domingo, 29 de agosto de 2021

 

Duas respostas imperativas dirigidas ao Senhor que domina sobre tudo. Rm.12:1,2.  

 

                   BREVE CATECISMO. PERGUNTA 35.

                  Que é santificação?

R. É a obra da livre graça de Deus, pela qual somos renovados em todo o nosso ser, segundo a imagem de Deus, e habilitados a morrer cada vez mais para o pecado e a viver para a retidão.

CATECISMO MAIOR. PERGUNTA 78.

                 Como é que a santificação dos crentes é imperfeita?

A santificação dos crentes é imperfeita por causa dos restos do pecado que permanecem neles, e das perpétuas concupiscência da carne contra o espirito; por isso são eles, muitas vezes arrastados pelas tentações e caem em muitos pecados, são impedidos em todos os seus serviços espirituais, e as suas melhores obras são imperfeitas e manchadas diante de Deus.

 

Depois da peregrinação desafiadora que envolveu Rm.9-11, chegamos Rm.12, onde algumas questões novas serão trabalhadas. A metodologia de análise continua a mesma: A) identificação do contexto, B) [identificação] dos pontos que serão pensados na passagem (estrutura), C) comentário da passagem, explicando os termos do texto e D) a conclusão/contextualização (mensagem para nossos dias). 

O que precede Rm.12:1 de forma imediata é Rm.11:33-36, o qual funciona como resposta aos atos do Senhor (Rm.9-11) em forma de doxologia (palavras de glória). Assim, ao observamos que “ninguém deu ao Senhor, para ser restituído, porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11:35,36), somos conscientizados de que devemos devotar ao Senhor nosso culto integralmente como resposta ao Seu domínio absoluto (Rm.12:1). Assim, as responsabilidades imperativas e relacionais dos cristãos (12:1,2,10; 13:1; 14:1), partem dessa premissa (culto), mas só podem ser cumpridas por eles, pois foram predestinados pelo Senhor (Rm.9-11).  

O texto de Rm.12:1,2 pode ser dividido em duas partes, as quais apresentam o que devemos fazer e o que não devemos fazer: “... apresenteis o vosso corpo [...] e “não vos conformeis...” (12:1,2). Eles estão ligados a outros elementos que os explicam com alguns desdobramentos. Pensaremos Rm.12:1,2, a partir destas duas perspectivas.

 

A PRIMEIRA EXIGÊNCIA: “APRESENTAI O VOSSO CORPO...” Rm.12:1. Paulo “roga aos irmãos” (como em Rm.15:30; 16:17) o que demonstra num sentido restrito os conteúdos que serão expostos. Esses “irmãos” que são alvos desta exposição de Paulo apontam para aqueles que pertencem a igreja (ver em Rm.1:13; 7:1,14; 8:12; 10:1)  vivendo numa reciprocidade que tem como base a paternidade do Senhor (Rm.8:16; 1Jo.3:1). Por isso, não devemos pensar este “rogar” (Rm.12:1; como em Ef.4:1) como simplesmente um pedido, pois funciona aqui como exortação (Rm.12:8) que descreve ações inegociáveis para a igreja.

         Antes de apresentar o conteúdo deste “rogar” o apóstolo mostra seu devido meio que são: “as misericórdias[1] de Deus”. Essa relação é pedagógica para definir que não existe nenhum tipo de cumprimento da Palavra, sem que tenhamos acesso a misericórdia do Senhor. Portanto, os homens jamais adorarão a Deus com sinceridade de coração, nem se despertarão para o temor e a obediência com suficiente zelo, enquanto não entenderem consistentemente o quanto são devedores a misericórdia divina.[2] O uso plural[3] pode indicar em parte as diferentes expressões concretas das “misericórdia de Deus”, mas é mais provável que reflita o plural hebraico[4] (como em 2Sm.24:14; 1Cr.21:13; Sl.25:6; 40:11; 51:1).[5]  Além disso, ao olharmos novamente para o contexto este “rogar”, baseado na misericórdia vem apropriadamente após a conclusão de Rm.11 e, de fato, depois de todo o argumento até este ponto.[6]

            Depois destes considerandos preliminares nos voltemos para a postura exigida no texto: “apresenteis [ou apresentai][7] vosso corpo...” (12:1). Sua indicação está ligada a linguagem técnica que envolve o sacrifício ou ou apresentação de uma oferta exposta no AT.[8]  Nesse sentido todas as expressões desta cláusula parecem ter uma referência óbvia ao sistema do Antigo Testamento. Sob essa dispensação, animais livres sem mácula eram apresentados e entregues a Deus; sob a nova dispensação, um serviço mais nobre e mais espiritual deve ser oferecido - não a oblação de animais, mas a consagração de nós mesmos.[9]  Paulo fala deste “apresentar” em outros lugares de Romanos, os quase destacam as posturas de oferecimento dedicados a Deus, depois de salvos (Rm.6:12,16,19).

            Uma vez entendido o comando precisamos observar sua direção, a qual é definida como “corpo” (Rm.12:1). Em sua direção “apresentai o vosso corpo”, mostra que não mais pertencemos a nós mesmos, mas inteiramente a Deus.[10] Por isso, este “corpo” aponta para a integralidade de nossas existência, no que diz respeito a devida consagração vista assim, de forma holística (“plenitude existencial”).[11] A linguagem do AT volta a ser usada nesse sentido, pois esta dedicação é feita como “sacrifício” (Êx.10:25; Lv.4:26; Nm.6:17), o qual é qualificado de três formas: “vivo, santo e agradável”.

            Assim, um “sacrifício vivo[12] chancela a mudança, a fim de que nossa vida anterior seja destruída em nós, e que sejamos ressuscitados para um nova vida.[13] Além disso, funciona numa relação com o padrão sacrificial do AT, pois nele a oferta tinha que ser morta, entretanto, na nova aliança não jamais.[14] A segunda qualificação definida como “santo” expressa um paralelo em ser separado para Deus em seu uso e assim, ser usado para o Senhor. Entretanto, isso não significa total e completa isenção do pecado.[15] A última constatação definida como “agradável”,[16] indicando que nossa vida só é corretamente ordenada quando regulamos este auto-sacrifício de acordo com a vontade de Deus.[17]  

            Essas qualificações deste “sacrifício” efetuado na “plenitude da existência” são constituídas como “culto espiritual”.[18] Esse apontamento paulino define que nossos envolvimentos em todas áreas das nossas vidas são vistas como culto dirigido ao Senhor. Algumas versões em português (ARA, ACF, ARC, NVI) definem em suas traduções este culto como “racional” (λογικός - lê-se loguikós). Este adjetivo λογικός (lê-se loguikós) aparece duas no NT (Rm.12:1; 1Pe.2:2). Não há ocorrência deste termo na LXX, entretanto, é uma expressão favorita do pensamento filosófico grego, particularmente estóico, no sentido de “pertencer à razão, racional”. Como tal, indica o que é apropriado ao homem, em distinção de bestas, e o que o relaciona a Deus; particularmente Epicteto 1.16.20-21: “Se eu fosse um rouxinol, eu deveria estar cantando como um rouxinol; se um cisne, como um cisne. Mas como eu sou um ser racional (λογικός εἰμί), portanto devo estar cantando hinos de louvor a Deus.[19] Morris anexa algo a essa ideia, pois explica que hoje a maioria dos intérpretes entende o adjetivo (λογικός - lê-se loguikós), como espiritual, o que  certamente o apóstolo tinha em mente. Mas é difícil pensar que a conexão com a “razão” tenha sido completamente perdida, assim, há algo a ser dito sobre “adoração inteligente” ou “que é digno de seres pensantes”.[20]

     A SEGUNDA EXIGÊNCIA: “NÃO VOS CONFORMEIS COM ESTE SÉCULO...” 12:2. Depois de trabalhar afirmativamente agora o apóstolo expõe uma séria e importante negação. Isso está relacionado ao padrão do mundo, por isso diz: “não vos conformeis com este século” (Rm.12:2). Esta ação destaca uma ideia de similaridade de caráter e comportamento.[21] Entretanto, isto se torna problemático, pois “o século” em questão está em total contradição ao padrão de Deus (2Co.4:4; Ef.2:2; 1Jo.5:19). Por isso, ao contrário disto, “transformai-vos[22] pela renovação da vossa mente”,[23] o que indica um contínuo processo de metamorfose, ou seja, não algo estático, mas continuo em seu desenvolvimento (2Co.3:18).

            Isso ocorre pela instrumentalidade da “renovação da vossa mente”, por isso, nossos corpos devem ser puros e livres de todas as manchas da paixão; nossa “mente” e “intelecto” não devem mais ser escravizados por nossa natureza carnal, mas renovados e purificados pelo dom do Espírito Santo.[24] Como afirma também Murray: “a santificação é um processo de transformação revolucionária naquilo que é o âmago de nossa consciência”.[25] Desta forma, a aprovação se dá pela renúncia aos nossos próprios conselhos e desejos, para que nos voltemos exclusiva e inteiramente para a vontade de Deus.[26]  Assim, “a vontade de Deus” entra em cena como elemento majoritário e determinante na concretização do bom, perfeito e agradável padrão.    


[1] A palavra misericórdia usada qui (οἰκτιρμόςlê-se: oiktirmós) aparece somente cinco vezes no NT: Rm.12:1; 2Co.1:3; Fp.2:1; Cl.3:12; Hb.10:28.

[2] CALVINO João. Comentário às Sagradas Escrituras Romanos. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, p.432 (grifo meu). 

[3] Algumas versões em português preferem traduzir no singular, embora que o registro no grego esteja no plural (οἰκτιρμῶν lê-se: oiktirmôn).

[4] Descrito como רַחֲמִים (lê-se: rathimim).

[5] DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary: Romans 9-16. Dallas : Word, Incorporated, 2002 (Word Biblical Commentary 38B), p. 709.

[6] MORRIS, Leon: The Epistle to the Romans. Grand Rapids, Mich.;  Leicester, England : W.B. Eerdmans;  Inter-Varsity Press, 1988, p. 433.

[7] Schreiner explica: “o infinitivo (παραστῆσαι) funciona como um imperativo e deve ser interpretado como um comando. A forma no aoristo imperativo é ocasionalmente aduzida para apoiar a ideia de que tal compromisso total com Deus é um ato definitivamente definitivo que nunca deveria ser repetido, ou é o processo pelo qual se alcança a inteira santificação”. SCHREINER, Thomas R.: Romans. Grand Rapids, Mich.: Baker Books, 1998 (Baker Exegetical Commentary on the New Testament 6), p. 643.

[8] DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary: Romans 9-16. Dallas : Word, Incorporated, 2002, p. 709.

[9] HODGE, Charles: Romans. Wheaton, Ill. : Crossway Books, 1993 (The Crossway Classic Commentaries), S. Rm 12:2.

[10] CALVINO João. Comentário às Sagradas Escrituras Romanos, p.434. 

[11] SCHREINER, Thomas R.: Romans (Baker Exegetical Commentary on the New Testament 6), p. 643.

[12] Ou: “sacrifício que vive” (θυσίαν ζῶσαν).

[13] CALVINO João. Comentário às Sagradas Escrituras Romanos, p.434. 

[14] MURRAY John. Comentário Bíblico Fiel, Romanos. São Paulo: Editora Fiel, 2003, p. 474. 

[15] O pagão grego adorador, ou seja, o pagão do templo  era “santo” (ἁγιος) (sagrado) no sentido de que ambos foram separados para o culto da divindade grega, mas ambos eram pecaminosos, uma vez que as divindades gregas eram meramente formadas após o padronização humana. WUEST, Kenneth S.: Wuest's Word Studies from the Greek New Testament: For the English Reader. Grand Rapids : Eerdmans, 1997, c1984, S. Rm 12:1.

[16] Este termo (εὐάρεστος“agradável”) aparece nove vezes no NT e em alguns destes, sendo dirigido ao Senhor (Rm.14:8; Ef.5:10; Fp.4:18; Cl.3:20).

[17] CALVINO João. Comentário às Sagradas Escrituras Romanos, p.434. 

[18] No grego a construção usada é: τὴν λογικὴν λατρείαν

[19] DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary: Romans 9-16. Dallas : Word, Incorporated, 2002, p. 711

[20] MORRIS, Leon: The Epistle to the Romans. Grand Rapids, Mich.;  Leicester, England: W.B. Eerdmans;  Inter-Varsity Press, 1988, p. 434.

[21] HODGE, Charles: Romans. Wheaton, Ill. : Crossway Books, 1993 (The Crossway Classic Commentaries), S. Rm 12:2.

[22] A ideia de metamorfose é comum a muitas correntes religiosas do mundo antigo, incluindo os mitos clássicos sobre os deuses que se transformam em formas terrenas, e os relatos de indivíduos sendo transformados através de rituais misteriosos ou liberação gnóstica. Mas isso não deve ser considerado como implicação quanto ao uso de Paulo destas “concepções de mistério”. DUNN, James D. G.: Word Biblical Commentary: Romans 9-16. Dallas : Word, Incorporated, 2002, p. 713.

[23] A tradução aqui funciona bem melhor pela ARC: “sede transformados pela renovação da vossa mente”. 

[24] SANDAY, W. ; HEADLAM, Arthur C.: A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of the Romans. 3d ed. New York : C. Scribner's sons, 1897, p. 354.

[25] MURRAY John. Comentário Bíblico Fiel, Romanos, p. 477.

[26] CALVINO João. Comentário às Sagradas Escrituras Romanos, p.437.  


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