Casar-se com “a filha de um deus estrangeiro” — adorar
uma divindade feminina (aserá): uma interpretação cultual de 2:10-16.
2:10–16 é uma das perícopes mais importantes, mas também mais
difíceis, do livro de Malaquias (SMITH.
WBC, p.494)
Neste ensaio, observaremos a interpretação cultual de
Ml.2:10-16, a partir de algumas premissas fundantes. Tal leitura não parece ser
comum em nosso contexto, mas corrobora com respostas que a interpretação literal
deixa em aberto. Longe de ser exaustivo, este ensaio tratará a questão de forma
introdutória. Por isso, o objetivo é expor outro caminho investigativo para Ml.2:10-16.
O texto do profeta Malaquias em sua completude apresenta
uma forma estrutural definida por alguns estudiosos. Para Smith o livro tem um
prefácio seguido de seis disputas sobre: 1. o amor de Deus (1:2–5) 2. a honra e
o temor de Deus (1:6—2:9); 3. a infidelidade (2:10–16); 4. a justiça de Deus
(2:17—3:5); 5. o arrependimento (3:6–12) 6. O falar contra Deus (3:13–21; SMITH.
WBC, p.490). Além disso, Longman explica
que restam três versículos que formam um tipo de apêndice duplo: “(1) 4.4 [TM
3.23] é um chamado para observar a lei do Senhor; (2) 4.5-6 [TM 3.24-25]
anuncia a futura chegada do profeta Elias antes do dia do Senhor” (LONGMAN;
DILLARD. Introdução ao Antigo Testamento,
p.420). Focaremos, neste ensaio, na terceira disputa que envolve “a
infidelidade” (2:10–16).
Yahweh odeia o divórcio.
Profeta: Yahweh não aceitará suas ofertas.
Povo: Por quê?
Profeta: Porque você
quebrou sua aliança de casamento com a esposa de sua juventude (LaSor, William Stanford. Old Testament survey: the message, form, and
background of the Old Testament, p.329).
Esta
disputa começa com perguntas retóricas feitas: “não
[temos] nós todos um mesmo
Pai? Não nos criou um mesmo
Deus? Por que agimos aleivosamente cada um contra seu irmão, para profanar a
aliança de nossos pais?” (2:10). Malaquias usa a mesma técnica empregada em
1:6. Por meio de perguntas retóricas, começa afirmando um princípio geral e incontroverso
sem inicialmente sugerir sua aplicação devastadora à situação em voga. Existe
uma discussão quanto a identificação do “pai” (2:10), pois alguns entendem ser
Abraão (Is.51:2; Ml.1:2;2:12; 3:6) e outros Deus (Pai no sentido de ser
criador, Dt.32:6; Is.63:16; 64:8).
Outro
ponto focado passa pela relação antagônica a Torah para com “a aliança de
nossos pais” (2:10). Smith entende que o verbo usado aqui (bagad)[1] é
chave para toda a passagem (2:10,11,14,15,16). Assim, há dois exemplos de
infidelidade nesta passagem: [1] “casar-se com a filha de um deus estrangeiro”
(v.11) e o outro [2] envolve divorciar-se da esposa da juventude — “a esposa da
aliança” (v.14; SMITH. WBC, p.490). Aqui começamos a observar as problemáticas que
serão tratadas: casar-se com “a filha de um deus
estrangeiro” significa estar ligada assim
a uma mulher estrangeira, ou significa adorar uma divindade feminina (ídolo)? Divorciar-se da esposa da
juventude se refere a maridos
se desligando de suas esposas ou [se refere] à infidelidade de Israel à religião da aliança? Ao pensarmos pela história da
interpretação, observamos que no passado os estudiosos aceitaram o significado
literal do texto, mas nos últimos anos, outra interpretação chamada de “cultual
ou tipológica” passou a ser advogada.
Pela
interpretação cultual “a filha de um
deus estrangeiro” representa um ídolo ou deusa pagã (Aserá).[2] Como
fundamento, em primeiro lugar, é
frequentemente apontado que a palavra “abominação” (v.11)[3] quase
sempre se refere à idolatria em Deuteronômio (7:25,26; 12:31; 13:14; 17:1,4;
18:12; 20:18; 22:5; 23:18; 24:4; 25:16; 27:15; 32:16). Em segundo lugar, a referência à profanação da santidade de Yahweh
ou seu santo templo poderia facilmente ser explicada de acordo com esta visão
(v.11). Além disso, a alusão à cobertura do altar com lágrimas (v .13) se
encaixando numa interpretação cultual da passagem. Em suma, esta passagem parece
ser “um ataque ao choro cultual estrangeiro em Jerusalém pelo qual o templo
estava sendo profanado” (Ez.8:14). A repreensão é mais direcionada contra a
invasão de algum culto estrangeiro em Israel. Infidelidade esta de uma parte do
povo que ameaçava o afastamento da aliança dos pais (v. 10). Judá agiu
falsamente com a esposa de sua juventude - a religião da aliança, se casando
com um culto estranho. Numa síntese, Abel Isaaksson cita cinco bases para esta
interpretação cultual: “(1) esta parte do texto não deve ser interpretada, a
partir das palavras no início do v.16, porque seu significado não é claro; (2)
o conceito de “aliança” do AT é incompatível com o que o casamento significava
neste período; (3) a expressão “cobriu o altar de Yahweh com lágrimas” deve ser
interpretada como uma alusão ao luto ritual; (4) nenhuma instância pode ser citada
desses versículos sendo entendidos em tempos anteriores como um ataque ao
divórcio; (5) interpretar esta passagem como um ataque à apostasia para um
culto estrangeiro está de acordo com o resto do livro de Malaquias” (Abel
Isaaksson. Marriage and Ministry in the
New Temple, pp. 31–32). Com estas premissas fundantes a expressão “Deus
odeia o divórcio de 2:16”[4] funciona
nesta dinâmica de apostasia e não cria antítese com Dt.24 onde o repúdio é
exposto como elemento textual da Torah.
Com estas
linhas preliminares de apontamentos sobre a interpretação cultual algumas considerações
conclusivas foram expostas. Talvez, a mais importante que deve ser levada em conta
é o contexto do livro. O culto está em voga no livro de Malaquias (1:6-14; 2:1-9;
3:1-12). Por isso, as associações próximas ou remotas funcionam melhor pela interpretação
cultual. Constatamos isto pelas ofertas citadas em 2:12 conectado a 1:10,11,13;
2:12,13; 3:3,4. Além disso, a divindade feminina de 2:11 aparece em antítese a mulher
2:14,15, neste caso, primeiro compromisso (Os.1-2) num sentido metafórico. Finalmente,
esta interpretação impossibilita o antagonismo entre Dt.24 e Ml.2:16, no que diz
respeito ao divórcio.
[1]
בּגד-- Esta
palavra aparece 267 vezes no AT.
[2]
Walton bem explica a abordagem
literal: “embora o significado não seja totalmente certo, a frase ‘casar com as
filhas de um deus estrangeiro’ provavelmente se refere a casamentos mistos de
judeus e não judeus. As mulheres que eram casadas com homens [judeus] permanecendo
devotadas ao serviço de seus ídolos, e assim eles foram trazidos para a família
de deuses estrangeiros, tornando-os passíveis de cometer idolatria. Esses casamentos
foram condenados por Esdras e Neemias”. WALTON.
The IVP Bible Background COMMENTARY Old Testament p.810.
[3]
תּוֹעֵבָה.
Esta palavra aparece 118 vezes no AT. Como nunca aparece no radical Qal, talvez
o verbo seja derivado do substantivo em vez do contrário (então BDB), já que o
Piel é frequentemente um radical denominativo. Seus significados básicos no
Piel são "abominar, detestar" em um sentido físico (Jó 9:31; Jó
19:19; Jó 30:10; Sl 107:18) e "detestar, excluir" por razões rituais
ou éticas (Dt 7:26; Dt 23:7). Frequentemente os dois significados se fundem
(Amós 5:10; Mq 3:9); em qualquer caso, o sujeito pode ser Deus (Sl 106:40) ou
homem (Is 49:7). No Hifil, o verbo significa “cometer atos abomináveis e
detestáveis” (1 Reis 21:26; Sl 14:1; Sl 53:1 [H 2]; Ez 16:52), enquanto no
Nifal significa “ser repugnante, detestável” (1 Cr 21:6; Jó 15:16; Is 14:19). R. Laird Harris. THEOLOGICAL WORDBOOK OF THE OLD
TESTAMENT Volumes 1
& 2. Acervo digital, Bible Works 9.
[4]כִּֽי־שָׂנֵ֣א שַׁלַּ֗ח אָמַ֤ר יְהוָה֙ אֱלֹהֵ֣י
יִשְׂרָאֵ֔ל -