Já que a ELEIÇÃO não é por PRESCIÊNCIA, por
que Pedro afirma: “...ELEITOS, SEGUNDO A PRESCIÊNCIA”?
A Deo docetur, Deum docet, ad Deum
ducit[1]
“A presciência de Deus
Pai" concentra-se no início desta eleição ou chamada e, portanto, pertence
ao passado eterno” (MICHAELS: Word
Biblical Commentary, p.10).
Quando Pedro se
dirige aos seus ouvintes originais como “eleitos,
segundo a presciência de Deus Pai”, qual é a sua intenção? Esta pergunta
problematiza a questão em voga, a ser pensada. Seu aspecto crucial está
fundamentado na convivência antitética dos sistemas teológicos, construídos
por suas percepções quanto a relação entre “presciência” e “eleição”. Com esta consciência
trataremos exegeticamente 1Pe.1:1,2, buscando o significado proposto pelo
autor. Alguns análises serão norteadoras neste quesito: 1) os usos de “πρόγνωσις” (prógnosis -
presciência) no NT e suas traduções; 2) a relação de “πρόγνωσις” (prógnosis -
presciência) com “ἐκλεκτός” (eklektós - eleito) em 1Pedro.
[A]
“πρόγνωσις” (prógnosis – “presciência”): seus usos no NT
e suas traduções.
O
substantivo “πρόγνωσις” (prógnosis – “presciência”) aparece somente duas vezes
no NT. Na primeira está relacionada ao “desígnio de Deus quanto a morte e
crucificação de Jesus por mãos iníquas” (At.2:23). Já em 1Pe.1:2 funciona como
base explicativa para a eleição. Existe
algo comum nesses dois usos que deve ser enfatizado, ou seja, o paralelo de “πρόγνωσις” com “θεός” (Theós - Deus): “...προγνώσει
τοῦ θεοῦ” (prognósei tû
Theû – “presciência de Deus”)[2] [...]
“...πρόγνωσιν θεοῦ” (prógnosin tû
Theû – “presciência de Deus”).[3] Além
disso, ao pensarmos a tradução de “πρόγνωσις” (prógnosis –
“presciência”), algumas
possibilidades tornam-se manifestas. A metodologia lexical em “Domínios Semânticos”
e seus respectivos “Subdomínios” realizada por Louw Nida, traz dois
equivalentes nesse sentido: “conhecer e conhecido (o conteúdo do
conhecimento)”. Além disso, o cognato “προγινώσκω” (proguinósko)[4]
é definido com a mesma tradução. Portanto, “πρόγνωσις” e “προγινώσκω” são traduzidas por Louw Nida da seguinte forma: “ter
conhecimento de algo ou alguém” - “conhecer de antemão, aquilo
que é conhecido de antemão ou anteriormente a determinado ponto de
referência temporal – presciência, conhecimento prévio, o que se conhece de
antemão” (LOUW NIDA. Léxico
Grego-Português do NT, Baseado em domínios Semânticos, pp.300,302). Estas
premissas nos servem de constatações afirmativas que descrevem os paralelos do
termo grego e sua equivalência na tradução.
[B] A análise da relação de “πρόγνωσις” (prógnosis -
presciência) com “ἐκλεκτός” (eklektós - eleito).
O fluxo de 1Pe.1:1,2 traz alguns
desdobramentos estruturais que apontam nossa delimitação em questão, pois o
foco é a análise de B ligado a segunda linha.
[A] Pedro (Πέτρος). 1:1
apóstolo
de Jesus Cristo (ἀπόστολος Ἰησοῦ Χριστοῦ)
[B] Aos eleitos[5] (ἐκλεκτοῖς). 1:1.
B.1. que são estrangeiros
na diáspora[6]
do
Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia
(παρεπιδήμοις διασπορᾶς
Πόντου, Γαλατίας, Καππαδοκίας, Ἀσίας καὶ Βιθυνίας)
B.2. SEGUNDO A PRESCIÊNCIA DE DEUS PAI (κατὰ πρόγνωσιν θεοῦ πατρὸς). 1:2
B.3. Em
santificação do Espírito (ἐν ἁγιασμῷ πνεύματος). 1:2.
B.4. Para
obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo. 1:2
(εἰς ὑπακοὴν καὶ ῥαντισμὸν
αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ)
[C] Graça e paz vos
sejam multiplicadas (χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη πληθυνθείη)
No fluxo observamos que o texto grego não
repete o adjetivo “ἐκλεκτός” (eklektós – “eleito”) no v.2. Por esta razão, esta qualificação tem um viés
definido pela condição em que o povo de Deus vivia como “estrangeiros na
diáspora” e nos desdobramentos desenvolvidos pelas locuções preposicionais
presentes no v.2. Além disso, numa
leitura contextual a expressão “segundo a presciência de Deus” também
estabelece um quesito dialogal importante. Grudem explica que no v.1 não contem
verbo algum, assim é mais que natural que “segundo a presciência de Deus Pai” esteja
modificando toda à situação dos leitores mencionados no primeiro versículo
[...] Isso indica que a situação deles era conhecida por Deus e tudo havia
concorrido de acordo com a “Sua presciência”, produzindo conforto aos leitores
de Pedro (GRUDEM. Comentário Bíblico de
1Pedro, p.52). Assim, trabalhamos certa somatização iniciada com o adjetivo
“ἐκλεκτός” (eklektós –
“eleito”), ligado também aos
apontamentos relacionais e existenciais vividos pela igreja (1:1). Depois desta
fundamentação faremos uma redução, para tratar “a qualificação padronizada”: “ἐκλεκτός” (eklektós –
“eleito) com [...] “κατὰ πρόγνωσιν
θεοῦ πατρὸς” (katà prógnosin theû
patrós – “eleitos segundo a presciência de Deus Pai”).
Esta
“qualificação padronizada” (preposição
“κατά” +
acusativo “πρόγνωσιν”)[7] associada aos elementos lexicais serve como fundamentado,
na percepção de alguns teólogos para mostrar uma eleição condicional ou condicionada. Isso significa que Deus
já sabia de antemão quais eram as pessoas que seriam salvas pelo exercício da
fé em Cristo (MUELLER. 1Pedro Introdução
e comentário, p.69).[8]
Desta forma, “o conhecimento de antemão” define certas posturas daquele que irá
crer, funcionando assim, como base da eleição. Vejamos se esta tese, pode ser
sustentada exegeticamente em 1Pe.1:1,2.
A
coesão lexical presente em 1Pedro que envolve o uso de “ἐκλεκτός” (eklektós –
“eleito”) é de fundamental importância nesta análise. Assim, constatamos
que Pedro usa por quatro vezes “ἐκλεκτός” (eklektós –
“eleito),[9]
sendo que em duas, se referindo a Cristo (2:4,6) e nas
restantes, se referindo a igreja (1:1; 2:9). Esse exercício exegético produz
a seguinte síntese: “eleitos
segundo a presciência” (1:1,2) [...] vós, porém (contraste com o descrentes) sois
“raça eleita, sacerdócio
real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, agora sois povo de
Deus [...] e recebestes misericórdia (2:9).” Essas definições dirigidas a
igreja estão fundamentadas nos textos do AT[10]
e mostram, como Pedro entende a verdadeira linha de continuidade que se estende
ao povo de Deus sob a antiga aliança ao povo da nova aliança (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento, p.1296).
Essa
constatação deve levar em conta também a condição anterior da igreja, pois
Pedro afirma que “foram chamados das trevas” [...] “não
eram povo de Deus” [...] “não tinham alcançado
misericórdia” (2:9,10). Essa condição de “trevas”[11] (σκότους – skótous) indica a
ausência de toda e qualquer causa provável para a eleição, pois, como
afirma Mueller: “[ela] designa especialmente o entenebrecimento religioso e
moral, obscurecimento causado pelo pecado” (MUELLER.
1Pedro Introdução e comentário,
p.137). Além disso, Ramsey entende que “estas trevas [...] apontam para a “ignorância”
(1:14) que pertencia ao passado dos gentios, ou seja, de seus leitores”
(MICHAELS: Word Biblical Commentary:
1Peter, p.111). O trato epistemológico neste caso está totalmente
prejudicado como em 1Co.2:14. O homem nesta situação está totalmente impossibilitado
de cooperar, quando em “σκότος” (skótos – “trevas”) está “cego para o evangelho” (At.26:18). Portanto, “Aquele que chama” (καλέσαντος - kalésantos)[12]
age livremente, doando as bênçãos espirituais (1:3-5,18-21), segundo Suas
determinações soberanas (1Pe.1:20; 5:10). Somente, desta forma, o “antes”
(1Pe.2:10) pode ser mudado, de maneira que “agora” (1Pe.2:10) como “povo de
Deus” será possível “proclamar as virtudes” (ὅπως τὰς ἀρετὰς ἐξαγγείλητε...) do Senhor.
Depois de analisarmos esta síntese, voltemos
novamente para 1:1,2, objetivando entender a relação constituída de “ἐκλεκτός” com as locuções[13]:
“Eleitos” [...] 1) “em santificação do Espírito” e 2) “para a
obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”.[14]
Quanto a primeira é possível entendê-la como “genitivo subjetivo”, neste caso,
entendemos que “a santificação é feita pelo Espírito” direcionada aos
“eleitos”.[15]
Assim, “ἁγιασμὸς πνεύματος” (haguiasmòs pneúmatos – “santificação do
Espírito”) na presente passagem é enfaticamente um ato divino e um aspecto da
iniciação cristã. Refere-se a separação pela qual indivíduos que são estranhos
e exilados em seu mundo, passam a estar reunidos em uma nova comunidade dos
escolhidos (MICHAELS: Word Biblical
Commentary: 1Peter, p.11). Finalmente, o propósito para os “eleitos” é
descrito ao afirmar a necessidade da “obediência” (ὑπακοή - hypakoé),[16]
que por ser imperfeita necessita da “aspersão do sangue de Jesus Cristo” (ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ
Χριστοῦ - pantismòn haímatos Iesû khristû - GRUDEM. Comentário
Bíblico de 1Pedro, p.53). Além desta perspectiva, “obediência” (ὑπακοή - hypakoé) e “aspersão” (ῥαντισμός - rantismós)[17]
podem ser tomados como hendíadis (duas palavras que expressam uma ideia única) em
relação ao contexto de Êx.24:3-8 [...] O mesmo ocorre aqui: os cristãos foram
escolhidos para participar do relacionamento da nova aliança em que prometem
obediência e a aliança é selada pela morte de Jesus (BEALE; CARSON. Comentário do Uso do Antigo Testamento no
Novo Testamento, p.1245). Estas locuções trazem uma fórmula trinitária
quanto as delimitações dirigidas aos “eleitos”, mostrando que esse é o
fundamento eficaz dos elementos citados. Portanto, os “eleitos” são descritos
fundamentalmente num padrão pela “presciência” (explicada anteriormente) e que
passa pela instrumentalmente da “santificação do Espírito”, isso como algo
posterior, cronologicamente se falando (a presciência é a explicação). Finalmente,
o propósito determinado aos “eleitos”: “para obediência e aspersão do sangue de
Jesus Cristo”. A leitura que quebra esses apontamentos ou até mesmo os
sincroniza fora de seus respectivos propósitos, tornando-os assim, confusos e constituídos numa aplicação
indevida.
Depois de levantarmos estes fundamentos
exegéticos, concluímos que “κατὰ πρόγνωσιν
θεοῦ πατρὸς” passa por um crivo relacional baseado na determinada
vivência da igreja. Os “eleitos são forasteiros na diáspora” e essa condição
era conhecida pelo Senhor em Sua presciência. A importância dessa constatação
foi definida pelo seu propósito de consolar o coração daqueles irmãos
(1Pe.5:8-10). Além disso, a “qualificação padronizada” define a singularidade
da ação divina. A síntese feita entre 1:1,2 e 2:9,10 deixou claro esta questão,
pois a ausência de bases justificativas para “o conhecimento de antemão”, foram
expostas principalmente pela referida condição no “antes”, ou seja, em absolutas “trevas”. Finalmente, as
locuções apresentadas na estrutura têm certo caráter cronológico e processual,
pois mostram a ação inicial, “a presciência divina” com seus desdobramentos.
Afirmar uma eleição condicional ou condicionada, a partir de 1Pe.1:1,2 não parece ser a melhor construção definida exegeticamente. Não podemos negar que Deus tem conhecimento temporal no atemporal, entretanto, isso está n’Ele por Suas próprias determinações. 1Pe.1:1,2 é mais um exemplo disso, pois sem a ação do Senhor o que seria visto por Ele mesmo? Os leitores originais de Pedro entenderam isso. Portanto, reafirmo que não existe eleição por presciência baseada em conhecimentos previstos nas ações dos homens.
[1]
Três aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus,
ensina a Deus e conduz a Deus” (Tomás de Aquino).
[2]
At.2:23.
[3]
1Pe.1:2.
[4]
Este verbo aparece somente uma vez em 1Pedro (1:20).
[5]
Dativo
de Destinatário.
[6] Genitivo Locativus. HAUBECK Wilfrid,
SIEBENTHAL Meinrich Von. Nova Chave Linguística Novo Testamento Grego: Mateus
־Apocalipse. São Paulo, 2010,
p.1265.
[7]
O uso da preposição é definida como “padrão”: “Eleitos de acordo com a
presciência”. WALLACE. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do
Novo Testamento, p.377.
[8]
Está implícito então, que o crente fica com essa responsabilidade última, tendo
todos a mesma chance.
[9]
São mais dezoito usos no restante do NT: Mt.22:14; 24:22,24,31; Mc.13:20,22,27;
Lc.18:7; 23:35; Rm.8:33; 16:13; Cl.3:12; 1Tm.5:21; 2Tm.2:10; Tt.1:1; 2Jo.1,13;
Ap.17:14.
[10] Êx.19:5,6; Is,43:20,21.
[11] Ef.5:8; Cl.1;13;1Ts.5:1
[12]
Particípio substantivado.
[13]
Já analisamos “segundo a presciência de Deus Pai”.
[14]
...ἐν ἁγιασμῷ πνεύματος εἰς ὑπακοὴν καὶ ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ, (1:2)
[15]
O mesmo ocorre em 2Ts.2:13.
[16]
ὑπακοή (hypakoe – obediência) usado
em 1Pedro:1:14,22.
[17]
Esta palavra aparece somente duas vezes no NT: 1Pe.1:2; Hb.12:24.
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