sábado, 14 de setembro de 2024

 

 De que forma o NT interpreta a Teologia da Criação do AT? Um Estudo de caso envolvendo Hb.11:3



       Neste ensaio discutiremos a seguinte problemática: de que forma o NT interpreta a Teologia da Criação do AT?  Para tal, trabalharemos Hb.11:3 como estudo de caso. A relevância disto passa pela discussão ocorrida sobre esta questão em nosso cenário, mas, parece que muito mais pelas informações dadas pelo Gn. Longe de ser exaustivo faremos ponderações sintéticas que ainda assim, podem ser efetivas em suas devidas pretensões. A defesa exposta pode ser reproduzida na fala de Guthrie: “Não há dúvida de que os cristãos assumiram sem discussão que Deus é o criador do universo. Eles adotaram isso do Antigo Testamento e também dos ensinamentos de Jesus.” (New Testament Theology, p,78, ver também: SCHREINER. New Testament Theology Magnifying God in Christ, p.150).

         Para trabalhar Hb.11:3 teremos que abrir certas postas para entrarmos no texto. Em primeiro lugar, é relevante observar o contexto lógico. A conhecida passagem de Hb.11 traz considerações sobre a fé em conexão com a 4ª exortação do livro (10:26-39): “nós, porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma (10:39). Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem” (11:1). Além disso, por 18 vezes Hb.11 repete πίστει (“por causa ou por meio da fé ou com a fé”) estabelecendo conexões entre os antigos do v.2 e suas descrições nos vs.4-38. Evidente que 11:3 parece ser uma interpolação nesta dinâmica, entretanto como afirma Lane: “a conexão lógica desta afirmação não é com os atos de fé das testemunhas atestadas, mas com o v 1, pois é uma declaração sobre a própria fé. O discernimento da atividade criativa invisível de Deus, por trás do universo visível, exemplifica a capacidade da fé de demonstrar a realidade daquilo que não pode ser percebido através da percepção sensorial, que é celebrado como a essência da fé no v.1b” (LANE William. Word Biblical Commentary, p.302).

       Uma vez observada esta questão, passemos, diretamente para 11:3. O texto grego assim aparece: Πίστει νοοῦμεν κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ, εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (Por causa ou por meio da fé ou com a fé compreendemos (Rm.1:20, νοοῦμεν) [que Deus] foi criado/formado o universo pela palavra de Deus, de modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto). Assim, inicialmente o autor de forma inclusiva se une aos seus leitores e afirma: “por causa fé [nós] compreendemos...” Desta forma, a destinação direta a comunidade neste ponto, antes da recitação dos expoentes de fé atestados, enfatiza a experiência cristã do poder da fé, conforme descrito nas declarações fundamentais. É equilibrado na conclusão da seção, quando o escritor novamente se dirige à congregação nos vs 39–40, ressaltando o significado para eles do catálogo da fé em ação sob a antiga aliança (LANE William. Word Biblical Commentary, p.303). Corrobora entender que o verbo νοέω (“eu compreendo”) tem uma ligeira nuance além do simples conhecimento, sugerindo também uma certa compreensão ou percepção de algo (Mt 15:7; 16:9, 11; 24:15; Ef 3:4; 2 Tm 2:7). Agora, não podemos realmente “saber” ou “entender” algo que não existe de alguma forma. A fé, então, se conecta a algo real (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary, p.279)

      O conteúdo do compreender conectado a fé passa por duas partes: [1] κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ, [2] εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (“...foi formado/criado o universo pela palavra de Deus, e modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto”). Assim, em primeiro lugar, o infinito passivo (κατηρτίσθαι - καταρτίζω) descreve que “Deus criou” e o acusativo plural o conteúdo: “o universo” (τοὺς αἰῶνας); finalmente aparece o meio usado: “a palavra de Deus” (ῥήματι θεοῦ). O desafio maior desta parte passa pela tradução de αἰῶνας (aiônas), pois tem três possibilidades semânticas: “tempo – unidade indefinida de tempo; objetos geográficos – universo, criação; comportamento – padrões particulares de comportamento” (BDAG, LSJ, Louw Nida).  Para não absolutizarmos somente a questão lexical, se faz necessário fazer ponderações no macro, neste caso, as outras partes do texto e a Intertextualidade. Assim, como bem apontam os estudiosos “foi formado” aparece na LXX, apontando para o criar (Sl.40:7, ver em: LANE William. Word Biblical Commentary, p.303). Corrobora com isto, o dativo instrumental, pois “pela Palavra de Deus” como destaca Johnson: “o autor claramente faz alusão ao relato da criação em Gênesis 1, onde Deus cria. É pela autoridade da “palavra de Deus” que a fé ganha o entendimento de que o mundo vem a ser ‘pela palavra de Deus’” (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary, p.467). Em conexão com isto Lane destaca:o detalhe de que o universo foi ordenado ‘por meio da palavra de Deus’, alude aos comandos criativos de Deus em Gênesis” (1:3,6,9,14,20,24,26 - LANE William. Word Biblical Commentary, p.303).

    Num segundo momento o autor nos leva ao resultado da premissa anterior: εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (“...de modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto”). Parece que temos aqui um discurso apologético, porquanto, na cosmologia grega (por exemplo, Hesíodo, Empédocles), ao contrário de muitas das fontes judaicas (por exemplo, 2 Macabeus 7:28), o universo foi formado, a partir de matéria preexistente em um estado de caos; Platão e Filo acreditavam que o universo visível foi formado a partir de matéria visível. No entanto, Filo e muitos mestres judeus acreditavam que o universo material foi formado de acordo com o padrão invisível e ideal de Deus, incorporado em sua “palavra” ou sua “sabedoria”. Embora essa visão possa trair alguma influência filosófica grega, ela também foi enraizada e defendida por meio do Antigo Testamento (LANE William. Word Biblical Commentary, p.304). Desta forma, os leitores originais (cristãos que viviam nos anos 49 a 70 d.C) foram educados numa contracultura quanto a percepção grega de grande valência naquele contexto.

    Neste ponto ainda, percebemos que se “as coisas que são vistas sempre surgem do que não é visto”, então o mundo perceptível aos sentidos é sempre não apenas dependente, mas também inferior ao poder que o traz à existência, mesmo que seja através da sensível que o insensível encontra expressão. Já que a fé define uma vida baseada no que não é visto em vez do que é visto, ela, portanto, também se torna uma “prova” — nas próprias vidas dos humanos que vivem por ela — da realidade do invisível (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary p.280). Em suma, a discussão quanto a organização das cláusulas é complexa (ênfase na negação), mas ainda assim, alguns afirmam aqui a existência do creatio ex nihilo (ATTRIDGE. A Commentary on the Epistle to the Hebrews. p.315).

     Como foi dito no início nossa análise é sintética, ainda assim, conseguimos entender o papel da fé/compreensão quanto a criação. Algo de grande importância para o contexto interpretativo do NT. Além disso, encontramos dificuldades com aiônas que procuramos resolver usando o todo da argumentação. Assim, “foi criado pela Palavra de Deus” lemos num movimento de apropriação de Gn.1. Desta forma, conseguimos precisar a fonte usada pelo autor de Hebreus. Em terceiro lugar, vimos o caráter apologético envolvendo a criação, porquanto nega matéria preexistente e chancela o papel de Deus. A tautologia que afirma a criação como criadora perde sua relevância para os leitores originais. 

sábado, 17 de agosto de 2024

 

Casar-se com “a filha de um deus estrangeiro” — adorar uma divindade feminina (aserá): uma interpretação cultual de 2:10-16.

 

2:10–16 é uma das perícopes mais importantes, mas também mais difíceis, do livro de Malaquias (SMITH. WBC, p.494)

 


     Neste ensaio, observaremos a interpretação cultual de Ml.2:10-16, a partir de algumas premissas fundantes. Tal leitura não parece ser comum em nosso contexto, mas corrobora com respostas que a interpretação literal deixa em aberto. Longe de ser exaustivo, este ensaio tratará a questão de forma introdutória. Por isso, o objetivo é expor outro caminho investigativo para Ml.2:10-16.

      O texto do profeta Malaquias em sua completude apresenta uma forma estrutural definida por alguns estudiosos. Para Smith o livro tem um prefácio seguido de seis disputas sobre: 1. o amor de Deus (1:2–5) 2. a honra e o temor de Deus (1:6—2:9); 3. a infidelidade (2:10–16); 4. a justiça de Deus (2:17—3:5); 5. o arrependimento (3:6–12) 6. O falar contra Deus (3:13–21; SMITH. WBC, p.490).  Além disso, Longman explica que restam três versículos que formam um tipo de apêndice duplo: “(1) 4.4 [TM 3.23] é um chamado para observar a lei do Senhor; (2) 4.5-6 [TM 3.24-25] anuncia a futura chegada do profeta Elias antes do dia do Senhor” (LONGMAN; DILLARD. Introdução ao Antigo Testamento, p.420). Focaremos, neste ensaio, na terceira disputa que envolve “a infidelidade” (2:10–16).

Yahweh odeia o divórcio.

Profeta: Yahweh não aceitará suas ofertas.

Povo: Por quê?

Profeta: Porque você quebrou sua aliança de casamento com a esposa de sua juventude (LaSor, William Stanford. Old Testament survey: the message, form, and background of the Old Testament, p.329).

 

Esta disputa começa com perguntas retóricas feitas:não [temos] nós todos um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus? Por que agimos aleivosamente cada um contra seu irmão, para profanar a aliança de nossos pais?” (2:10). Malaquias usa a mesma técnica empregada em 1:6. Por meio de perguntas retóricas, começa afirmando um princípio geral e incontroverso sem inicialmente sugerir sua aplicação devastadora à situação em voga. Existe uma discussão quanto a identificação do “pai” (2:10), pois alguns entendem ser Abraão (Is.51:2; Ml.1:2;2:12; 3:6) e outros Deus (Pai no sentido de ser criador, Dt.32:6; Is.63:16; 64:8).

Outro ponto focado passa pela relação antagônica a Torah para com “a aliança de nossos pais” (2:10). Smith entende que o verbo usado aqui (bagad)[1] é chave para toda a passagem (2:10,11,14,15,16). Assim, há dois exemplos de infidelidade nesta passagem: [1] “casar-se com a filha de um deus estrangeiro” (v.11) e o outro [2] envolve divorciar-se da esposa da juventude — “a esposa da aliança” (v.14; SMITH. WBC, p.490). Aqui começamos a observar as problemáticas que serão tratadas:  casar-se com “a filha de um deus estrangeiro” significa estar ligada assim a uma mulher estrangeira, ou significa adorar uma divindade feminina (ídolo)? Divorciar-se da esposa da juventude se refere a maridos se desligando de suas esposas ou [se refere] à infidelidade de Israel à religião da aliança? Ao pensarmos pela história da interpretação, observamos que no passado os estudiosos aceitaram o significado literal do texto, mas nos últimos anos, outra interpretação chamada de “cultual ou tipológica” passou a ser advogada.

Pela interpretação cultual “a filha de um deus estrangeiro” representa um ídolo ou deusa pagã (Aserá).[2] Como fundamento, em primeiro lugar, é frequentemente apontado que a palavra “abominação” (v.11)[3] quase sempre se refere à idolatria em Deuteronômio (7:25,26; 12:31; 13:14; 17:1,4; 18:12; 20:18; 22:5; 23:18; 24:4; 25:16; 27:15; 32:16). Em segundo lugar, a referência à profanação da santidade de Yahweh ou seu santo templo poderia facilmente ser explicada de acordo com esta visão (v.11). Além disso, a alusão à cobertura do altar com lágrimas (v .13) se encaixando numa interpretação cultual da passagem. Em suma, esta passagem parece ser “um ataque ao choro cultual estrangeiro em Jerusalém pelo qual o templo estava sendo profanado” (Ez.8:14). A repreensão é mais direcionada contra a invasão de algum culto estrangeiro em Israel. Infidelidade esta de uma parte do povo que ameaçava o afastamento da aliança dos pais (v. 10). Judá agiu falsamente com a esposa de sua juventude - a religião da aliança, se casando com um culto estranho. Numa síntese, Abel Isaaksson cita cinco bases para esta interpretação cultual: “(1) esta parte do texto não deve ser interpretada, a partir das palavras no início do v.16, porque seu significado não é claro; (2) o conceito de “aliança” do AT é incompatível com o que o casamento significava neste período; (3) a expressão “cobriu o altar de Yahweh com lágrimas” deve ser interpretada como uma alusão ao luto ritual; (4) nenhuma instância pode ser citada desses versículos sendo entendidos em tempos anteriores como um ataque ao divórcio; (5) interpretar esta passagem como um ataque à apostasia para um culto estrangeiro está de acordo com o resto do livro de Malaquias” (Abel Isaaksson. Marriage and Ministry in the New Temple, pp. 31–32). Com estas premissas fundantes a expressão “Deus odeia o divórcio de 2:16”[4] funciona nesta dinâmica de apostasia e não cria antítese com Dt.24 onde o repúdio é exposto como elemento textual da Torah.

Com estas linhas preliminares de apontamentos sobre a interpretação cultual algumas considerações conclusivas foram expostas. Talvez, a mais importante que deve ser levada em conta é o contexto do livro. O culto está em voga no livro de Malaquias (1:6-14; 2:1-9; 3:1-12). Por isso, as associações próximas ou remotas funcionam melhor pela interpretação cultual. Constatamos isto pelas ofertas citadas em 2:12 conectado a 1:10,11,13; 2:12,13; 3:3,4. Além disso, a divindade feminina de 2:11 aparece em antítese a mulher 2:14,15, neste caso, primeiro compromisso (Os.1-2) num sentido metafórico. Finalmente, esta interpretação impossibilita o antagonismo entre Dt.24 e Ml.2:16, no que diz respeito ao divórcio.    

 

 

 

 

 



[1] בּגד-- Esta palavra aparece 267 vezes no AT.

[2] Walton bem explica a abordagem literal: “embora o significado não seja totalmente certo, a frase ‘casar com as filhas de um deus estrangeiro’ provavelmente se refere a casamentos mistos de judeus e não judeus. As mulheres que eram casadas com homens [judeus] permanecendo devotadas ao serviço de seus ídolos, e assim eles foram trazidos para a família de deuses estrangeiros, tornando-os passíveis de cometer idolatria. Esses casamentos foram condenados por Esdras e Neemias”.  WALTON. The IVP Bible Background COMMENTARY Old Testament p.810.

[3] תּוֹעֵבָה. Esta palavra aparece 118 vezes no AT. Como nunca aparece no radical Qal, talvez o verbo seja derivado do substantivo em vez do contrário (então BDB), já que o Piel é frequentemente um radical denominativo. Seus significados básicos no Piel são "abominar, detestar" em um sentido físico (Jó 9:31; Jó 19:19; Jó 30:10; Sl 107:18) e "detestar, excluir" por razões rituais ou éticas (Dt 7:26; Dt 23:7). Frequentemente os dois significados se fundem (Amós 5:10; Mq 3:9); em qualquer caso, o sujeito pode ser Deus (Sl 106:40) ou homem (Is 49:7). No Hifil, o verbo significa “cometer atos abomináveis ​​e detestáveis” (1 Reis 21:26; Sl 14:1; Sl 53:1 [H 2]; Ez 16:52), enquanto no Nifal significa “ser repugnante, detestável” (1 Cr 21:6; Jó 15:16; Is 14:19). R. Laird Harris. THEOLOGICAL WORDBOOK OF THE OLD TESTAMENT Volumes 1 & 2. Acervo digital, Bible Works 9.

[4]כִּֽי־שָׂנֵ֣א שַׁלַּ֗ח אָמַ֤ר יְהוָה֙ אֱלֹהֵ֣י יִשְׂרָאֵ֔ל   -

quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

    O Texto Grego do Apocalipse: Apontamentos Introdutórios (1ª Parte).


 

          Neste ensaio exegético, analisaremos, introdutoriamente, o texto grego do Apocalipse, focando os solecismos, crítica textual, sintaxe, vocabulário (léxico) e uma exegese numa parte do discurso. Faremos isto, em cinco movimentos distintos. Tal apreciação tem sua complexidade declarada, pois como colocou David L. Mathewson: “entre os numerosos desafios interpretativos [...] a natureza da linguagem do Apocalipse continua a suscitar considerável fascínio e perplexidade tanto por parte dos gramáticos como dos comentaristas” (MATHEWSON. Verbal Aspect in the Book of Revelation, The Function of Greek Verb Tenses in John’s Apocalypse, p.1). De outro lado, Osborne é categórico: “todos concordam quando se afirma que o grego de Apocalipse é o mais difícil do NT” (OSBORNE. Apocalipse, p.27). Estas falas corroboram com a devida compreensão da análise em voga. Começaremos pelo solecismo visto em alguns enquadramentos.

O “solecismo” (Σολοικισμός) e/ou “barbarismo” (βαρβαρισμός) presentes no Apocalipse têm algumas considerações definidoras e contextuais. Nestas dinâmicas, Laurențiu Florentin Moț explica que nem sempre o primeiro foi usado como termo gramatical, pois “Zenão (334-262 a.C), fundador do estoicismo, deu uma definição ampliada que ia além da fala, abrangendo roupas, alimentação e caminhada”. Entretanto, posteriormente em usos gramaticais (do geral ao específico). Luciano usou a palavra e seus cognatos de uma forma geral para significar todos os aspectos linguísticos ligados aos erros. Sua definição descreve solecismos como τὸν ἁμαρτάνοντα ἐν τοῖς λόγοις (“o que falha nas palavras”). De outro lado, o “barbarismo” (βαρβαρισμός), o qual tem uma trajetória semântica interessante. Antes das guerras persas (492–490, 480–479 a.C.) significava não-grego, quer linguística ou culturalmente. Depois das guerras persas, referia-se a qualquer coisa que parece inculto (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, pp.46,47). Estas primeiras informações são metodologicamente importantes para a percepção contextual, mas ainda assim, podemos questionar: como entender este fenômeno linguístico no Apocalipse?

Tal problemática pode ser vista de forma cronológica, pois, já na primeira metade do século III, Dionísio de Alexandria (264-265 d.C.) observou que o “uso da língua grega por João não é preciso, mas empregava expressões bárbaras, em alguns lugares cometendo solecismos absolutos” de algumas formas (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.100). Aune, de certa forma, agrava isto: “o grego do Apocalipse não é apenas difícil e estranho, mas também contém muitos recursos lexicais e sintáticos que nenhum falante nativo do grego teria escrito” (AUNE. Word Biblical Commentary, p.388). Ele continua, apresentando algumas razões para estes solecismos: (1) Apocalipse é uma tradução de uma obra originalmente escrita em língua semítica, hebraico ou aramaico; (2) o autor escreveu em grego, mas pensado em hebraico ou aramaico; (3) O hebraico bíblico serviu de modelo para a língua do Apocalipse; (4) o autor era secundariamente bilíngue e provavelmente foi capaz de falar como bem como escrever grego; os semitismos que sem dúvida existem no Apocalipse, funcionavam como  resultado desta interferência bilíngue (AUNE. Word Biblical Commentary, p.388). É ainda relevante observar algo não afirmado com veemência exposto por Beale:há um número significativo destas irregularidades ocorre em no meio das alusões do AT. Várias expressões parecem irregulares, porque João está transportando as formas gramaticais exatas das alusões, muitas vezes das várias versões do AT grego e às vezes do hebraico. Ele não muda a forma gramatical do AT para se adequar ao contexto imediato. O contexto sintático presente no Apocalipse, então, era a expressão do AT. Isso cria “dissonância sintática”. Com a mesma frequência, a gramática precisa da passagem do AT não é mantida, mas semitismos estilísticos ou septuagintalismos são incorporados, a fim de criar a dissonância” (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.101). Portanto, talvez, a avaliação mais comum das aparentes incongruências do Apocalipse, possam postular algum nível de influência semítica sobre a gramática de João. Embora, as especulações de que o Apocalipse seja uma tradução de uma fonte original hebraica ou aramaica careçam de plausibilidade, os solecismos gramaticais no são frequentemente atribuídos a alguns graus de influências da gramática do hebraico bíblico, talvez deliberadamente para dar-lhe um sabor do Antigo Testamento ou profético (MATHEWSON. Verbal Aspect in the Book of Revelation, The Function of Greek Verb Tenses in John’s Apocalypse, p.2).

 Quanto as irregularidades podemos falar pelo menos em cinco. Neste caso, na primeira e maior seção existem peculiaridades sentenciais compostas de divergências de caso, gênero e número A segunda classe consiste em incongruências verbais envolvendo tempo, modo e voz. A terceira classe representa as irregularidades preposicionais. Todos estes são solecismos de substituição. A próxima categoria a seguir é o das omissões. O capítulo termina com a quinta categoria que compreende acréscimos ou redundâncias (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, p.107). Corrobora ainda a ideia conecta ao argumento anterior, pois, é importante distinguir vários tipos de hebraísmos e aramaísmos: “(1) semântico Semitismos, (2) Semitismos lexicais, (3) Semitismos fraseológicos, (4) semitismos sintáticos e (5) semitismos estilísticos (expressões e construções possíveis em grego, mas cujo uso excepcionalmente frequente é mais característico do hebraico ou aramaico” (AUNE. Word Biblical Commentary, p.389). Tal perspectiva precisa ser enfatizada, porquanto, outras instâncias às vezes incluídas na discussão dos solecismos não aparecem como oposições diretas do direito comum das regras gramaticais, mas são melhor categorizadas como variações peculiares de estilo - por exemplo, pronomes resumidos (por exemplo, 3:8; 7:9), resolução de um particípio em um verbo finito em uma cláusula seguinte (por exemplo, 1:5-6; 2:20), mistura de tempos verbais e modos sem razão explícita (por exemplo, 21:24-27), e expressões estilísticas que parecem expressar hebraísmos ou aramaísmos (por exemplo, 4:9-10). Algumas das claras solecismos são difíceis de explicar em qualquer teoria (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.102).

Foquemos em algumas ilustrações que se enquadram nos cinco níveis:

Discordâncias de Caso (DEBRUNNER, BLASS. A Greek Grammar of The New Testament and Other Early Christian Literature, pp.135,136)

         [A] Uma frase aposicional (ou particípio circunstancial) é frequentemente encontrado no nominativo em vez de um caso oblíquo:

        τῆς καινῆς Ἰερουσαλὴμ ἡ καταβαίνουσα ἐκ τοῦ οὐρανοῦ  (3:12)

        [B] O masculino é frequentemente substituído pelo feminino ou neutro

         αἱ δύο λυχνίαι [...] ἑστῶτε  (11:4)

         [C] Nominativo para genitivo. Existem duas referências, que envolvem cinco substantivos nominativos usados no lugar de tantos substantivos genitivos. Todos os nominativos aposicionais deveriam ter sido traduzidos no genitivo, de acordo com ησο Χριστο..

         ἀπὸ Ἰησοῦ Χριστοῦ, ὁ μάρτυς, ὁ πιστός, ὁ πρωτότοκος  (Rev. 1:5 BNT)

          [D] Um nominativo participial é aplicado sete vezes a um genitivo. O primeiro nesta categoria está o solecismo mais famoso e um dos loci Communes onde são identificados no Apocalipse, provavelmente devido à sua primeira posição no livro. Apocalipse 1:4 contém a frase π ν κα ν κα ρχόμενος, onde π é seguido não por genitivos, mas surpreendentemente, por um nominativo (MOT. Morphological and Syntactical Irregularities in the Book of Revelation, A Greek Hypothesis, p.113).

          [E] Em 13:14, o particípio masculino singular λέγων funciona como um predicado adjetivo, modificando o substantivo neutro singular θηρίον (13:11). Isto é claramente um solecismo e também reflete a prática do narrador de modificar o neutro substantivos que simbolizam homens com adjetivos, pronomes e particípios no género masculino (AUNE. Word Biblical Commentary, p.389).

         Vale a ressalva de que o “Constructio Ad Sensum” deve ser levado em conta. Tal construção contempla um pequeno grupo de demonstrativos possui uma concordância natural com seus antecedentes, cometendo o que chamamos de solecismo. São construções ideológicas ou constructio ad sensum. Essa (des-) concordância natural envolve gênero ou, mais raramente, número. Frequentemente, a concordância somente é conceituai, visto que o pronome aponta para uma frase ou oração e não para um substantivo ou qualquer outro nome. Como é de se esperar, não poucos desses exemplos são debatíveis e exegeticamente significantes (Wallace, p.330). Corroboram Debrunner, Blass, quando destacam: [1] “a instância principal é aquela em que um coletivo, abrangendo uma pluralidade de pessoas em um substantivo singular, é interpretado como se o sujeito fosse plural. [2] Coletivos pessoais femininos ou neutros no plural podem ser continuados por um masculino plural. [3] Um particípio masculino referindo-se a um substantivo neutro que designa um ser pessoal” (DEBRUNNER, BLASS. A Greek Grammar of The New Testament and Other Early Christian Literature, pp.133,135). Ainda assim, Beale afirma: “as conclusões a que cheguei refinam esta avaliação. Alguns os solecismos que podem ser atribuídos à influência do AT também poderiam ser explicados como devidos à constructio ad sensum, mas não a maioria deles; e quando ambas as explicações são possíveis, a influência do AT é preferível, porque se baseia em evidências mais objetivas” (BEALE.  The Book of Revelation A Commentary on the Greek Text, p.101).

 Depois desta sintética análise continuamos com a tese inicial de que o grego do apocalipse é notoriamente complexo. Pelos solecismos percebemos seus usos nas antigas literaturas que precederam o livro das revelações. Além disso, a detecção inicial deles no 3º século d.C. De forma, introdutória percebemos que a escrita do livro teve fundamento no AT. Parece ser esta a explicação tendo também como base que as aparições dos solecismos se desenvolvem na intertextualidade (relação com o AT). Tal síntese parece expressar hebraísmos ou aramaísmos. Os outros elementos a serem observados complementarão a análise.  


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