sexta-feira, 12 de novembro de 2021


Nascer de novo” (γεννηθῇ ἄνωθεν): o que está por trás desta expressão joanina (Jo.3:3,5)? A que tipo de experiência faz referência?


        Parece que em nosso CXT evangelical, pensamos, tacitamente em γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”) com direcionamentos oriundos de pressupostos hermenêuticos (abordagem pressuposicional), de maneira que a dimensão teológica da interpretação recebe maior proeminência. Por esta razão basta dizer que “nascer de novo” é algo relacionado a “morte espiritual” (resolvido!). Entretanto, os autores bíblicos não tinham compromissos com a TS. De outro lado, reconhecemos a impossibilidade de uma neutralidade hermenêutica, por isso, a tradição exerce um papel importante para a compreensão exegética. Assim, buscamos o equilíbrio metodológico para a investigação do texto sagrado. Neste ensaio, estamos interessados em observar γεννηθῇ ἄνωθεν por requisitos exegéticos, de maneira que possamos entender a intenção joanina em tal uso.

        CONTEXTO. O uso de γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”) aparece em João 3:3 no registro do diálogo de Jesus com Nicodemos (3:1-15). O cenário é Jerusalém durante a festa da Páscoa (3:23), algo precedido pela purificação do templo (2:13-22). A introdução do diálogo (2:23-25) chancela a descrição do que alguns estudiosos chamam de: “fé inadequada” (Carson, Beasley-Murray). Desta forma, a relação dos “sinais” com o verbo “creram” tem sido observada, para que se entenda o vínculo em foco, funcionando como substrato para a “fé inadequada”. Como bem coloca Borchert: “embora esta seção de ligação seja curta (entre 2:13-22 e 3:1-15), seu comprimento dificilmente é uma indicação de seu significado. Esses versículos estão entre as declarações mais significativas para fornecer uma perspectiva correta do Evangelho (BORCHERT. John 1-11, The New American Commentary, p.167). Diante da dinâmica apresentada podemos questionar: Nicodemos estava entre os personagens de 2:23-25? Carson ao comentar a ligação de 3:1 (pela conjunção δέ) afirma que “Nicodemos exemplificava aqueles que, em algum sentido, criam em Jesus, mas cuja fé era tão inadequada que Jesus não se confiava a eles” (CARSON. João, p.186). A questão dos “sinais” parece ser relevante para esta percepção (2:23; 3:2).

    TEXTO GREGO  É importante salientarmos também alguns pontos sobre o texto grego. Neste viés, a fala do Senhor é escriturada da seguinte forma:  [A]  ἐὰν μή τις γεννηθῇ ἄνωθεν, [B] οὐ δύναται ἰδεῖν τὴν βασιλείαν τοῦ θεοῦ (Jo.3:3). Pela sintaxe grega essa construção é vista como uma oração subordinada de terceira classe (ἐὰν + modo subjuntivo). Assim, a tradução considera a parte A como prótase: “se alguém não nascer de novo...(ARA)”. De outro lado a Apódase funciona como efeito: [então] “não pode ver o reino de Deus” (WALLACE. Gramática Grega, p.682). Além disso, a expressão γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”) é vista de algumas formas quanto a tradução, por causa do advérbio ἄνωθεν (anothen, aparece 13 vezes no NT): [1] na extensão, uma fonte que está acima, de cima (Mt.27:51; Mc.15:38; Jo.19:23, Jo 3:31; 19:11; Tg.1:17; 3:15,17). [2] de um ponto de tempo marcando o início de algum, desde o início ou por um período relativamente longo no passado, por muito tempo (Lc 1:3; At.26:5). [3] em um ponto subsequente de tempo envolvendo repetição, novamente (Jo.3:3,7; Gl.4:9 mas acompanhado por πάλιν). Algo propositalmente ambíguo, sugerindo também uma experiência transcendente, neste caso, “nascido de cima” (Arndt, W., Danker, F. W., & Bauer, W. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian. p.92). Vicent trabalha em favor da tradução “de cima”, insistindo no que corresponde ao método habitual de João de descrever a obra de regeneração espiritual como um nascimento de Deus (1:13; 1Jo.3:9; 4:7; 5:1,4,8); e, além disso, que é Paulo, e não João, quem o descreve como um novo nascimento (VINCENT. Word Studies in the New Testament 2:90).

      TESES INTERPRETATIVAS. Depois destas primeiras considerações pensemos em algumas teses interpretativas para γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”). Alguns estudiosos traçam a origem da linguagem do “nascer de novo” a vários ramos do gnosticismo, religiões de mistério ou outras formas de paganismo. Já outros eruditos apelam para as fontes judaicas que dizem que um prosélito recentemente batizado é como uma criança recém-nascida, ou para aquelas que afirmam que os sacrifícios diários tornam Israel semelhante a uma criança de um ano de idade (CARSON. João, p.190). Carson na contramão destas percepções afirma: “o delineamento do pano de fundo mais provável pode esperar até o v.5. É suficiente para o momento notar que Jesus esperava que Nicodemos entendesse o significado do ‘novo nascimento’ por causa de seu pano de fundo como um destacado mestre das Escrituras (CARSON. João, p.190). Köstenberger também associa 3:3 com 3:5, de maneira que γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”) funciona em paralelo com γεννηθῇ ἐξ ὕδατος καὶ πνεύματος (gennethê ex hýdatos kaí pneúmatos, “nascer da água e do Espírito”).  Assim, em vez de se referir ao batismo com água e espírito como dois tipos de nascimento, ou uma variedade de outras coisas, a frase provavelmente denota um nascimento espiritual (KÖSTENBERGER. John. Baker Exegetical commentary on the New Testament, p.123). Beasley Murray corrobora ao mostrar que γεννηθῇ ἄνωθεν (gennethê anothen, “nascer de novo ou do alto”) funciona como uma adaptação da esperança judaica de uma nova criação. Os judeus se familiarizaram com a aplicação deste conceito às pessoas, mesmo em contextos não escatológicos, mas na tradição que remonta a Jesus, o elemento escatológico era constante (BEASLEY-MURRAY. Vol. 36: Word Biblical Commentary: John. Word Biblical Commentary, p.47). Por outro ponto, Jesus fala, literalmente sobre nascer “de cima”, que significa “de Deus” (“de cima” era uma circunlocução judaica, ou expressão indireta, para Deus). Pode-se também interpretar a frase como significando “renascer”, algo que Nicodemos interpreta literalmente. Isto porque os professores judeus falavam dos convertidos gentios ao judaísmo como começando uma vida nova como “crianças recém-nascidas” (assim como filhos adotados sob a lei romana renunciam a todo status legal em sua antiga família, quando se tornam parte de uma nova). Nicodemos deveria ter entendido que significava conversão; mas nunca lhe ocorreu que alguém judeu precisaria se converter à verdadeira fé de Israel (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Jo.3.3). Finalmente, a ligação com o AT deve ser observada também. Assim, muito provavelmente, essa passagem é uma alusão a Ezequiel 36.24-27, que anuncia a purificação com água que Deus realizará no coração humano e sua transformação interior pelo Espírito (cf. Is.44.3-5). A noção de um novo começo e de uma transformação interior decisiva na vida de uma pessoa é encontrada em outras passagens proféticas do AT (e.g., Jr 31.33,34; Ez 11.19,20). É dessa realidade espiritual que Nicodemos, mestre em Israel, deveria estar consciente, mas faltava a ele (e, pode-se pressupor, faltava também aos outros membros do Sinédrio (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do AT no NT, p.547).

      Torna-se perceptível que γεννηθῇ ἄνωθεν  não é tão simples de ser definido, quando visto com considerações exegéticas. Alguns elementos são levantados, de maneira que, as bases argumentativas sejam expostas. Portanto, mesmo não deixando de levar em conta os direcionamentos envolvendo o pando de fundo de João, parece que a conexão de 3:3 com 3:5 é pedagógica para se entender a questão. Além disso, a tradução de ἄνωθεν  corrobora com nosso entendimento do papel do Senhor nesta indescritível obra (Jo.1:12,13).      

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

 

     A Identificação do “espírito imundo” (por que é assim chamado?) e sua tripa fala sobre o Senhor Jesus: Análise Exegética.

    


“... [1] que temos contigo Jesus Nazareno; [2] Vieste destruir-nos? [3] Bem sei que és: o Santo de Deus!” (Mc.1:23,24)

      Em nosso CXT evangelical existem uma diversidade de percepções sobre o demônio e a possessão demoníaca. Infelizmente, parece que tais percepções não têm uma ligação estrita com a Palavra, como algo oriundo do orare/labutare (exegese e oração). Entretanto, do debate (embora pouco expressivo em seu alcance) realizado por alguns, algumas linhas são estabelecidas, neste caso, especificamente a possessão demoníaca vista como: [1] algo exclusivo aos tempos bíblicos sem continuísmo; [2] algo continuado, afirmando assim, sua contemporaneidade, [3] registro para a atender “as necessidades querigmática da igreja” (histórico-crítico) e [4] algo dissociado de elementos históricos concentrando desta forma na “arte literária do autor” (Crítica da Narrativa). Assim, os caminhos investigativos são amplos. Neste ensaio, trabalharemos uma parte disto, mas com foco na identificação do “espírito imundo” (πνεῦμα ἀκάθαρτος) e em sua tripla fala com respeito ao Senhor Jesus.    

        A redução demonstrando a proposta deste ensaio aparece numa abordagem contextual distinta. Desta forma, a cena em voga (1:21-28) é registrada no início do ministério de Cristo na Galileia (1:16), sendo precedida por seu primeiro ato: “a chamada dos discípulos” (1:16-20). Por isso, o verbo “entraram” denota que o recém-reunido “círculo de Jesus” já opera como um grupo definido (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.101). O cenário construído pela narrativa traz que Jesus e seus primeiros discípulos estavam na sinagoga na cidade de Cafarnaum e o Senhor, neste feita, “ensinava” (1:21). Na verdade, esta era (“ensinar”) uma prática comum aos professores visitantes, serem convidados a ler as Escrituras e/ou falar, um costume do qual tanto Paulo quanto Jesus se beneficiavam. O fato de Cristo ter sido convidado a falar indica que já havia estabelecido uma reputação como mestre e que este não foi um dos primeiros eventos em seu ministério. Ele foi reconhecido como professor até mesmo por seus oponentes (cf.12.19), embora não haja evidências de que tenha recebido qualquer treinamento formal. Certamente não era tipicamente um rabino (BROOKS. Mark The New American Commentary, p.50). No ocorrido em foco apareceu “um homem  com um espírito imundo” (1:23).

       Como leitores da Bíblia observamos algumas vezes no texto a expressão: “espírito imundo” (πνεῦμα ἀκάθαρτος). Por esta razão problematizamos: por que este uso (“espírito imundo”)? Nesta dinâmica, o adjetivo usado (“imundo”) tem que conotação? O imperativo quanto ao entendimento disto passa também pela abrangência de seu uso. Somente em Marcos aparece onze vezes (ver também em: Mt.10:1; 12:43; Lc.4:33,36; 8:29; 9:42; 11:24), seis dos quais ocorrem em duas histórias (1:23,26,27; 5:2,8,9 [7:25; 9:25]), o que pode ter influenciado a composição de 3:11-12. O problema é que esta expressão carece de explicações, porquanto tem certos elementos não vistos na estrutura de superfície (o texto). O adjetivo grego ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos) usado em Mc.1:23 relacionado a  πνεῦμα (lê-se: pneûma) aparece 32 vezes no NT, destas 21 só nos evangelhos. A expressão completa πνεῦμα ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos pneûma) é traduzida no léxico do Louw e Nida assim: “um espírito sobrenatural maligno que é impuro do ponto de vista ritual e que faz com que as pessoas sejam, ritualmente impuras, isto é, impedidas de participar do culto” (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do NT, p.133). Este ponto é visto no BDAG em associação com a “impureza moral” (Zc.13:2) pelas aparições nos evangelhos (Danker; Bauer’s. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p.34). A síntese “impureza ritual” e “moral” ganha, inicialmente conotação elucidativa para o ponto em voga.

      Corroborando com a primeira observância, observemos πνεῦμα ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos pneûma) pelo CXT histórico do texto. Inicialmente Guelich explica que esta expressão “representava uma designação judaica comum para demônios” (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.56). Kenner corrobora, quando destaca: (“os espíritos imundos”) eram frequentemente associados à magia, e os mágicos tentavam subjugar outras forças espirituais invocando seus nomes” (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Mc 1:23). France chancela que “espírito imundo” e “demônio” eram vistos como sinônimos (6:7 com 13; 7:25 com 26); Em suma este “espírito imundo” corresponde ao termo ר֥וּחַ הַטֻּמְאָ֖ה (rûaḥ haṭumeah, presente em Zc.13:2) usado frequentemente nos escritos rabínicos no mesmo sentido (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.103).

       Observemos, agora a tripla fala do homem/possesso com seu desdobramento. Inicialmente, é perceptível a convenção que existe entre os vs.23.24, envolvendo singular/plural: “um homem [...] bradou: que temos s...”, algo expresso com dois questionamentos. O plural deve estar designando os poderes demoníacos como classe (“nos/nós” = “nos/nós espíritos maus”), assim pode se ver a questão (HAUBECK, SIEBENTHAL. Nova Chave Linguística Novo Testamento Grego: Mateus ־Apocalipse, p.258). Guelich vê que a pergunta inicial como retórica e funcionando como primeira de uma série de comentários proferidos pelo “espírito impuro” falando ora no plural e genericamente pelos espíritos imundos e ora no singular por si mesmo  (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.56). Além desta transição singular/plural devemos observar o teor dos questionamentos e afirmação.

        A primeira indagação tem a seguinte construção: λέγων· τί ἡμῖν καὶ σοί, Ἰησοῦ Ναζαρηνέ;  (“o que queres de nós? Que temos nós a ver contigo?” Mc.1:23). Se faz necessário observar esta dinâmica argumentativa, tendo como pano de fundo o AT (2Sm.16:10; 19:23; 1Rs.17:18; 2Rs.3:13; Jz. 11:12; 2Cr.35:21), quase sempre colocado por um inferior a um superior. Assim, a questão tem a função defensiva de colocar aquele questionado na posição de responsabilidade pelo que se segue e, assim, cria uma distância irreconciliável entre as duas partes. A pergunta trai o reconhecimento do “espírito impuro” de seu próprio status, particularmente à luz da autoridade de Jesus (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.56). De outro lado, temos aqui as primeiras duas formas com que o “espírito impuro” se dirige ao Senhor: “Jesus Nazareno [de Nazaré] (cf. Mc.10:47; 14:67; 16:6; Lc.4:34; 24:19). Vieste destruir-nos?” Por quê?

       France sobre “Jesus Nazareno” traz algo importante para a explicação, pois, “acreditava-se que os exorcistas ganhavam poder pela posse do nome do demônio (5:7-9), e talvez o demônio aqui tente, sem sucesso, reverter o processo” (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.103). Entretanto, o “espírito imundo” tentou sem sucesso se opor a Jesus usando seu nome. Assim, outra questão passa a ser observada, porquanto “os demônios temiam que Jesus não apenas os expulsasse, mas também os entregasse aos tormentos da Geena” (GOULD. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. Mark, p.23).

      Finalmente, o “espírito imundo” se dirige ao Senhor como “o santo de Deus” (ὁ ἅγιος τοῦ θεοῦ). Esta expressão ocorre no AT, se referindo a Aarão (Sl.106:16), Eliseu (2Rs 4:9) e Sansão (Jz.16:17). O último caso traz alguma dificuldade, porquanto as versões em português traduzem como: “eu [mesmo] sou narizeu de Deus” (ἅγιος θεοῦ ἐγώ εἰμι, LXX). Guelich faz uma comparação entre os radicais de “Nazaré” (נצר) e “nazireu [santo]” ( נָזִיר) algo que chancela um jogo de palavras. Portanto, a designação que indica a origem de Jesus (“de Nazaré [Ναζαρηνέ]”) descrevendo à sua verdadeira identidade (o “Santo [ὁ ἃγιος] de Deus”). Além disso, o “Santo de Deus”, aquele separado, consagrado por Deus, pode até mesmo assumir mais significado visto num profundo contraste com o “espírito impuro” (1:23). Em qualquer caso, este uso de “Santo de Deus” indica uma relação especial, embora não especificada aqui, entre Jesus e o Senhor (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.57). Brooks corrobora, pois entende que provavelmente esse é um título messiânico, embora haja poucos atestados para isso (BROOKS. Mark The New American Commentary, p.51). Portanto, serve para transmitir a consciência do demônio de que ele se deparou com um poder espiritual superior. (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.103).

     Esta sintética análise exegética traz alguns efeitos elucidadores. O primeiro deles passa pela compreensão da expressão “espírito imundo/impuro”. Isto tem considerável importância, pois pela estrutura de superfície a questão não pode ser resolvida. Além disso, a fala deste espírito trouxe também elementos pedagógicos para entendermos seu reconhecimento da autoridade de Jesus. Em suma, sua tripla fala chancela este aspecto. 


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

        O “NOVO” versus o “VELHO”: Análise Exegética de Mc.2:21¾22 (Mt.9:14¾17; Lc.5:33¾39).

“Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; [...]  Ninguém põe vinho novo em odres velhos;” (Mc 2:21, 22 ARA)


        Neste ensaio a delimitação exposta tem foco textual definido. Tal investigação parte da necessidade de certas compreensões tanto no nível exegético como teológico. Algo complexo, neste quesito, passa pela impressão oriunda de uma primeira leitura de Mc.2:21¾22 (estrutura de superfície), expondo a dificuldade quanto as definições conceituais que emanam do texto, a partir de seus desdobramentos. Em suma, podemos afirmar que os adjetivos “novo” e “velho” trazem discussões quanto ao continuísmo ou descontinuísmo entre o AT e o NT. A estrutura da análise proposta nos levará por alguns caminhos: [1] Mc.2:21¾22 na harmonia dos evangelhos; [2] Mc.2:21¾22 em sua abordagem contextual; [3] Mc.2:21¾22 explicado, a partir de suas parábolas.

     A primeira atividade investigativa passa pelo viés da harmonia dos evangelhos. Este tipo de análise produz alguns desdobramentos que trazem certas referências, mas nosso objetivo passa, somente pela comparação redacional.  

 21 Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior a rotura (Mc.2:21). Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo tira parte da veste, e fica maior a rotura (Mt.9:16). 36 Também lhes disse uma parábola: Ninguém tira um pedaço de veste nova e o põe em veste velha; pois rasgará a nova, e o remendo da nova não se ajustará à velha (Lc.5:36).

22 Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres; e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos. (Mc.2:22). Nem se põe vinho novo em odres velhos; do contrário, rompem-se os odres, derrama-se o vinho, e os odres se perdem. Mas põe-se vinho novo em odres novos, e ambos se conservam (Mt 9:17). E ninguém põe vinho novo em odres velhos, pois o vinho novo romperá os odres; entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão. 38 Pelo contrário, vinho novo deve ser posto em odres novos e ambos se conservam. 39 E ninguém, tendo bebido o vinho velho, prefere o novo; porque diz: O velho é excelente. (Lc.5:37¾39).

    

       Em suma, Robert e Gundry entendem que esta harmonia descrevem a seguinte síntese: “Jesus defende os seus discípulos com três parábolas por eles estarem festejando em vez de jejuar” (THOMAS, GUNDRY. Harmonia dos Evangelhos, p.36). As pequenas mudanças textuais que ocorrem nestas partes expostas serão vistas com de forma mais pormenorizada na explicação dos conceitos.

        O segundo ato foca a abordagem contextual, antes de pensarmos nestes conceitos. É comum os estudiosos pensarem a proeminência de Mc.2:18¾22, envolvendo o jejum. Vemos isto em Brooks (Mark, The New American Commentary, p.63), Guelich (Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.106) e outros, Entretanto, a temática de Grant Osborne destoa, pois entende a questão, descrevendo “o novo verso o antigo” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.6), algo presente também na percepção de R.T France: “Velho e novo na observância religiosa” (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.136). Além das temáticas expostas se faz necessário pontuar a progressividade argumentativo presente no contexto.

      Inicialmente percebemos que Mc.2:18¾22 está situado em uma série de narrativas de conflito. Os elementos usuais do cenário, ação, pergunta e resposta aparecem em 2:18,19. Mas, a última (resposta) continua em 2:19b-20, com base nos temas de 2:19a, e em 2:21,22, com duas parábolas construídas paralelamente (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.107). Em suma, as cinco histórias em 2:1¾3:6 mostram uma constante intensificação do conflito entre Jesus e os líderes religiosos, particularmente os escribas e fariseus. Na primeira história (2:1¾12), o antagonismo permaneceu em grande parte não falado. Nos três seguintes (2:13¾17, 18¾22, 23¾28), o conflito resulta em confrontos verbais. Na história final (3:1¾6) se irrompe uma conspiração contra a vida de Jesus. Em cada encontro, a autoridade de Jesus acentua as fórmulas e categorias nas quais as pessoas o pressionariam (EDWARDS. The Gospel According to Mark. The Pillar New Testament commentary, p.86). A redução tratada pode ser vista em três partes: os dois grupos (2:18), o questionamento (2:18) e a resposta de Jesus (2:19¾22).

      Em Marcos 2:18 é feita menção dos discípulos de João (Lc.7:18; Mt. 14:12; Lc.11:1; Jo.1:35,37; 3:25) e dos Fariseus (Lc.5:33). Osborne afirma que “esses dois grupos representam a antiga ordem, que ainda observa as práticas tradicionais” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.48). Assim, os “discípulos” mencionados aqui aparentemente voltaram à vida normal na Galileia, em vez de continuar numa comunidade no deserto na área do ministério de batismo de João. Como um grupo de “renovação”, não é surpreendente que eles, como os fariseus, adotassem um código de observância religiosa mais exigente, seguido pela maioria dos judeus na época (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.138). Brook traz uma importante consideração sobre a tradução: “a expressão ‘discípulos dos fariseus’ tem sua dificuldade declarada, porque os fariseus não tinham discípulos, mas eram eles próprios discípulos dos escribas. Talvez a ideia seja ‘admiradores’ ou ‘companheiros de viagem’  que simpatizavam com o partido farisaico, mas não eram membros” (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.64)

       Nesta cena, o questionamento aparece (feito pelos discípulos de João, Mt.9:14): “Por que jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, e não jejuam os teus discípulos?” (Mc.2:18). Para compreender esta questão se faz necessário observar a prática do Jejum pelo viés da Torá. Desta forma, observamos que a Lei exigia jejum apenas no Dia da Expiação (Lv.16:29¾34), mas muitos outros jejuns foram acrescentados por judeus religiosos, especialmente por grupos como os fariseus (muitos dos quais podem ter jejuado sem água duas vezes por semana, especialmente na estação seca, Lc 18.12,). O jejum era uma prática importante para se juntar à oração ou penitência, então seria incomum para os discípulos evitá-lo completamente. Naquele tempo, um mestre era considerado responsável pelo comportamento de seus discípulos (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Mc 2:18-19). Sobre os outros jejuns, na verdade, estavam associados as experiências traumáticas vividas por Israel (Zc 7.5;8.19)  ligadas ao Exílio).  Em geral, os jejuns representavam arrependimento dos pecados ou tristeza por morte ou enfermidade (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.49). Para entendermos esta questão precisamos pontuar estas diferenciações, para que tenhamos a conotação prescritiva assimilada.

      A resposta do Senhor aparece, primeiramente com uma contra pergunta algo comum nas disputas rabínicas e de acordo com Marcos, Jesus frequentemente a usava (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.64). Além disso, numa analogia o Senhor traz elementos do casamento judaico para explicar a questão. Na verdade, as festas de casamento exigiam sete dias de festa e não era permitido jejuar ou envolver-se em outros atos de luto ou trabalho difícil durante elas (KEENER. The IVP Bible background commentary: New Testament, Mc 2:18-19). Corroborando com isto, pela estrutura de plausibilidade percebe-se que 2:19 é uma declaração sobre a presença da “nova era” incorporada na presença e companhia do noivo, 2:20 é essencialmente uma predição da perda do noivo. O “velho” e o “novo” são mutuamente exclusivos (cf. 2.21-22). Portanto, 2:19b,20a muda o foco de 2:19a, mas não o significado. Ambos lidam com o jejum, mas de forma mais metafórica do que principalmente com referência ao ministério terreno de Jesus, o outro com referência à sua morte (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.114).

      Finalmente, chegamos a questão deste ensaio, pois as parábolas de Mc.2:21,22 estão em foco. Como entender “o novo versus o velho”? Inicialmente, Osborne destaca que “a mensagem é a incompatibilidade entre a nova e a antiga aliança. A roupa velha já encolheu e não mudará mais de tamanho. O retalho de pano novo costurado a ela encolherá quando for lavado e a linha rasgará o manto velho e também o retalho novo. Ambos serão destruídos. O mesmo se aplica à mensagem de Jesus acerca do novo reino.” (OSBORNE. Comentário Expositivo Marcos, p.49). Além disso, a ênfase no “novo” no ministério de Jesus que “rasga a roupa velha” e é “colocado em odres novos”, traz elementos, realçando o motivo da paixão de 2:19,20, ou seja, a retirada do noivo (GUELICH. Mark 1-8:26. Word Biblical Commentary, p.115). Assim, as parábolas gêmeas ensinam a antagonismo do antigo (judaísmo dos escribas) e do novo (cristianismo). Neste viés, o judaísmo é a “roupa velha e o odre velho”. O cristianismo é a nova vestimenta (implícita), o “odre novo e o vinho novo” (no último, Jo.2:1-11, especialmente v.10). A questão não é que o “velho” seja errado ou mal, mas que seu tempo já passou (BROOKS. Mark, The New American Commentary, p.65).

      Esta sintética jornada investigativa passou por algumas considerações fundantes. A partir delas, temos uma perspectiva inicial. Nossa questão passou pela relação do “novo versus  velho” em Mc.2:21,22. Parecer ser real a conclusão hermenêutica que envolve a relação entre as perspectivas judaicas e o cristianismo inaugurado por Cristo. O contexto da passagem analisada corrobora com alguns exemplos em que os diálogos do Senhor trazem interpretações autoritativas (2:15-17, 23-27; 3:1-6). Com isto podemos falar num aspecto cristocêntrico num viés prospectivo e retrospectivo em relação ao AT. Para ser mais claro, a hermenêutica cristológica se tornou a régua para entendermos o AT, olhando para trás e para entendermos a progressividade do AT, olhando para a frente.  


domingo, 3 de outubro de 2021


Caos Total, Mal Natural” e o “Vento de Deus”: Algumas Discussões Exegéticas presentes em Gn.1:2.



        Neste ensaio trabalharemos alguns pontos vistos numa abordagem exegética, oriundos de discussões exegéticas presentes em Gn.1:2. Tal tarefa traz consigo considerável complexidade, de maneira que, este espaço dedicado a análise em voga passa por pretensões introdutórias. A trilogia “caos total, mal natural” e “vento de Deus” condicionará  a  estrutura deste ensaio quanto a sua investigação de Gn.1:2. O elemento adicional a esta trilogia passará pela observância da relação existente entre Gn:1:1 e Gn.1:2, a qual tem papel de grande importância para a s consolidações argumentativas convertidas em teses hermenêuticas. Alguns estudiosos corroborarão com nossa percepção de tais questões, entretanto, dois principalmente: Bruce Waltke e Gordon Wenham.

Gn.1:1,2: 

“No princípio criou Deus os céus e a terra

                                                         “E a terra.

         A junção dos versos 1,2 é nossa primeira tarefa de análise. Esta abordagem contextual passa pela repetição da palavra “terra” com a conjunção (הָאָֽרֶץ׃ וְהָאָ֗רֶץ). É constatável que as versões em português divergem na tradução desta conjunção, pois algumas a veem como aditiva (“e” ACF, ARC), outras como adversativa (“porém”, ARA, TB), entretanto, um número maior a desconsidera em sua tradução (NAA, NVI, BJ, NVT).    Wenham nos faz ver uma fórmula aqui construída pela conjunção + substantivo, indicando que o v.2 funciona como uma cláusula disjuntiva. Desta forma, 1:1 é uma cláusula principal que descreve o primeiro ato da criação já os vs. 2,3 descrevem as fases subsequentes na atividade criadora de Deus. Esta é a visão tradicional adotada em nossa tradução. Lembrando que o v.2 descreve o estado da terra antes do primeiro mandamento divino presente no v.3, construções semelhantes, encontramos em Gn.3:1; 4:1 (WENHAM. WBC, p.11). A “terra” é descrita pela primeira vez em seu estado primitivo no início da criação, antes de ser transformada numa habitação adequada para a vida humana. Seis “dias” de criação são descritos, a partir da perspectiva terrestre de uma pessoa observando a transformação (MATHEWS. Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.130).

  Esta abordagem traz uma questão aparentemente óbvia, mas que produz certa complexidade. Neste caso, a construção do v.2 indicando como explica Waltke: “o caos  [o “mal natural”]  não existe independemente de Deus, mas o texto não explica a ligação entre Ele e o caos” (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203). Numa percepção judaica presente em The JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna esta percepção funciona de outra forma, pois: “o fato de Deus criar matéria desorganizada, apenas para reduzi-la à ordem, não apresenta mais problema do que o fato de que Ele levou seis dias para completar a criação, em vez de produzir instantaneamente um universo perfeito” (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Vern S. Poythress trabalha esta questão em seu artigo no Westminster Journal (Genesis 1:1 is The first event, not a summary), expondo as três possibilidades de se ver a questão (Gn1:1 ligado a Gn1:2): (1) De acordo com a interpretação tradicional, Gn.1:1 descreve o evento inicial entre os atos de Deus da criação. O v.2, então, dá informações circunstanciais sobre o estado de a terra em um ponto inicial. (2) De outro lado, Gn.1:1 pode ser visto como um resumo de toda a sequência de atos divinos descritos nos vs. 2–31. Assim, Gn.1:1 não descreve o primeiro evento que levou à criação da terra e seu estado sem forma no v.2.[1] Parece ser complexo pensar na dissociação destes versos, pensando no papel de “Elohim”, pois trará amplas complicações, dentre elas, o fundamento da soberania do Senhor na criação.  


Þ    “Caos total, Mal natural”.

  Incialmente nossa análise de Gn.1:2 passa pelos termos “tohu, vohu (“sem forma e vazia” תֹ֙הוּ֙- בֹ֔הוּ) e “choshekh” (“trevas” חֹ֖שֶׁךְ ). Os dois primeiros são vistos com certa dificuldade (presentes também em Is.34:11; Jr.4:23) em sua sua  tradução, entretanto Wenham os define como: “caos total”, funcionando em Hendíadis (WENHAM. WBC, p.15). De outro lado, Skinner  trabalha também com esta tese, mas afirma que “talvez seja impossível unir as características desta descrição numa única imagem”. Ainda assim, a tendência exegética tem sido enfatizar o último aspecto e se aproximar da noção grega de caos como espaço vazio. Mas nosso guia mais seguro talvez seja a visão de Jeremias do Caos (4:23-26), algo que simplesmente aponta para uma terra escurecida e devastada, da qual a vida e a ordem fugiram. A ideia aqui é provavelmente semelhante. (SKINNER. A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p.16). Finalmente, Mathews destaca que não há consenso sobre o significado preciso destes termos, nem como devem ser entendidos, quando ocorrem em conjunto (MATHEWS. Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.130). Keil e Delitzsch fazem uma observação semelhante, partindo da ideia de que a etimologia destes substantivos está perdida (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament Vol,1:30). Este ponto quando visto em The JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna traz elementos que seguem a mesmas linhas expostas, porquanto afirma que tohu/vohu descreve o estado inicial e caótico da terra (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Finalmente, pelo background histórico se percebe que nas visões egípcias das origens, existia o conceito de “não existente” que pode ser muito próximo ao que é expresso aqui no Gênesis. Algo visto como aquilo que ainda não foi diferenciado e não tem função atribuída. Nenhum limite ou definição foi estabelecido. O conceito egípcio, entretanto, também carrega consigo a ideia de potencialidade e uma qualidade de ser absoluto (MATTHEWS. CHAVALAS & WALTON. The IVP Bible background commentary: Old Testament, Gn 1:2).

       Já o “choshek” (חֹ֖שֶׁךְ) passa por uma linha de ambiguidade, segundo Wenham.  Desta forma, se a “luz” simboliza Deus, as “trevas” evocam tudo o que é anti-Deus: “os ímpios (Pv 2:13), o julgamento (Êxodo 10:21) e a morte (Sl 88:13)”. A salvação é descrita para trazer luz aos que estão nas trevas (Is.9:1). Mas, enquanto a escuridão é opaca para o homem é transparente para Deus (Sl.139:12). Na verdade, Deus pode se ocultar nas trevas nos momentos de grande revelação (Dt 4:11; 5:23; Sl 18:12). Entretanto, esta é também uma imagem que afirma o mesmo ponto, ou seja, o caos (WENHAM. WBC, p.16). Waltke pensa nisto como “mal natural” (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203), algo que desafia nossa compreensão, quando pensamos em sua origem.

        Algo também desafiador passa pela menção do complemento das “trevas”, pois: וְחֹ֖שֶׁךְ עַל־פְּנֵ֣י תְה֑וֹם (“e [havia] trevas sobre a face do abismo”). Este  תְּהוֹם (tehom) que se traduz como “abismo” (ARA, ARC, ACF) ocorre 36 vezes no AT e segundo Wenham pode ser traduzido como “águas profundas” (WENHAM. WBC, p.16). Waltke chama este “tehom” de “águas primordiais”, as quais não aparecem ligadas a palavra divina que descreve as ordens para sua criação, entretanto o sumário do v.1 ligado a outros textos bíblicos faz com que vejam este “tehom” (presentes também  em outras cosmogonias do antigo oriente próximo) como uma realidade temporal, só Deus é eterno  (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.203).

       A última linha de Gn.1:2 traz algo também complexo, pois envolve a tradução de: וְר֣וּחַ אֱלֹהִ֔ים מְרַחֶ֖פֶת עַל־פְּנֵ֥י הַמָּֽיִם׃. O substantivo “ruah” (רוּחַ) ligado a “Elohim” (אֱלֹהִ֔ים) tem sido traduzido como “Espírito de Deus” (ARA ARC, ACF), entretanto alguns estudiosos advogam outra tradução: “vento de Deus” (SBP, NAB). Wenham destaca que “Elohim” pode ser usado para expressar o superlativo, assim, “grande vento” é preferível na forma de se traduzir (WENHAM. WBC, p.17). Outros elementos são levantados por Bruce Waltke que corroboram com nosso entendimento da questão: [1] “ruah” (רוּחַ) “Elohim” (אֱלֹהִ֔ים) significa “espírito de Deus”, “vento da parte de Deus” ou “vento poderoso” mas, pelo contexto, provavelmente tem o sentido de “vento da parte de Deus”; [2] a justaposição do “espírito de Deus” (entidade não física) se “movendo/pairando” sobre as águas (realidade física) parece incongruente, e “ruah”, na narrativa homológica (i.e., de estrutura semelhante) da recriação após o Dilúvio, tem o claro sentido de “vento” (Gn 8.1); [3] Uma vez que o vento procede de Deus, não faz parte do caos primordial, mas é uma presença dinâmica e criadora (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.205). Este aspecto exposto por Waltke acaba por mostrar não somente a tradução, mas o papel do “ruah” no caos inicial.  Além disso, na JPS encontramos, por um viés judaico, que “vento” é a tradução mais popular da palavra em fontes judaicas antigas e medievais (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Vale uma ressalva, neste quesito, partindo do Grant Osborne chama de “Duplo Significado”, algo que parte de uma ambiguidade intencional da Escritura, assim, o jogo de palavras “vento/espírito” funciona como um bom exemplo (OSBORNE. Espiral Hermenêutica, p.134). 

     Como foi afirmado no início, este ensaio tem pretensões unicamente introdutórias, ainda assim, faz com que pensemos nosso possível “comodismo hermenêutico”. A criação traz consideráveis desafios em suas propostas textuais. Em Gn.1:2 percebemos que a primeira questão passa por sua relação com Gn.1:1. Analisamos isto por algumas propostas, mas parece que a dissociação não funciona como melhor proposta. Além disso, a noção de “caos total” funcionando com Jr.4:23 tem prerrogativas interessantes para uma tese hermenêutica. Juntamente com a ideia de “mal natural” oriunda dos apontamentos históricos expostos. Finalmente, parece ser complexo pensar no “ruah Elohim” como uma entidade física e o contexto não traz fundamentos neste sentido, por isso, “vento de Deus” passa a ser uma provável e interessante.

       

      O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).             Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoria...