“A
Letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Co.3:6): Uma Análise Exegética da
relação entre a “letra” e o “Espírito” na contramão do Uso Não Contextual.
Ouvimos afirmações envolvendo 2Co.3:6 com
conclusões estranhas ou destoantes, hermeneuticamente se falando. Para muitos a
“letra” é a escrita da Bíblia vista sem “iluminações pré-definidas”, justamente
aquelas que regem certos credos. Desta forma, questionar se torna uma ação
condenável, “coisa de gente que está só na letra”. Realmente, “uma incoerência”!
Na verdade, este é mais um dos absurdos presentes no evangelicalismo
brasileiro. Em antítese a isto, nossa postura como cristãos deve ser de
respeito para com a Palavra de Deus, no que diz respeito a sua interpretação.
Algo totalmente antagônico ao que vemos na coerção exercida por alguns
líderes ao usarem de forma ilegítima 2Co.3:6. Neste ensaio, procuraremos trabalhar
2Co.3:6 com uma ética do significado sem manipulações ou malabarismos
incoerentes. A defesa em foco passa pela compreensão de que a “lei traz a morte”,
num viés escatológico para aqueles que não creem na “nova aliança” exposta no
evangelho.
TRADUÇÃO
Nossa primeira ação quanto a investigação de 2Co.3:6b passa pela
divergência nas traduções do texto grego: τὸ γὰρ γράμμα ἀποκτέννει,
τὸ δὲ πνεῦμα ζῳοποιεῖ. Tanto a ARA como a ACF, traduzem a palavra πνεῦμα (pneûma) como “espírito”, entretanto, nas ARC, NVI,
NAA, BJ: “Espírito”. Assim, nossa primeira problemática passa por este
necessário entendimento. Na verdade, a palavra πνεῦμα (pneûma) aparece 7 vezes em 2Co.3 (vs.3,6,8,17,18). Nas
versões
(ARA, ACF) que traduzem como “espírito” todas as outras o fazem como “Espírito”
(o contexto como resposta). Corroborando com esta ideia, Harris é categórico em
afirmar que Espírito é mais coerente aqui, porquanto “nos escritos de Paulo, πνεῦμα (pneûma), quando usado para o espírito
humano, é contrastado com σῶμα (soma, “corpo”), σάρξ (sarx, “carne”)
e νοῦς (nûs, “mente”), mas nunca com “letra” (HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians : A commentary
on the Greek text, p.273).
Para
expandirmos nossa discussão, neste quesito, trabalharemos a passagem de forma
mais exaustiva em seu contexto.
CONTEXTO
Paulo inicia 2Co.3, expondo dois questionamentos, os quais foram respondidos de
forma esplendida, pois os coríntios são chamados de “carta de Cristo” (3:3). Isto
trazia implicações inefáveis quanto as suas dimensões (3:2,3). Tal percepção
paulina era oriunda da instrumentalidade do Senhor Jesus Cristo (3:4). O efeito
imediato disto é o reconhecimento da insuficiência (3:5), por isso Paulo
entendeu que “Deus nos habilitou para sermos servos de uma nova aliança, não
da letra, mas do Espírito, porque a letra mata , mas o Espírito vivifica” (ὃς καὶ
ἱκάνωσεν ἡμᾶς διακόνους καινῆς διαθήκης, οὐ γράμματος ἀλλὰ πνεύματος· τὸ γὰρ γράμμα
ἀποκτέννει, τὸ δὲ πνεῦμα ζῳοποιεῖ.).
Esta fala paulina faz com que pensemos
na definição desta “nova aliança”.
Nova Aliança Três
termos funcionam numa tríade que descreve as argumentações paulinas: “nova
aliança/letra/Espírito”. Quando o apóstolo afirma que “Deus nos habilitou para
uma nova aliança”, como entender esta questão? Esta expressão provavelmente foi tirada da
tradição da Última Ceia (1 Co.11:25), em que o cálice significava a ratificação
da nova aliança pelo derramamento do sangue de Cristo (Lc.22:20; cf. Mt.26:28;
Mc.14:24), embora, em última análise, a expressão venha de Jr. 31:31 (LXX, HARRIS.
The Second Epistle to the
Corinthians: A commentary on the Greek text, p.270). Esta parte tem uma consolidação
de compreensão pela obra de Cristo realizada. A parte mais complexa presente
neste verso parece estar na relação entre “a letra” e “o Espírito”.
A “LETRA” “Não da letra [...] a letra
mata”. As formas pelas quais Paulo apresenta a “letra” (γράμμα, grámma) produz
indagações. Antes de trabalharmos esta questão, se faz necessário observar que
esta “letra” (γράμμα, grámma) aparece 14 vezes no NT,
dentre estes usos, nos textos paulinos por 8 vezes (Rm.2:17,29; 7:6; 2Co.3:6,7;
Gl.6:11; 2Tm.3:15). Além disso, quanto ao seu significado γράμμα (grámma) pode ser vista, basicamente como a “letra (do alfabeto)” e, portanto, “o
que está escrito (usando letras), um documento escrito”, em 3:6 não se refere à
escrita em geral, mas à Lei Mosaica (especialmente o Decálogo) em particular. Em
suma, é a “lei escrita”, um sinônimo para νόμος, (nómos, lei) e mais especificamente “(a lei) com seus mandamentos
e regulamentos” (ὁ νόμος τῶν ἐντολῶν ἐν
δόγμασιν, Ef. 2:15). Em vez do plural, como “ordenanças” (δόγματα, dógmata) ou “escritos sagrados” (ἱερὰ
γράμματα, hiera grámata; 2 Tm.3:15),
Paulo escolheu o singular, provavelmente sob a influência do singular do conjunto
com πνεῦμα (pneûma, Espírito). Visto que 3:7 se refere a um código “gravado em
letras (ἐν γράμμασιν) na
pedra”, γράμμα era
uma metonímia (figura de linguagem. Aparece, quando um substantivo é
substituído por outro) para “a antiga aliança” que não é explicitamente
mencionado até 3:14 ou para o antigo διακονία (“ministério
/ dispensação” que é caracterizado em 3:7-11(LXX, HARRIS. The Second Epistle to the Corinthians : A commentary
on the Greek text, p.272).
LETRA/ESPÍRITO Voltemos
a funcionalidade da “letra”, neste texto, em conexão com o “Espírito”. Assim, “ministros
de uma nova aliança” são descritos numa negação quanto a letra e afirmação quanto
ao “Espírito” e a explicação disto exposta, pois, “[A] a letra mata (Rm.2:29;
7:6; 2 Co.3:6), mas [B] o Espírito vivifica”. Talvez, a pergunta mais
desafiadora esteja ligada ao papel da “letra” que é expandida pelo v.7 (“ministério
da morte gravado em letras de pedra”). Uma primeira ideia procura explicar esta
questão, focando a permanência daqueles que rejeitam ou são descrentes em
relação a nova aliança. Assim, a morte é a “sentença escatológica” que aguarda
aqueles que permanecem nos velhos tempos (4:4, MARTIN. Word Biblical
Commentary: 2 Corinthians, p.54). Além disso, o que é qualitativamente
melhor sobre a “nova aliança” é que não é uma carta de aliança - isto é, um
código externo - mas uma aliança do Espírito, um poder interno. Uma aliança ligada
a letra, por natureza, mata, porque faz exigências externas, sem dar o poder
interior para a obediência, enquanto aquela (aliança) que é do Espírito em
caráter dá vida, porque trabalha internamente para produzir uma mudança de
natureza. Paulo descreve essa mudança de natureza em outro lugar (Ef 4:24) como
um “novo eu” criado “segundo Deus em verdadeira justiça e santidade” (BELLEVILLE.
2 Corinthians. The IVP New Testament commentary series, 2Co 3:4). Portanto,
Paulo provavelmente usou a antítese entre a “letra” e o “Espírito” como “uma
fórmula prática que expressa convicções centrais” (GARLAND. 2 Corinthians,
The New American Commentary, p.163).
Esta tese também considera os verbos “vivifica”
e “mata” (presente gnômico), representando o que é sempre e o caso em toda
parte. Assim, quando Paulo observa aqui que o Espírito “concede vida” ou quando
descreve o Espírito como “vivificante” (Rm.8:2;
cf. Gl.5:25), ele está afirmando essa característica, talvez a principal d’Ele (Espírito),
ou seja, que Ele perpetuamente concede a vida física e espiritual da qual é a
fonte. No pensamento paulino, há três etapas nesta obra vivificadora do
Espírito: regeneração, santificação e ressurreição. O processo de salvação
começou por meio da “lavagem da regeneração”, que é equiparada à “renovação do
Espírito Santo” (Tt.3:5). O segundo estágio de renovação é a transformação progressiva
dos crentes à imagem de Cristo, enquanto eles contemplam e então refletem a
glória do Senhor, todo este processo sendo obra do Espírito (2 Co.3:18). Esta é
uma renovação da mente (Rm.12:2) ou sua atitude (Ef. 4:23) e corresponde ao
fortalecimento (Ef.3:16) ou renovação (2 Co.4:16) da pessoa interior pelo
Espírito. O estágio três ocorre quando o processo de ser conformado à imagem de
Cristo atinge a conclusão em uma transformação de ressurreição efetuada e
sustentada pelo Espírito (Rm.8:11,29) e no recebimento da vida eterna do
Espírito (Gl.6:8). Em cada estágio desta vivificação, o Espírito trabalha
interiormente no personagem ou no corpo, e esta ênfase na interioridade é
precisamente o ponto em 3:6, como também nas outras duas passagens onde Paulo
usa a antítese Lei/Espírito (Rm.2:28-29; 7:4-6). A inscrição interna nas
pessoas, não a escrita externa nas pedras, é a marca da nova aliança (cf. 3:7).
Esta “nova aliança” é marcada de forma preeminente pela capacitação divina
interior, para que se possa cumprir a vontade de Deus. Para Paulo, a lei de
Cristo (Gl.6:2), gravada nos corações dos crentes pela doação de vida oriunda
do Espírito, foi o cumprimento da profecia de Jeremias de que, sob a “nova
aliança”, Deus escreveria sua lei nos corações de seu povo (Jr 31:33). Para ser
enfático nas premissas definidas concluímos que em 3:6 a Lei considerada como
mandamentos externos não estão consagrados no coração e desta forma, proferem
uma sentença de morte. Por outro lado, o Espírito de Deus que habita nos
corações dos crentes efetua sua revitalização tanto na era presente como na
vindoura (HARRIS. The
Second Epistle to the Corinthians: A commentary on the Greek text, p.273).
Depois desta sintética análise percebemos em que sentido “a letra (lei) mata”. Em suma percebemos a importância da “nova aliança” desempenhando um papel singular na salvação. Isto delimitado com uma conexão intrínseca, a qual funciona em associação com o Espírito. Quanto a “letra” (lei) sua funcionalidade sem Cristo se torna improvável em todos sentidos possíveis. O legalismo como efeito disto traz a perdição, e não a salvação.
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