“Caos
Total, Mal Natural” e o “Vento de Deus”: Algumas Discussões
Exegéticas presentes em Gn.1:2.
Neste
ensaio trabalharemos alguns pontos vistos numa abordagem exegética, oriundos de
discussões exegéticas presentes em Gn.1:2. Tal tarefa traz consigo considerável
complexidade, de maneira que, este espaço dedicado a análise em voga passa por
pretensões introdutórias. A trilogia “caos total, mal natural” e “vento
de Deus” condicionará a estrutura deste ensaio quanto a sua
investigação de Gn.1:2. O elemento adicional a esta trilogia passará pela
observância da relação existente entre Gn:1:1 e Gn.1:2, a qual tem papel de
grande importância para a s consolidações argumentativas convertidas em teses
hermenêuticas. Alguns estudiosos corroborarão com nossa percepção de tais
questões, entretanto, dois principalmente: Bruce Waltke e Gordon Wenham.
Gn.1:1,2:
“No princípio criou Deus os céus e a terra”
“E a terra.
A junção dos versos 1,2 é nossa primeira
tarefa de análise. Esta abordagem contextual passa pela repetição da palavra
“terra” com a conjunção (הָאָֽרֶץ׃ וְהָאָ֗רֶץ).
É constatável que as versões em português divergem na tradução desta conjunção,
pois algumas a veem como aditiva (“e” ACF, ARC), outras como adversativa
(“porém”, ARA, TB), entretanto, um número maior a desconsidera em sua tradução
(NAA, NVI, BJ, NVT). Wenham nos faz ver uma fórmula aqui construída
pela conjunção + substantivo, indicando que o v.2 funciona como
uma cláusula disjuntiva. Desta forma, 1:1 é uma cláusula principal que
descreve o primeiro ato da criação já os vs. 2,3 descrevem as fases subsequentes
na atividade criadora de Deus. Esta é a visão tradicional adotada em nossa
tradução. Lembrando que o v.2 descreve o estado da terra antes do primeiro
mandamento divino presente no v.3, construções semelhantes, encontramos em Gn.3:1;
4:1 (WENHAM. WBC, p.11). A “terra” é descrita pela primeira vez em seu
estado primitivo no início da criação, antes de ser transformada numa habitação
adequada para a vida humana. Seis “dias” de criação são descritos, a partir da
perspectiva terrestre de uma pessoa observando a transformação (MATHEWS. Genesis
1-11:26, The New American Commentary, p.130).
Esta abordagem traz uma questão aparentemente óbvia, mas que produz
certa complexidade. Neste caso, a construção do v.2 indicando como explica
Waltke: “o caos [o “mal natural”] não existe independemente de Deus, mas o
texto não explica a ligação entre Ele e o caos” (WALTKE. Teologia
Bíblica do Antigo Testamento, p.203). Numa percepção judaica presente em The
JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna esta
percepção funciona de outra forma, pois: “o fato de Deus criar matéria
desorganizada, apenas para reduzi-la à ordem, não apresenta mais problema
do que o fato de que Ele levou seis dias para completar a criação, em vez de
produzir instantaneamente um universo perfeito” (SARNA. Genesis. English and
Hebrew; commentary in English, p.6). Vern S. Poythress trabalha esta
questão em seu artigo no Westminster Journal (Genesis 1:1 is The first
event, not a summary), expondo as três possibilidades de se ver a questão
(Gn1:1 ligado a Gn1:2): (1) De acordo com a interpretação tradicional, Gn.1:1 descreve
o evento inicial entre os atos de Deus da criação. O v.2, então, dá
informações circunstanciais sobre o estado de a terra em um ponto inicial. (2)
De outro lado, Gn.1:1 pode ser visto como um resumo de toda a sequência de atos
divinos descritos nos vs. 2–31. Assim, Gn.1:1 não descreve o primeiro
evento que levou à criação da terra e seu estado sem forma no v.2.[1] Parece ser complexo pensar
na dissociação destes versos, pensando no papel de “Elohim”, pois trará amplas
complicações, dentre elas, o fundamento da soberania do Senhor na criação.
Þ
“Caos total, Mal natural”.
Incialmente nossa análise de Gn.1:2 passa pelos termos “tohu, vohu (“sem forma e vazia” תֹ֙הוּ֙- בֹ֔הוּ) e “choshekh” (“trevas” חֹ֖שֶׁךְ ). Os dois primeiros são vistos com certa dificuldade (presentes também em Is.34:11; Jr.4:23) em sua sua tradução, entretanto Wenham os define como: “caos total”, funcionando em Hendíadis (WENHAM. WBC, p.15). De outro lado, Skinner trabalha também com esta tese, mas afirma que “talvez seja impossível unir as características desta descrição numa única imagem”. Ainda assim, a tendência exegética tem sido enfatizar o último aspecto e se aproximar da noção grega de caos como espaço vazio. Mas nosso guia mais seguro talvez seja a visão de Jeremias do Caos (4:23-26), algo que simplesmente aponta para uma terra escurecida e devastada, da qual a vida e a ordem fugiram. A ideia aqui é provavelmente semelhante. (SKINNER. A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p.16). Finalmente, Mathews destaca que não há consenso sobre o significado preciso destes termos, nem como devem ser entendidos, quando ocorrem em conjunto (MATHEWS. Genesis 1-11:26, The New American Commentary, p.130). Keil e Delitzsch fazem uma observação semelhante, partindo da ideia de que a etimologia destes substantivos está perdida (KEIL & DELITZSCH. Commentary on the Old Testament Vol,1:30). Este ponto quando visto em The JPS (The Jewish Publication Society) Torah Commentary de Nahum Sarna traz elementos que seguem a mesmas linhas expostas, porquanto afirma que tohu/vohu descreve o estado inicial e caótico da terra (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in English, p.6). Finalmente, pelo background histórico se percebe que nas visões egípcias das origens, existia o conceito de “não existente” que pode ser muito próximo ao que é expresso aqui no Gênesis. Algo visto como aquilo que ainda não foi diferenciado e não tem função atribuída. Nenhum limite ou definição foi estabelecido. O conceito egípcio, entretanto, também carrega consigo a ideia de potencialidade e uma qualidade de ser absoluto (MATTHEWS. CHAVALAS & WALTON. The IVP Bible background commentary: Old Testament, Gn 1:2).
Já o “choshek” (חֹ֖שֶׁךְ) passa por uma linha de ambiguidade,
segundo Wenham. Desta forma, se a “luz”
simboliza Deus, as “trevas” evocam tudo o que é anti-Deus: “os ímpios (Pv
2:13), o julgamento (Êxodo 10:21) e a morte (Sl 88:13)”. A salvação é descrita para
trazer luz aos que estão nas trevas (Is.9:1). Mas, enquanto a escuridão é opaca
para o homem é transparente para Deus (Sl.139:12). Na verdade, Deus pode se
ocultar nas trevas nos momentos de grande revelação (Dt 4:11; 5:23; Sl 18:12). Entretanto,
esta é também uma imagem que afirma o mesmo ponto, ou seja, o caos (WENHAM.
WBC, p.16). Waltke pensa nisto como “mal natural” (WALTKE. Teologia Bíblica
do Antigo Testamento, p.203), algo que desafia nossa compreensão, quando pensamos
em sua origem.
Algo também desafiador passa pela menção do
complemento das “trevas”, pois: וְחֹ֖שֶׁךְ עַל־פְּנֵ֣י תְה֑וֹם (“e [havia]
trevas sobre a face do abismo”). Este תְּהוֹם (tehom) que se traduz como “abismo” (ARA, ARC, ACF) ocorre 36
vezes no AT e segundo Wenham pode ser traduzido como “águas profundas” (WENHAM.
WBC, p.16). Waltke chama este “tehom” de “águas primordiais”, as
quais não aparecem ligadas a palavra divina que descreve as ordens para sua
criação, entretanto o sumário do v.1 ligado a outros textos bíblicos faz com
que vejam este “tehom” (presentes também em outras cosmogonias do antigo oriente
próximo) como uma realidade temporal, só Deus é eterno (WALTKE. Teologia Bíblica do Antigo
Testamento, p.203).
A última linha de Gn.1:2 traz algo também
complexo, pois envolve a tradução de: וְר֣וּחַ אֱלֹהִ֔ים מְרַחֶ֖פֶת עַל־פְּנֵ֥י הַמָּֽיִם׃.
O substantivo “ruah” (רוּחַ) ligado a “Elohim” (אֱלֹהִ֔ים)
tem sido traduzido como “Espírito de Deus” (ARA ARC, ACF), entretanto alguns
estudiosos advogam outra tradução: “vento de Deus” (SBP, NAB). Wenham destaca
que “Elohim” pode ser usado para expressar o superlativo, assim, “grande vento”
é preferível na forma de se traduzir (WENHAM. WBC, p.17). Outros elementos são
levantados por Bruce Waltke que corroboram com nosso entendimento da questão:
[1] “ruah” (רוּחַ)
“Elohim” (אֱלֹהִ֔ים)
significa “espírito de Deus”, “vento da parte de Deus” ou “vento poderoso” mas,
pelo contexto, provavelmente tem o sentido de “vento da parte de Deus”; [2] a justaposição
do “espírito de Deus” (entidade não física) se “movendo/pairando” sobre as
águas (realidade física) parece incongruente, e “ruah”, na narrativa homológica
(i.e., de estrutura semelhante) da recriação após o Dilúvio, tem o claro
sentido de “vento” (Gn 8.1); [3] Uma vez que o vento procede de Deus, não faz
parte do caos primordial, mas é uma presença dinâmica e criadora (WALTKE. Teologia
Bíblica do Antigo Testamento, p.205). Este aspecto exposto por Waltke acaba
por mostrar não somente a tradução, mas o papel do “ruah” no caos inicial. Além disso, na JPS encontramos, por um viés
judaico, que “vento” é a tradução mais popular da palavra em fontes judaicas
antigas e medievais (SARNA. Genesis. English and Hebrew; commentary in
English, p.6). Vale uma ressalva, neste quesito, partindo do Grant Osborne
chama de “Duplo Significado”, algo que parte de uma ambiguidade intencional da
Escritura, assim, o jogo de palavras “vento/espírito” funciona como um bom
exemplo (OSBORNE. Espiral Hermenêutica, p.134).
Como foi afirmado no início, este ensaio tem
pretensões unicamente introdutórias, ainda assim, faz com que pensemos nosso
possível “comodismo hermenêutico”. A criação traz consideráveis desafios em
suas propostas textuais. Em Gn.1:2 percebemos que a primeira questão passa por
sua relação com Gn.1:1. Analisamos isto por algumas propostas, mas parece que a
dissociação não funciona como melhor proposta. Além disso, a noção de “caos
total” funcionando com Jr.4:23 tem prerrogativas interessantes para uma tese
hermenêutica. Juntamente com a ideia de “mal natural” oriunda dos apontamentos
históricos expostos. Finalmente, parece ser complexo pensar no “ruah Elohim”
como uma entidade física e o contexto não traz fundamentos neste sentido, por
isso, “vento de Deus” passa a ser uma provável e interessante.
[1]
Disponível em: https://frame-poythress.org/wp-content/uploads/2017/05/PoythressVernGenesis1.1IsTheFirstEventNotASummary.pdf.
Acesso em 02/10 às 06:41.
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