sábado, 14 de setembro de 2024

 

 De que forma o NT interpreta a Teologia da Criação do AT? Um Estudo de caso envolvendo Hb.11:3



       Neste ensaio discutiremos a seguinte problemática: de que forma o NT interpreta a Teologia da Criação do AT?  Para tal, trabalharemos Hb.11:3 como estudo de caso. A relevância disto passa pela discussão ocorrida sobre esta questão em nosso cenário, mas, parece que muito mais pelas informações dadas pelo Gn. Longe de ser exaustivo faremos ponderações sintéticas que ainda assim, podem ser efetivas em suas devidas pretensões. A defesa exposta pode ser reproduzida na fala de Guthrie: “Não há dúvida de que os cristãos assumiram sem discussão que Deus é o criador do universo. Eles adotaram isso do Antigo Testamento e também dos ensinamentos de Jesus.” (New Testament Theology, p,78, ver também: SCHREINER. New Testament Theology Magnifying God in Christ, p.150).

         Para trabalhar Hb.11:3 teremos que abrir certas postas para entrarmos no texto. Em primeiro lugar, é relevante observar o contexto lógico. A conhecida passagem de Hb.11 traz considerações sobre a fé em conexão com a 4ª exortação do livro (10:26-39): “nós, porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma (10:39). Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem” (11:1). Além disso, por 18 vezes Hb.11 repete πίστει (“por causa ou por meio da fé ou com a fé”) estabelecendo conexões entre os antigos do v.2 e suas descrições nos vs.4-38. Evidente que 11:3 parece ser uma interpolação nesta dinâmica, entretanto como afirma Lane: “a conexão lógica desta afirmação não é com os atos de fé das testemunhas atestadas, mas com o v 1, pois é uma declaração sobre a própria fé. O discernimento da atividade criativa invisível de Deus, por trás do universo visível, exemplifica a capacidade da fé de demonstrar a realidade daquilo que não pode ser percebido através da percepção sensorial, que é celebrado como a essência da fé no v.1b” (LANE William. Word Biblical Commentary, p.302).

       Uma vez observada esta questão, passemos, diretamente para 11:3. O texto grego assim aparece: Πίστει νοοῦμεν κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ, εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (Por causa ou por meio da fé ou com a fé compreendemos (Rm.1:20, νοοῦμεν) [que Deus] foi criado/formado o universo pela palavra de Deus, de modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto). Assim, inicialmente o autor de forma inclusiva se une aos seus leitores e afirma: “por causa fé [nós] compreendemos...” Desta forma, a destinação direta a comunidade neste ponto, antes da recitação dos expoentes de fé atestados, enfatiza a experiência cristã do poder da fé, conforme descrito nas declarações fundamentais. É equilibrado na conclusão da seção, quando o escritor novamente se dirige à congregação nos vs 39–40, ressaltando o significado para eles do catálogo da fé em ação sob a antiga aliança (LANE William. Word Biblical Commentary, p.303). Corrobora entender que o verbo νοέω (“eu compreendo”) tem uma ligeira nuance além do simples conhecimento, sugerindo também uma certa compreensão ou percepção de algo (Mt 15:7; 16:9, 11; 24:15; Ef 3:4; 2 Tm 2:7). Agora, não podemos realmente “saber” ou “entender” algo que não existe de alguma forma. A fé, então, se conecta a algo real (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary, p.279)

      O conteúdo do compreender conectado a fé passa por duas partes: [1] κατηρτίσθαι τοὺς αἰῶνας ῥήματι θεοῦ, [2] εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (“...foi formado/criado o universo pela palavra de Deus, e modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto”). Assim, em primeiro lugar, o infinito passivo (κατηρτίσθαι - καταρτίζω) descreve que “Deus criou” e o acusativo plural o conteúdo: “o universo” (τοὺς αἰῶνας); finalmente aparece o meio usado: “a palavra de Deus” (ῥήματι θεοῦ). O desafio maior desta parte passa pela tradução de αἰῶνας (aiônas), pois tem três possibilidades semânticas: “tempo – unidade indefinida de tempo; objetos geográficos – universo, criação; comportamento – padrões particulares de comportamento” (BDAG, LSJ, Louw Nida).  Para não absolutizarmos somente a questão lexical, se faz necessário fazer ponderações no macro, neste caso, as outras partes do texto e a Intertextualidade. Assim, como bem apontam os estudiosos “foi formado” aparece na LXX, apontando para o criar (Sl.40:7, ver em: LANE William. Word Biblical Commentary, p.303). Corrobora com isto, o dativo instrumental, pois “pela Palavra de Deus” como destaca Johnson: “o autor claramente faz alusão ao relato da criação em Gênesis 1, onde Deus cria. É pela autoridade da “palavra de Deus” que a fé ganha o entendimento de que o mundo vem a ser ‘pela palavra de Deus’” (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary, p.467). Em conexão com isto Lane destaca:o detalhe de que o universo foi ordenado ‘por meio da palavra de Deus’, alude aos comandos criativos de Deus em Gênesis” (1:3,6,9,14,20,24,26 - LANE William. Word Biblical Commentary, p.303).

    Num segundo momento o autor nos leva ao resultado da premissa anterior: εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὸ βλεπόμενον γεγονέναι. (“...de modo que, não veio a ser do que brilha ou produz luz o que tem sido visto”). Parece que temos aqui um discurso apologético, porquanto, na cosmologia grega (por exemplo, Hesíodo, Empédocles), ao contrário de muitas das fontes judaicas (por exemplo, 2 Macabeus 7:28), o universo foi formado, a partir de matéria preexistente em um estado de caos; Platão e Filo acreditavam que o universo visível foi formado a partir de matéria visível. No entanto, Filo e muitos mestres judeus acreditavam que o universo material foi formado de acordo com o padrão invisível e ideal de Deus, incorporado em sua “palavra” ou sua “sabedoria”. Embora essa visão possa trair alguma influência filosófica grega, ela também foi enraizada e defendida por meio do Antigo Testamento (LANE William. Word Biblical Commentary, p.304). Desta forma, os leitores originais (cristãos que viviam nos anos 49 a 70 d.C) foram educados numa contracultura quanto a percepção grega de grande valência naquele contexto.

    Neste ponto ainda, percebemos que se “as coisas que são vistas sempre surgem do que não é visto”, então o mundo perceptível aos sentidos é sempre não apenas dependente, mas também inferior ao poder que o traz à existência, mesmo que seja através da sensível que o insensível encontra expressão. Já que a fé define uma vida baseada no que não é visto em vez do que é visto, ela, portanto, também se torna uma “prova” — nas próprias vidas dos humanos que vivem por ela — da realidade do invisível (JOHNSON Luke. Hebrews A Commentary p.280). Em suma, a discussão quanto a organização das cláusulas é complexa (ênfase na negação), mas ainda assim, alguns afirmam aqui a existência do creatio ex nihilo (ATTRIDGE. A Commentary on the Epistle to the Hebrews. p.315).

     Como foi dito no início nossa análise é sintética, ainda assim, conseguimos entender o papel da fé/compreensão quanto a criação. Algo de grande importância para o contexto interpretativo do NT. Além disso, encontramos dificuldades com aiônas que procuramos resolver usando o todo da argumentação. Assim, “foi criado pela Palavra de Deus” lemos num movimento de apropriação de Gn.1. Desta forma, conseguimos precisar a fonte usada pelo autor de Hebreus. Em terceiro lugar, vimos o caráter apologético envolvendo a criação, porquanto nega matéria preexistente e chancela o papel de Deus. A tautologia que afirma a criação como criadora perde sua relevância para os leitores originais. 

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