusia, mas depois da Sua Ressurreição, quando o Espírito será transmitido (20:22).[9] Esta distinção quebra o fluxo definido pelo contexto de forma abrupta. Borchert depois de considerar as possibilidades de significado, afirma que esta seja uma referência a páscoa e ressurreição de Cristo Jesus.[10] Na verdade a explicação encorajadora da razão da morte iminente de Jesus e da promessa de seu retorno, dada em v. 2-3, deveria ter trazido alegria aos discípulos, uma vez que é uma partida para estar com o Pai; o verdadeiro amor a Jesus significaria regozijar-se com ele nessa perspectiva. Outro fundamento de tal alegria é o lembrete de que o Pai, que enviou Jesus e lhe deu suas palavras para dizer e fazer, é maior do que Jesus, e assim tudo está sob controle.[11]

Portanto, temos estabelecida a relação da promessa (v.3) com os fundamentos de seu cumprimento. A ideia defendida quanto a dinâmica relacional (PAI – FILHO - em extensão a igreja) depende da ação do consolador. A volta de Cristo n’Ele chancela o ensino e continuação da verdade (14:26).

Não podemos negar que “cavar mais fundo” é sempre um desafio. Neste ensaio a proposta é justamente trabalhar com a interpretação quanto “a casa do Pai”. Sabemos que estar neste maravilhoso lugar é um privilégio e benefício conquistado por Cristo. Como Ele estava no Pai, isso é estendido também a igreja. A concretização disso, se dá na pessoa do Consolador. Suas ações estão ligadas ao Senhor Jesus, de maneira que as conquistas da cruz são doadas por Ele.



[1] Esta palavra aparece cinco vezes em João: 4:35; 8:35; 11:31; 12:3; 14:2. Nesse caso “ναός” (naós – templo 1Co.3:16,17; 6:9) tem o mesmo sentido no texto paulino.

[2] BEASLEY-Murray, George R.: Word Biblical Commentary: John. Dallas: Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 36), S. 249 (grifo meu).

[3] LOW Johannes – NIDA Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento, Baseado em Domínios Semânticos. São Paulo: SBB, 2013, p.651.

[4] A aparição em 1Macabeus 7:38 não é contabilizada aqui.

[5] BORCHERT, Gerald L.: John 12-21. electronic ed. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 2003, c2002 (Logos Library System; The New American Commentary 25B), S. 127.

[6] BRYANT, Beauford H.;   Krause, Mark S.: John. Joplin, Mo.: College Press Pub. Co., 1998 (The College Press NIV Commentary), S. Jo 14:18.

[7] Diferentemente de algumas outras passagens que apontam para a parúsia, esse texto focaliza o conforto a ser desfrutado pelos crentes na presença de Deus (1Ts 4.15-18) — e não os elementos apocalípticos e o recolhimento do cosmos que se enrola como se fosse um pergaminho (Mc 13.24-27; 2Ts 2) — o que é ainda diferente daquelas passagens que oferecem consolo para os crentes na morte deles (e.g. 2Co 5.8; Fp 1.23). D.C. Carson. João. São Paulo: Sheed Publicações, 2007, p.490

[8] A palavra grega “παράκλητος (parákletos) aparece cinco vezes no NT: 14:16,26; 15:26; 16:7; 1Jo.2:1.

[9] BERNARD, J. H.: McNeile, Alan Hugh (Hrsg.): A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to St. John. New York: C. Scribner' Sons, 1929, S. 2:547.

[10] BORCHERT, Gerald L.: John 12-21. electronic ed. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 2003, c2002 (Logos Library System; The New American Commentary 25B), S. 126

[11] BEASLEY-Murray, George R.: Word Biblical Commentary: John. Dallas : Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 36), S. 262.


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