Em Lc.16:19-31 temos a chancela do chamado “estado
intermediário” (“ᾅδης [...] κόλπον Ἀβραάμ”)?
Temos nesse texto a indicação do que ocorre com justos e
ímpios no período pós-morte até o julgamento final?

... E assim, imediatamente depois da morte, os crentes desfrutam de um estado temporário de benção de Cristo no céu, assim também os incrédulos desde o momento de sua morte, entram em um lugar de tormento (BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.610,612).
REFORMA E DEFORMAÇÃO. Bavinck afirma que Lutero via o estado intermediário do crente como um sono no qual ele tranquila a calmamente aguardava o futuro do Senhor. Calvino quase na mesma dinâmica entendia que o seio de Abraão significa apenas que depois da morte as almas dos fieis desfrutam da plena paz, mas que até o dia da ressurreição, algo ainda está faltando... Em suma o estado intermediário afinal, consistia quase totalmente “na esperança e expectativa de uma glória futura, não de fato, no gozo dessa glória” – E da mesma forma os ímpios numa expectativa de punição (BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.617,618).
Nesse
sintético texto procuraremos tratar exegeticamente Lc.16:19-31 com pressupostos
teológicos distintos (cf. BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4, pp.593-647).
Nesse caso, o posicionamento escatológico que trata “o estado intermediário” no pós-morte como algo transitório
até o julgamento final (junção do espírito
com o corpo). As delimitações que envolvem este pós-morte, constituem o
interesse deste ensaio, pois funcionam como norteadores teológicos necessários. Por isso, o “ᾅδης (hádes) e “τὸν κόλπον Ἀβραάμ” (“o seio de Abraão”) quando
problematizados, devem ser definidos
contextualmente de que forma? O
trato exegético que os envolve traz consigo o significado que corrobora com o
pressuposto hermenêutico?
Ao tratar
exegeticamente Lc.16:19-31 nos detemos inicialmente para a determinação da
síntese que envolve a dinâmica
contextual. Assim, a repetição de “ἄνθρωπός τις ἦν πλούσιος” (“havia um homem rico”) em 16:1,19
funciona como
fundamento estrutural, nesse caso, expondo a introdução e conclusão da seção. Além disso, estabelece do foco temático, indicando a
tratativa central, vista por alguns eruditos do NT na seguinte concordância: “o uso e abuso das riquezas” - NOLLAND. Luke WBC, p.
825; “cuidado com as riquezas” - MARSHALL: The Gospel of Luke: A
Commentary on the Greek Text, p.9; “sobre o uso da riqueza” - PLUMMER. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel
According to S. Luke, p. 379. Outra ação elucidadora e
informativa nessa mesma dinâmica é a pormenorização desta seção (16:1-31), realizada
em sua estruturação. O modelo exposto por Howard Marshall nos ajuda nesse
sentido: 1) “o
administrador prudente” (16:1-8); 2)
“a administração fiel” (16:10-13); 3)
“reprovação aos fariseus” (16:14:15); 4)
“a lei e o reino” (16:16:17); 5) “a
lei concernente ao divórcio” (16:18); 6)
“o homem rico e Lázaro” (16:19:31)” MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p. 9. Com estas
informações preliminares nosso recorte ganha significado a ser desenvolvido. A
última parte citada é desenvolvida em duas cenas, sendo que a primeira ocorre na
terra (16:19-22) e a segunda no Hades (16:23-31). Desta forma, a antítese entre
“Ανθρωπος
[...] ἦν πλούσιος” (“um homem
que era rico”) e “πτωχὸς [...] ὀνόματι Λάζαρος” (“um pobre chamado Lazaro”) expõe as condições dos personagens iniciais e seus referidos
lugares depois da morte: o primeiro “estando em tormentos” (ὑπάρχων ἐν βασάνοις) e o segundo
no “seio de Abraão” (κόλπον Ἀβραάμ”). Além disso, o quiasmo
destaca a maior participação do rico nesse contexto (Lázaro nada fala).
Nossa análise focará os vs.22,23, mas não sem dialogar com o restante do texto. Assim, em primeiro lugar, observemos as informações metafóricas relacionadas ao “κόλπον Ἀβραάμ”, pois aconteceu que “ἀποθανεῖν τὸν πτωχὸν καὶ ἀπενεχθῆναι αὐτὸν ὑπὸ[6] τῶν ἀγγέλων εἰς τὸν κόλπον Ἀβραάμ” (“morreu o pobre e foi levado pelos anjos para a habitação celeste”). Nossa busca pela devida compreensão de “κόλπον Ἀβραάμ” passa inicialmente por um viés lexical, nesse sentido Louw Nida o traduzem como: “a habitação celeste, com a implicação de relações interpessoais muito estreitas” [...] “em geral é interpretada também como uma referência a festa no céu” (legitimando a tradução da NTLH), leitura oriunda de uma antiga tradição judaica (LOUW; NIDA. Léxico Grego-Português do Novo Testamento, p.7). Além disso, (κόλπον Ἀβραάμ) pode indicar a “relação de filho com o pai” (κόλπος[7] – Jo.1:18 - MORRIS. Lucas, p.238) ou outra maneira de dizer que alguém (aqui o pobre) foi “reunido aos pais” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, p.636).[8] Mesmo com diferentes definições ainda assim, as delimitações no pós-morte não definitivas são expostas, pois o foco não parece estar em consonância com a ressurreição do corpo (1Co.15:50-58; 1Ts.4:13-18). Esse apontamento leva em conta a fala de Carson: “a história é uma parábola e, portanto, não fornece necessariamente informações literais sobre as condições na próxima vida [...] Embora seja manifestamente simbólico, fala de destinos reais para as pessoas.” (CARSON. New Bible Commentary, s. Lc 16:19).
De outro lado, o “rico morreu e
foi sepultado”, logo depois aparece no “Hades
(ᾅδης – A ARA e ACF traduzem
como “inferno”)[9],
estando em tormento” (ὑπάρχων ἐν βασάνοις. 16:23). Esse “ᾅδης” pode ser
traduzido como “lugar dos mortos,
incluindo tanto justos como ímpios”. Mas, em Lc.16:23 implica em “tormento
e castigo” como aspectos suplementares, todavia, não integrantes do
significado.[10]
Como Lucas faz uso de “γέεννα” (guéena – “um lugar onde os mortos são punidos”) em 12:5 é
possível que a opção por “ᾅδης” em 16:23,
reflita a intenção de enfatizar de incluir tanto os justos como os ímpios no Hádes (LOUW; NIDA. Léxico
Grego-Português do Novo Testamento, p.7). Essas perspectivas lexicais
juntamente com as informações contextuais chancelam a ausência de definição
quanto a punição exposta no estado final. Por esta razão, Howard Marshall
explica que “a descrição por ser para
o homem logo depois da sua morte é muito provável que signifique a morada
intermediária dos mortos antes do julgamento final”. Além disso, “βάσανος” (“tormento”)[11]
é uma característica tanto do estado intermediário como o final (MARSHALL: The Gospel of
Luke: A Commentary on the Greek Text, p.636). Portanto, o uso de “ᾅδης” no NT
contribui com essa teste interpretativa, pois não define totalmente o estado final de condenação em seus
desdobramentos (cf. Ap.20:14; 21:8 - ἡ λίμνη τοῦ πυρός).[12]
Depois destas constatações os vs.24-31 serão
desenvolvidos no “ᾅδης”, as petições do “rico” ao “pai Abraão”
(respondidas). Isso ocorre, porque “Abraão ocupa uma posição de autoridade e
importância. Ele é o pai espiritual de
Israel” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A
Commentary on the Greek Text, p.637). Portanto, por “estar
atormentado” o rico deseja ser refrescado, mas Abraão nega veementemente
(16:25). Logo depois, a petição ganha novo foco, agora envolvendo não o rico,
mas sua casa paterna (16:27,28). Novamente a resposta dada pelo Pai Abraão é
negativa, desta vez com o elemento fundante que envolve “Moisés e os profetas” (16:29,
cf.Lc.24:27,44). Nesse momento a contestação desafia a afirmativa do v.29,
pois “se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão” (16:30).
Chegamos assim, ao ápice da diálogo, pois a supremacia de “Moisés e dos
profetas” é chancelada como único elemento de impedimento para o “tormento”
(16:31). Desta forma, observamos que a
dinâmica dos versos citados progride para a suficiência de “Moisés e os
profetas” em conexão ao vs.16,17.
Ο νόμος καὶ οἱ προφῆται (16:16).
Assim, a dualidade escatológica
ganha significado pelo contexto anterior no estabelecimento da relação parentética
entre “a Lei” - “o reino” - “Moisés e os profetas”. O “divórcio” e “o trato com
as riquezas” aparecem como elementos subservientes a esse padrão que funciona
como síntese, apontando para as Escrituras. Por isso, na compreensão de Lucas a pregação das boas novas do reino
de Deus, ao contrário de oferecer fácil entrada no reino, envolve uma
intensificação das demandas da lei. O divórcio é usado como ilustração disso, mas o foco está sobre a confirmação e
intensificação destas demandas da lei em conexão com as riquezas
(NOLLAND. Luke WBC, p. 820). Numa percepção bem definida sobre a suficiência da
Escritura nessa parte do discurso (16:31) Marshall afirma: “os milagres não vão
convencer aqueles cujos corações são moralmente cegos e impenitentes; eles não
serão persuadidos” (MARSHALL: The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek
Text, p.639). Pfeiffe de outro lado trata
a ação limitada do milagre, pois não produz fé por si mesmo (Pfeiffer; Harrison:
The Wycliffe Bible Commentary : New
Testament, s. Lc 16:29)
Depois de levantarmos estes
norteadores, voltemos a percepção de Herman Bavinck (1854-1921), tratada como
pressuposto teológico neste ensaio: “e
assim, imediatamente depois da morte, os crentes desfrutam de um estado
temporário de benção de Cristo no céu, assim também os incrédulos desde o
momento de sua morte, entram em um lugar de tormento”
(BAVINCK. Dogmática Cristã, Vol.4,
pp.610,612). Encontramos apoio exegético no trato desenvolvido, pois
contextualmente tratamos os apontamentos de Lc.16 quanto ao seu foco temático.
Nesse caso, a administração das riquezas em subserviência a Palavra com
desdobramentos escatológicos, vivenciados na antítese entre o “πλούσιος” e o “πτωχός”. Além disso, foi
observado que o “ᾅδης” não é
visto como lugar definitivo no pós-morte, pois lhe falta consonâncias com as
delimitações que envolvem o NT. Assim, esse lugar temporário pode ser definido
como “estado intermediário”..
[1]
Três
aspectos da Teologia: “é ensinada por Deus, ensina a Deus e conduz a Deus”
(Tomás de Aquino).
[2]
“Havia um homem rico...”
[4]
“morreu o pobre...”
[5]
“morreu o rico”...
[6]
Agente último da passiva. Indica a
última pessoa
responsável pela ação, diretamente ou não envolvido.
WALLACE Daniel. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do
Novo
Testamento. São Paulo: Batista Regular, 2009, p.433.
Testamento. São Paulo: Batista Regular, 2009, p.433.
[7]
Esta palavra aparece seis vezes no NT: Lc.6:38; 16:22;,23; Jo.1:18; 13:23;
At.27:39. Mais quarenta e uma vezes na LXX.
[8]
Gn.15:15; 47:30; Dt. 31:16
[9]
Esta palavra aparece 10 vezes no NT: Mt.11:23; 16:18; Lc.10:15; 16:23;
At.2:27,31; Ap.1:18; 6:8; 20:13,14.
[10]
É até possível que, por se dirigir
aos leitores do mundo greco-romano, Lucas tenha usado ᾅδης
num contexto que implica punição e tormento, pois era uma maneira típica de se
ver o além no mundo greco-romano. LOUW;
NIDA. Léxico Grego-Português do Novo
Testamento, p.7.
[11]
Esta palavra aparece três vezes no NT: Mt.4:24; LC.16:23,28.
[12]
“O lago de fogo”.
[13]
“A lei e os profetas” – “Moisés e os profetas”.