A Identificação do “espírito imundo”
(por que é assim chamado?) e sua tripa fala sobre o Senhor Jesus: Análise
Exegética.
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“... [1] que temos contigo Jesus Nazareno; [2] Vieste destruir-nos?
[3] Bem sei que és: o Santo de Deus!” (Mc.1:23,24)
Em
nosso CXT evangelical existem uma diversidade de percepções sobre o demônio e a
possessão demoníaca. Infelizmente, parece que tais percepções não têm uma ligação
estrita com a Palavra, como algo oriundo do orare/labutare (exegese e oração). Entretanto,
do debate (embora pouco expressivo em seu alcance) realizado por alguns, algumas
linhas são estabelecidas, neste caso, especificamente a possessão demoníaca vista
como: [1] algo exclusivo aos tempos bíblicos sem
continuísmo; [2] algo continuado, afirmando assim, sua contemporaneidade, [3] registro
para a atender “as necessidades querigmática da igreja” (histórico-crítico) e
[4] algo dissociado de elementos históricos concentrando desta forma na “arte
literária do autor” (Crítica da Narrativa). Assim, os caminhos investigativos
são amplos. Neste ensaio, trabalharemos uma parte disto, mas com foco na identificação
do “espírito imundo” (πνεῦμα ἀκάθαρτος) e em
sua tripla fala com respeito ao Senhor Jesus.
A redução demonstrando a proposta deste ensaio
aparece numa abordagem contextual distinta. Desta forma, a cena em voga (1:21-28)
é registrada no início do ministério de Cristo na Galileia (1:16), sendo
precedida por seu primeiro ato: “a chamada dos discípulos” (1:16-20). Por isso,
o verbo “entraram” denota que o recém-reunido “círculo de Jesus” já opera como
um grupo definido (FRANCE. The
Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.101). O cenário construído pela
narrativa traz que Jesus e seus primeiros discípulos estavam na sinagoga na
cidade de Cafarnaum e o Senhor, neste feita, “ensinava” (1:21). Na verdade, esta
era (“ensinar”) uma prática comum aos professores visitantes, serem convidados
a ler as Escrituras e/ou falar, um costume do qual tanto Paulo quanto Jesus se
beneficiavam. O fato de Cristo ter sido convidado a falar indica que já havia
estabelecido uma reputação como mestre e que este não foi um dos primeiros
eventos em seu ministério. Ele foi reconhecido como professor até mesmo por
seus oponentes (cf.12.19), embora não haja evidências de que tenha recebido
qualquer treinamento formal. Certamente não era tipicamente um rabino (BROOKS. Mark
The New American Commentary, p.50). No ocorrido em foco apareceu “um homem com um espírito imundo” (1:23).
Como leitores da Bíblia observamos
algumas vezes no texto a expressão: “espírito imundo” (πνεῦμα ἀκάθαρτος). Por
esta razão problematizamos: por que este uso (“espírito imundo”)? Nesta
dinâmica, o adjetivo usado (“imundo”) tem que conotação? O imperativo
quanto ao entendimento disto passa também pela abrangência de seu uso. Somente
em Marcos aparece onze vezes (ver também em: Mt.10:1; 12:43; Lc.4:33,36; 8:29;
9:42; 11:24), seis dos quais ocorrem em duas histórias (1:23,26,27; 5:2,8,9 [7:25;
9:25]), o que pode ter influenciado a composição de 3:11-12. O problema é que
esta expressão carece de explicações, porquanto tem certos elementos não vistos
na estrutura de superfície (o texto). O adjetivo grego ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos) usado em Mc.1:23
relacionado a πνεῦμα (lê-se: pneûma) aparece 32 vezes no NT, destas 21 só nos
evangelhos. A expressão completa πνεῦμα ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos pneûma) é traduzida no léxico do Louw e Nida
assim: “um espírito sobrenatural maligno que é impuro do ponto de vista
ritual e que faz com que as pessoas sejam, ritualmente impuras, isto é,
impedidas de participar do culto” (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do
NT, p.133). Este ponto é visto no BDAG em associação com a “impureza moral”
(Zc.13:2) pelas aparições nos evangelhos (Danker; Bauer’s. A Greek-English
lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p.34). A
síntese “impureza ritual” e “moral” ganha, inicialmente conotação elucidativa
para o ponto em voga.
Corroborando
com a primeira observância, observemos πνεῦμα ἀκάθαρτος (lê-se: akáthartos pneûma) pelo CXT histórico do texto. Inicialmente Guelich explica
que esta expressão “representava uma designação judaica comum para demônios”
(GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.56). Kenner
corrobora, quando destaca: (“os espíritos imundos”) eram frequentemente
associados à magia, e os mágicos tentavam subjugar outras forças espirituais
invocando seus nomes” (KEENER. The IVP Bible background commentary: New
Testament, Mc 1:23). France chancela que “espírito imundo” e “demônio” eram
vistos como sinônimos (6:7 com 13; 7:25 com 26); Em suma este “espírito imundo”
corresponde ao termo ר֥וּחַ הַטֻּמְאָ֖ה (rûaḥ haṭumeah,
presente em Zc.13:2) usado frequentemente nos escritos rabínicos no mesmo
sentido (FRANCE. The Gospel of
Mark: A commentary on the Greek text, p.103).
Observemos, agora a tripla fala
do homem/possesso com seu desdobramento. Inicialmente, é perceptível a convenção
que existe entre os vs.23.24, envolvendo singular/plural: “um homem [...]
bradou: que temos nós...”, algo expresso
com dois questionamentos. O plural deve estar designando os poderes demoníacos
como classe (“nos/nós” = “nos/nós espíritos maus”), assim pode se ver a questão
(HAUBECK, SIEBENTHAL. Nova Chave Linguística Novo Testamento Grego: Mateus ־Apocalipse,
p.258). Guelich vê que a pergunta inicial como retórica e funcionando como primeira
de uma série de comentários proferidos pelo “espírito impuro” falando ora no
plural e genericamente pelos espíritos imundos e ora no singular por si mesmo (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark
1-8:26, p.56). Além desta transição singular/plural devemos observar o teor
dos questionamentos e afirmação.
A
primeira indagação tem a seguinte construção: λέγων· τί ἡμῖν καὶ σοί, Ἰησοῦ
Ναζαρηνέ; (“o que queres de nós? Que temos nós a ver contigo?”
Mc.1:23). Se faz necessário observar esta dinâmica argumentativa,
tendo como pano de fundo o AT (2Sm.16:10; 19:23; 1Rs.17:18; 2Rs.3:13; Jz.
11:12; 2Cr.35:21), quase sempre colocado por um inferior a um superior. Assim,
a questão tem a função defensiva de colocar aquele questionado na posição de
responsabilidade pelo que se segue e, assim, cria uma distância irreconciliável
entre as duas partes. A pergunta trai o reconhecimento do “espírito impuro” de
seu próprio status, particularmente à luz da autoridade de Jesus (GUELICH. Word Biblical Commentary: Mark 1-8:26, p.56). De outro lado, temos aqui as
primeiras duas formas com que o “espírito impuro” se dirige ao Senhor: “Jesus
Nazareno [de Nazaré] (cf. Mc.10:47; 14:67; 16:6; Lc.4:34; 24:19). Vieste destruir-nos?”
Por quê?
France sobre “Jesus Nazareno” traz algo
importante para a explicação, pois, “acreditava-se que os exorcistas ganhavam
poder pela posse do nome do demônio (5:7-9), e talvez o demônio aqui tente, sem
sucesso, reverter o processo” (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.103). Entretanto, o “espírito imundo”
tentou sem sucesso se opor a Jesus usando seu nome. Assim, outra questão passa
a ser observada, porquanto “os demônios temiam que Jesus não apenas os
expulsasse, mas também os entregasse aos tormentos da Geena” (GOULD. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel
according to St. Mark, p.23).
Finalmente, o “espírito imundo” se dirige ao
Senhor como “o santo de Deus” (ὁ ἅγιος τοῦ θεοῦ). Esta
expressão ocorre no AT, se referindo a Aarão (Sl.106:16), Eliseu (2Rs 4:9) e
Sansão (Jz.16:17). O último caso traz alguma dificuldade, porquanto as versões
em português traduzem como: “eu [mesmo] sou narizeu de Deus” (ἅγιος
θεοῦ ἐγώ εἰμι, LXX). Guelich faz uma comparação
entre os radicais de “Nazaré” (נצר) e “nazireu [santo]” ( נָזִיר) algo que chancela um jogo de palavras. Portanto,
a designação que indica a origem de Jesus (“de Nazaré [Ναζαρηνέ]”) descrevendo à sua verdadeira identidade (o “Santo
[ὁ ἃγιος] de Deus”). Além disso, o
“Santo de Deus”, aquele separado, consagrado por Deus, pode até mesmo assumir
mais significado visto num profundo contraste com o “espírito impuro” (1:23).
Em qualquer caso, este uso de “Santo de Deus” indica uma relação especial,
embora não especificada aqui, entre Jesus e o Senhor (GUELICH. Word Biblical
Commentary: Mark 1-8:26, p.57). Brooks corrobora, pois entende que provavelmente
esse é um título messiânico, embora haja poucos atestados para isso (BROOKS. Mark
The New American Commentary, p.51). Portanto, serve para transmitir
a consciência do demônio de que ele se deparou com um poder espiritual
superior. (FRANCE. The Gospel of Mark: A commentary on the Greek text, p.103).
Esta sintética análise exegética traz alguns efeitos elucidadores. O primeiro deles passa pela compreensão da expressão “espírito imundo/impuro”. Isto tem considerável importância, pois pela estrutura de superfície a questão não pode ser resolvida. Além disso, a fala deste espírito trouxe também elementos pedagógicos para entendermos seu reconhecimento da autoridade de Jesus. Em suma, sua tripla fala chancela este aspecto.
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