Neste
ensaio discutiremos a seguinte problemática: de que forma o NT interpreta a Teologia da Criação do AT? Para tal, trabalharemos Hb.11:3 como estudo
de caso. A relevância disto passa pela discussão ocorrida sobre esta questão em
nosso cenário, mas, parece que muito mais pelas informações dadas pelo Gn.
Longe de ser exaustivo faremos ponderações sintéticas que ainda assim, podem
ser efetivas em suas devidas pretensões. A defesa exposta pode ser reproduzida
na fala de Guthrie: “Não há dúvida de que os cristãos assumiram
sem discussão que Deus é o criador do universo. Eles adotaram isso do Antigo
Testamento e também dos ensinamentos de Jesus.” (New Testament Theology, p,78, ver também: SCHREINER. New Testament Theology Magnifying God in
Christ, p.150).
Para trabalhar Hb.11:3 teremos que abrir
certas postas para entrarmos no texto. Em primeiro lugar, é relevante observar
o contexto lógico. A conhecida passagem de Hb.11 traz considerações sobre a fé
em conexão com a 4ª exortação do livro (10:26-39): “nós, porém, não somos
daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma (10:39). Ora, a fé é o firme fundamento das coisas
que se esperam e a prova das coisas que se não veem” (11:1). Além disso, por 18
vezes Hb.11 repete πίστει (“por causa ou por meio da fé ou com a fé”) estabelecendo
conexões entre os antigos do v.2 e suas descrições nos vs.4-38. Evidente que
11:3 parece ser uma interpolação nesta dinâmica, entretanto como afirma Lane: “a
conexão lógica desta afirmação não é com
os atos de fé das testemunhas atestadas, mas com o v 1, pois é uma declaração
sobre a própria fé. O discernimento da atividade criativa invisível de
Deus, por trás do universo visível, exemplifica a capacidade da fé de
demonstrar a realidade daquilo que não pode ser percebido através da percepção
sensorial, que é celebrado como a essência da fé
no v.1b” (LANE William. Word Biblical
Commentary, p.302).
Uma vez observada esta questão, passemos,
diretamente para 11:3. O texto grego assim aparece: Πίστει νοοῦμεν κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ,
εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι.
(Por causa ou por meio da fé ou
com a fé compreendemos (Rm.1:20, νοοῦμεν) [que Deus] foi criado/formado o
universo pela palavra de Deus, de modo que, não veio a ser do que brilha ou
produz luz o que tem sido visto). Assim, inicialmente o autor de forma
inclusiva se une aos seus leitores e afirma: “por causa fé [nós] compreendemos...”
Desta forma, a destinação direta a comunidade neste ponto, antes da recitação dos
expoentes de fé atestados, enfatiza a experiência cristã do poder da fé,
conforme descrito nas declarações fundamentais. É equilibrado na conclusão
da seção, quando o escritor novamente se dirige à congregação nos vs 39–40, ressaltando
o significado para eles do catálogo da fé em ação sob a antiga aliança (LANE
William. Word Biblical Commentary,
p.303). Corrobora entender que o verbo νοέω (“eu compreendo”) tem uma ligeira nuance além do simples
conhecimento, sugerindo também uma certa compreensão ou percepção de algo
(Mt 15:7; 16:9, 11; 24:15; Ef 3:4; 2 Tm 2:7). Agora, não podemos realmente
“saber” ou “entender” algo que não existe de alguma forma. A fé, então, se
conecta a algo real (JOHNSON Luke. Hebrews
A Commentary, p.279)
O conteúdo do
compreender conectado a fé passa por duas partes: [1] κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ,
[2]
εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι.
(“...foi formado/criado o universo pela
palavra de Deus, e modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que
tem sido visto”). Assim, em primeiro lugar, o infinito passivo (κατηρτίσθαι - καταρτίζω) descreve que “Deus criou” e o acusativo plural o
conteúdo: “o universo” (τοὺς αἰῶνας); finalmente aparece o meio usado: “a palavra de Deus” (ῥήματι θεοῦ). O desafio maior desta parte passa pela tradução de αἰῶνας (aiônas),
pois tem três possibilidades semânticas: “tempo – unidade
indefinida de tempo; objetos geográficos – universo, criação;
comportamento – padrões particulares de comportamento” (BDAG, LSJ, Louw
Nida). Para não absolutizarmos somente a
questão lexical, se faz necessário fazer ponderações no macro, neste caso, as
outras partes do texto e a Intertextualidade. Assim, como bem apontam os
estudiosos “foi formado” aparece na LXX, apontando para o criar (Sl.40:7, ver
em: LANE William. Word Biblical
Commentary, p.303). Corrobora com isto, o dativo instrumental, pois “pela
Palavra de Deus” como destaca Johnson: “o autor claramente faz alusão ao relato
da criação em Gênesis 1, onde Deus cria. É pela autoridade da “palavra de Deus”
que a fé ganha o entendimento de que o mundo vem a ser ‘pela palavra de Deus’” (JOHNSON
Luke. Hebrews A Commentary, p.467).
Em conexão com isto Lane destaca: “o
detalhe de que o universo foi ordenado ‘por meio da palavra de Deus’, alude aos
comandos criativos de Deus em Gênesis” (1:3,6,9,14,20,24,26 - LANE William. Word Biblical Commentary, p.303).
Num segundo
momento o autor nos leva ao resultado da premissa anterior: εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι.
(“...de modo que, não veio a ser do que
brilha ou produz luz o que tem sido visto”). Parece que temos aqui um discurso
apologético, porquanto, na cosmologia grega (por exemplo, Hesíodo, Empédocles),
ao contrário de muitas das fontes judaicas (por exemplo, 2 Macabeus 7:28), o
universo foi formado, a partir de matéria preexistente em um estado de caos;
Platão e Filo acreditavam que o universo visível foi formado a partir de
matéria visível. No entanto, Filo e muitos mestres judeus acreditavam que o
universo material foi formado de acordo com o padrão invisível e ideal de
Deus, incorporado em sua “palavra” ou sua “sabedoria”. Embora essa visão
possa trair alguma influência filosófica grega, ela também foi enraizada e
defendida por meio do Antigo Testamento (LANE William. Word Biblical Commentary, p.304). Desta forma, os leitores
originais (cristãos que viviam nos anos 49 a 70 d.C) foram educados numa
contracultura quanto a percepção grega de grande valência naquele contexto.
Neste ponto
ainda, percebemos que se “as coisas que são vistas sempre surgem do que não é
visto”, então o mundo perceptível aos sentidos é sempre não apenas dependente,
mas também inferior ao poder que o traz à existência, mesmo que seja através da
sensível que o insensível encontra expressão. Já que a fé define uma vida
baseada no que não é visto em vez do que é visto, ela, portanto, também se
torna uma “prova” — nas próprias vidas dos humanos que vivem por ela — da
realidade do invisível (JOHNSON Luke. Hebrews
A Commentary p.280). Em suma, a discussão quanto a organização das
cláusulas é complexa (ênfase na negação), mas ainda assim, alguns afirmam aqui
a existência do creatio ex nihilo (ATTRIDGE.
A Commentary on the
Epistle to the Hebrews. p.315).
Como foi dito no início nossa análise é sintética, ainda assim, conseguimos entender o papel da fé/compreensão quanto a criação. Algo de grande importância para o contexto interpretativo do NT. Além disso, encontramos dificuldades com aiônas que procuramos resolver usando o todo da argumentação. Assim, “foi criado pela Palavra de Deus” lemos num movimento de apropriação de Gn.1. Desta forma, conseguimos precisar a fonte usada pelo autor de Hebreus. Em terceiro lugar, vimos o caráter apologético envolvendo a criação, porquanto nega matéria preexistente e chancela o papel de Deus. A tautologia que afirma a criação como criadora perde sua relevância para os leitores originais.